quarta-feira, 26 de junho de 2019

Como nasce e morre o fascismo?

junho 26, 2019



A atualidade de uma revolucionária comprometida com a classe trabalhadora, Clara Zetkin

Conhecemos muito pouco das mulheres revolucionárias que nos antecederam. Clara Zetkin é, certamente, um desses nomes que já ouvimos falar. Provavelmente, Zetkin é mais conhecida por sua participação fundamental nas lutas do movimento de mulheres. Algumas de nós podem até ter ouvido falar sobre a proposta de efetivar uma jornada internacional de mulheres que, hoje, está resgatando o caráter revolucionário que lhe originou. Trata-se do 8 de março.

Clara Zetkin nasceu em 5 de julho de 1857, cursou estudos de magistério em Leipzig. Clara foi militante da ala esquerda do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) até o rompimento com ele devido ao apoio que o partido deu aos gastos de guerra do governo alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Clara não rompeu sozinha. Karl Liebkecht, Fraz Mehring e Rosa Luxemburgo, sua grande amiga e camarada de luta que seria brutalmente assassinada. Militando na Liga Espartaquista, que iria compor a fundação do Partido Comunista da Alemanha (KPD), Clara foi presa diversas vezes por seus esforços contra a guerra.

Taber e Riddell, na edição brasileira de Como nasce e morre o fascismo publicado pela Autonomia Literária em colaboração com a Editora Usina, afirmam que “Clara foi muito além do feminismo”. Na verdade, Clara aprofundou o feminismo ao ser uma mulher militante marxista que compreendeu o seu tempo e trabalhou para superar a sociedade capitalista sem perder de vista o papel e a necessidade de dar conta das pautas específicas das mulheres nesse contexto porque elas não estão descoladas da totalidade da realidade nem são secundárias.

Os documentos centrais da edição da Autonomia Literária são o informe e a resolução de Clara Zetkin apresentados no III Pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista, em junho de 1923. Além desses dois documentos, constam no livro o informe e a resolução de Clara Zetkin para a conferência internacional contra a guerra e o fascismo, em Frankfurt entre 17 e 20 de março de 1923. Um relato de John Riddell sobre o ativismo de Zetkin por uma frente única antifascista que manteve até seu último dia de vida.

No informe de junho de 1923, Clara Zetkin afirma que o fascismo encara o proletariado como um inimigo excepcionalmente perigoso e amedrontador, por isso é dever de todo o proletariado fazê-lo cair não só superando o capitalismo, mas lutando pela sobrevivência para qualquer trabalhador. Contra as visões predominantes de que o fascismo era apenas uma expressão do terror burguês expresso em termos de violência extrema, como foi o caso da vingança contra a Revolução na Hungria cujo sujeitos da violência foram uma casta de oficiais feudais, Zetkin defende que o fascismo é “uma punição de que o proletariado não tenha sustentado a revolução que foi iniciada na Rússia”.

Não está nos marcos do presente texto fazer um resumo detalhado da obra, mas indicar aspectos importantes para que o leitor possa interessar-se pela leitura. Vale apontar algumas questões.

Qual a base do fascismo?

A base do fascismo são as amplas camadas sociais, grandes massas, incluindo o proletariado. Essa base é constituída por amplas massas que perderam a segurança sobre a garantia de sua existência e, com isso, a crença na ordem social. Aqui se inserem as camadas burguesas proletarizadas.

Segundo Zetkin, essas camadas seriam os funcionários públicos, intelectuais burgueses, os pequenos e médios burgueses que tiveram alguma simpatia pelo reformismo apesar de não estar enraizada, mas que a política de coalizão afetou o conjunto do proletariado e as camadas médias. Outro aspecto destacado é que essas camadas médias carecem de qualquer educação teórica, histórica ou política. Essas camadas perderam a fé não apenas na direção reformista, mas no próprio socialismo.

Vale lembrar que Zetkin analisa a situação concreta da Itália e analisa os elementos que já se desenvolvem na Alemanha, por isso ela indica que ele tem características próprias em cada país devido a cada circunstância específica. Dois traços são essenciais: programa revolucionário fraudulento e o uso violento e brutal do terror. O primeiro caso trata das promessas de mudança feitas aos diversos setores da sociedade em comparação com os atos dos fascistas no poder, por isso Zetkin afirma que as promessas dos fascistas são hipócritas.

É importante destacar o aviso que a autora nos dá de que o fascismo é um fenômeno internacional.

Como se dá o caráter de massas do fascismo?

