O lugar da Proclamação da República na História
A República no Brasil não se reduz ao seu ato inaugural: o golpe militar de 15 de novembro de 1889. O episódio foi resultado de conflitos de um conjunto de forças político-sociais que responderam às exigências de mudanças estruturais da formação social brasileira e da luta de classes.
No dia 3 de dezembro de 1870, assinado por cinquenta e oito pessoas, entre elas Aristides Lobo, Saldanha Marinho, Ferreira Viana e Quintino Bocaiúva, apareceu o primeiro manifesto republicano no jornal "A República". Dois anos depois, o primeiro recenseamento oficial registrou uma população de 8.419.672 de seres humanos livres e 1.510.860 de trabalhadores escravizados. E, duas décadas depois, ocorreu a Abolição da Escravidão, a destruição do Estado monárquico escravista e a estruturação do Estado burguês brasileiro.
O modo de produção escravista colonial hegemônico, com mais de trezentos anos de existência, era garantido pela superestrutura jurídico-política do Estado monárquico brasileiro, que se encontrava em crise permanente e crescente desde a segunda metade do século XIX. A destruição das relações de produção escravistas, nesse sentido, era inseparável da substituição do Estado imperial brasileiro.
Por isso, é importante situar o 15 de novembro, como faz Saes (2023), num processo específico de transformação política: a revolução antiescravista e antimonárquica que se desenrolou, fundamentalmente entre 1888 e 1891, por meio dos momentos sucessivos da Abolição da Escravatura (1888), da Proclamação da República (1889) e da Assembleia Constituinte (1891). Esses episódios, muitas vezes vistos de forma isolada, representam elos de uma corrente histórica de superação do Estado escravista moderno, fundado na primazia do ser humano livre sobre o trabalhador escravizado, por um Estado burguês baseado na concessão formal de cidadania a todos os indivíduos (Estado republicano).
Em 1888, por uma pressão de massas ruiu as relações escravistas de produção, minando a base estrutural do Estado imperial. Era a distinção entre ser humano livre e ser humano escravizado que coordenava e organizava todas as instituições políticas monárquicas brasileiras (Executivo, Poder Moderador, Senado, burocracia, Guarda Nacional, estrutura judiciária, por exemplo). A Proclamação da República, independente da forma que adotou, completou a obra destruidora da revolução abolicionista (que destruiu o escravismo), quebrando não só o regime monárquico como todas as instituições políticas sustentadas pelas relações escravistas. Tal processo foi consumado pela Assembleia Constituinte que estabeleceu novas instituições políticas formalmente universais que conformaram um novo Estado de classe, não mais escravocrata, mas burguês.
É óbvio que o Estado e o regime republicano não foram resultados de um processo democrático de massas que levantasse a necessidade de reivindicações democráticas em torno dos direitos dos trabalhadores que foram escravizados, de reforma agrária, de direitos sociais (saúde, educação, regime de trabalho), de igualdade jurídica das mulheres, de independência nacional real, de reconhecimento das populações indígenas de sua autonomia e de soberania popular. O Estado burguês nasceu como uma república oligárquica, expressando as contradições do desenvolvimento desigual e combinado da formação econômico-social brasileira.
Hoje, nesses 135 de República brasileira, com o devido distanciamento histórico, pode-se afirmar que o 15 de novembro expressou um movimento progressivo diante do Estado monárquico escravista.
Hoje, a luta é outra. É pela instauração da República dos trabalhadores e das trabalhadoras no Brasil com base na superação das relações capitalistas de produção.
Referências
SAES, Décio. República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2023.
Frederico Costa, Professor da UECE