“Essa é a razão pela qual a burguesia oferece a sua mão ao beijo fascista”.

Esse descontentamento e perda de fé no reformismo da Social-Democracia. As massas passam a cair no discurso fascista e acreditar que os elementos mais fortes, em torno da nação fariam o que os reformistas não fizeram. O instrumento para isso seria o Estado acima de todos os partidos e classes remodelaria a sociedade.

A burguesia, então, acolhe o fascismo porque ele é um instrumento de manutenção de seus interesses em meio ao contexto de desintegração da economia e do Estado burgueses. A burguesia nutre o fascismo porque ele oferece a ela um instrumento de força extralegal e paramilitar, pois, destaca Zetkin, a situação exige força, mas o Estado está ruindo.

Quais as raízes do fascismo?

O fascismo é uma expressão da decadência e da desintegração da economia capitalista, um sintoma da dissolução do Estado burguês. Outro fator de destaque é o que Zetkin aponta como a falha de direção do proletariado que traíram a classe trabalhadora com o reformismo, bem como aponta que os partidos comunistas têm sua parcela de responsabilidade pela falta de firmeza e pela responsabilidade nas iniciativas sem escopo.

Como (e quem vai) derrubar o fascismo?

“Esses fatos demonstram que a falência ideológica leva à falência política, e que serão, sobretudo, os próprios trabalhadores que irão rapidamente retomar a compreensão de seus interesses e compromissos de classe”.

Para derrubar o fascismo, aponta Clara Zetkin, não bastam os meios militares, pois é preciso derrotá-lo político-ideologicamente. O fascismo é contraditório por natureza, pois agrega forças conflitantes que o levarão a sua decadência interna e a desintegração. Contudo, isso não pode nos levar à inatividade, ao contrário, devemos agir para acelerar o processo. Para a burguesia, o fascismo só pode servir, nos avisa Zetkin, como uma ferramenta de luta de classes temporariamente.

Combater o fascismo exige superá-lo ideológica e politicamente e uma atividade intensa. Segundo Zetkin, precisamos disputar as massas, as camadas sociais do fascismo. Se não as ganhamos, é preciso neutralizá-las, trabalhar entre elas, mostrar-lhes uma solução que não as faça retroceder. Precisamos ainda, nessa batalha, apresentar o comunismo e os comunistas como aqueles que lutam pelos interesses das massas. É tarefa nossa reorganizar os métodos de agitação e propaganda, produzir uma literatura de acordo com essas tarefas. A autodefesa da classe deve ser priorizada porque o fascismo ataca com violência e deve ser respondido como tal, mas a violência da classe trabalhadora não é individual, mas é a luta de classes.

Não se pode encerrar esse texto sem falar da tática da frente única proletária, pois o fascismo não faz distinção, “tudo o que interessa é que ele se defronte com um proletário com consciência de classe e eles não param até que esteja no chão”. A frente única foi defendida por Zetkin enquanto, para isso, ela teve condições. A burocratização estalinista abandona a frente única como tática de luta antifascista, revogando a Resolução de Zetkin de 1923. A unidade da luta não significa apagamento das diferenças nem abandono do programa revolucionário, mas a necessidade da união de todos aqueles que estão sob ameaça. “O povo trabalhador precisa afirmar-se contra o fascismo”.

Karla Raphaella Costa Pereira
Doutoranda em Educação (PPGE/UECE)

Referências bibliográficas
ZETKIN, Clara. Como nasce e morre o fascismo. Tradução de Eli Moraes. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
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Na edição da Autonomia Literária, você encontrará os textos referidos aqui e poderá ler a Resolução de Clara Zektin aprovada no III Pleno Ampliado do Comitê Executivo da Internacional Comunista de junho de 1923.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Elementos de materialismo histórico I

junho 21, 2019



Processo de trabalho, processo de produção

A produção de valores de uso é a base da vida social. Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) no texto A Ideologia Alemã, escrito entre 1845 e 1846, assinalam que o primeiro fato histórico foi a produção de meios indispensáveis para satisfazer as demandas dos homens, isto é, a produção da vida material,

[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos (2007, p. 32-33).

A produção social compreende simultaneamente o processo de interação entre seres humanos e natureza e o conjunto das relações sociais de produção, que surgem e desenvolvem-se historicamente. O processo de interação dos homens com a natureza é o processo de trabalho, que ocorre sempre sob uma forma social determinada.

De acordo com Marx, no Capítulo 5 – O processo de trabalho e o processo de valorização de O Capital- Livro I:

Os momentos simples do processo de trabalho são, em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios (p. 256, 2013).

Ao exercer seus efeitos sobre a natureza exterior modificando-a, os seres humanos modificam também sua própria natureza: desenvolvem suas capacidades no processo de trabalho, enriquecem seus conhecimentos e ampliam as possibilidades de sua aplicação. O significado do trabalho para o desenvolvimento humano é fundamental.

O processo de trabalho [...] em seus momentos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim – a produção de valores de uso –, apropriação do elemento natural para a satisfação de necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida, ou melhor, comum a todas as suas formas sociais (2013, p. 261).

A matéria da natureza sobre a qual operam os homens no processo de trabalho se denomina objeto de trabalho. A substância, que já sofreu a ação do trabalho, porém, destina-se a uma transformação sucessiva denomina-se matéria-prima, como a madeira já elaborada ou um mineral purificado. Aqui, um esclarecimento, nem todo objeto de trabalho é matéria-prima, ainda que toda matéria-prima seja objeto de trabalho.

Os meios de trabalho são aqueles que os seres humanos empregam para atuar sobre o objeto de trabalho. Entre eles, um papel decisivo corresponde aos instrumentos de trabalho, cujas propriedades mecânicas, físicas e químicas são aproveitadas pelos homens de acordo com os fins a que se propõem.

O que cada coisa será, objeto ou instrumento de trabalho, depende em cada caso concreto de como são utilizados. Com a confecção de instrumentos de trabalho começa o processo de trabalho propriamente dito.

Em sentido amplo, pertencem aos meios de trabalho todas as condições materiais de trabalho, sem as quais este não pode se efetuar. Condição geral para que se realize o trabalho é a terra; são também condições essenciais de trabalho estruturas como edifícios de produção, vias de comunicação e canais. Os resultados do conhecimento social da natureza se encarnam em meios de trabalho e em processos produtivos, na técnica e na tecnologia. O nível da técnica e da tecnologia indica até que ponto a sociedade domina as forças da natureza.

Os meios de trabalho e os objetos de trabalho constituem em conjunto os meios de produção. Os meios de produção e o trabalho dos seres humanos possuem uma relação dialética, condicionando-se mutuamente. Os instrumentos de trabalho, elemento imprescindível a todo processo de trabalho laboral, são sempre produtos de trabalho pretérito. No entanto, sem contato com o trabalho vivo não podem desempenhar a função a que foram destinados e perdem seu significado.

O trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas e despertá-las do mundo dos mortos, convertê-las de valores de uso apenas possíveis em valores de uso reais e efetivos. Uma vez tocadas pelo fogo do trabalho, apropriadas como partes do corpo do trabalho, animadas pelas funções que, por seu conceito e sua vocação, exercem no processo laboral, elas serão, sim, consumidas, porém segundo um propósito, como elementos constitutivos de novos valores de uso, de novos produtos, aptos a ingressar na esfera do consumo individual como meios de subsistência ou em um novo processo de trabalho como meios de produção (Marx, 2013, p. 260-261).

Então, nem os objetos de trabalho nem os meios de trabalho existem como tais em si, se não são incorporados ao processo de trabalho. Por sua vez, o próprio trabalho, enquanto atividade direcionada ao fim prático de transformar a natureza não existe sem meios de trabalho.

O processo de trabalho não é uma soma mecânica de seus três momentos fundamentais. É nessa unidade de complexos mutuamente condicionados e contraditórios que se efetiva o trabalho, cujo elemento central é o ser humano, com sua atividade orientada a um fim concreto.

O homem é a força que rege o metabolismo com a natureza, do qual é produto e parte constitutiva. Adapta os objetos de trabalho para satisfazer suas necessidades, ou seja, cria bens materiais: alimento, roupas, moradas e outros objetos de consumo pessoal, assim, como instrumentos de trabalho, matérias-primas, materiais auxiliares e outros meios de produção, isto é, objetos de consumo produtivo. O resultado do processo de trabalho é sempre um produto do trabalho. Na perspectiva do resultado final, o trabalho vem a ser o trabalho produtivo e o processo de trabalho, processo de produção.

Tais são a essência e as determinações abstratas do trabalho em geral, independentemente da forma social em que se realize porque a produção de valores de uso ou de bens não sofre nenhuma alteração em sua natureza pelo fato de ocorrer para o capitalista e sob seu controle, para o escravista, para o senhor feudal ou no, comunismo, para a sociedade autogerida.

Frederico Costa
Professor da UECE - Universidade Estadual do Ceará
Diretor do Sindicato dos Docentes da Universidade Estadual do Ceará – SINDUECE/ANDES-SN
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário-IMO

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Referências bibliográficas

KARL, Marx. O capital: crítica da economia – Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
KARL, Marx e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007.

Nota de repúdio e solidariedade a Luiz Fernando de Lima Teixeira

junho 21, 2019


Vítima de racismo, tortura e cárcere privado por elementos da guarda patrimonial da Universidade Federal do Ceará - UFC

Nós, do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE, repudiamos o ato de racismo, cárcere privado e tortura sofrido pelo estudante de Ciências Sociais Luiz Fernando de Lima Teixeira, 19 anos, nas dependências do Campus do Pici da Universidade Federal do Ceará.

Luiz Fernando foi sistematicamente agredido, violentado em sua dignidade humana, sofreu tortura física e psicológica. Essa, infelizmente, é a realidade da população negra, especialmente da juventude, nesse país de raízes históricas escravistas coloniais que perpetua o racismo em suas práticas cotidianas e não questiona o quanto dele está difundido em suas instituições.

Nesse sentido, a Universidade Federal do Ceará tem a obrigação de combater práticas racistas em suas dependências sejam elas práticas de funcionários, professores ou de estudantes, bem como de oferecer toda a assistência para Luiz Fernando. Consideramos importante a postura da Comissão de Direitos Humanos em se pronunciar contra o ocorrido, mas que a Reitora também o faça.

O racismo é central para a lógica econômica de exploração da classe trabalhadora pelo sistema capitalista e não é tolerável que não questionemos essa estrutura e os desdobramentos na vida de cada ser humano. Nós, do IMO, nos colocamos à disposição e nos somaremos às fileiras dos atos de repúdio e de apoio a Luiz Fernando.

Instituto do Movimento Operário
Universidade Estadual do Ceará - UECE


Fortaleza, 21 de junho de 2019

Leia post completo de Luiz Fernando no Facebook:

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Uma análise marxista sobre o caso Neymar Jr

junho 17, 2019




Angela Davis, no final de seu artigo "Estupro, racismo e o mito do estuprador negro" [1], faz algumas advertências que, ante de qualquer argumentação, precisam ser reproduzidos aqui e, por esse motivo, seguem.

[...] parece que homens da classe capitalista e seus parceiros de classe média são imunes aos processos judiciais porque cometem suas agressões sexuais com a mesma autoridade incontestada que legitima suas agressões diárias contra o trabalho e a dignidade de trabalhadoras e trabalhadores.

Dada a complexidade do contexto social em que o estupro acontece hoje, qualquer tentativa de tratá-lo como um fenômeno isolado está fadada ao fracasso.

[...] a ameaça de estupro persistirá enquanto a opressão generalizada contra as mulheres continuar a ser a muleta essencial para o capitalismo.

O movimento antiestupro e suas importantes atividades atuais devem ser situados em um contexto estratégico que tenha em vista a derrota definitiva do capitalismo monopolista.

Trinta e oito anos separam o texto de Davis do mais famoso caso da acusação de estupro imputada ao jogador de futebol Neymar Jr. Não escrevo esse artigo para retomar tudo o que foi dito sobre o caso. Acho pertinentes as críticas de Jéssica Milaré [2] publicadas no Esquerda Online sobre a difamação sofrida pela denunciante a partir da prática de pornografia de vingança realizada pelo jogador que se somou a já difundida culpabilização das vítimas de estupro pela sociedade. Em meio às muitas controvérsias sobre a veracidade do estupro, a denunciante já foi condenada pela sociedade.

Peço ao leitor que compreenda o caso acima descrito como um caso singular no interior de uma totalidade. Essa totalidade é a sociedade capitalista do tempo presente. Trinta e oito anos separam o artigo referido de Angela Davis e o caso da acusação de Neymar Jr., mas não há como negar a atualidade da análise da ativista, feminista e marxista estadunidense. Cheguei a esse artigo por indicação da feminista marxista Paula Farias, após assistir à série da Netflix When they see us (Olhos que condenam), escrita e dirigida por Ava DuVernay – em outra oportunidade poderemos, caro leitor, discutir sobre a série.


Voltemos ao nosso caso singular!

Tanto Neymar Jr. quanto sua denunciante são indivíduos concretos e, na concreticidade da vida cumprem papéis. Esses papéis não podem ser abstraídos para se entender o caso e a construção desses seres humanos. Neymar é um jogador de futebol multimilionário que vive das benesses do capitalismo, ou seja, vive da distribuição do resultado da exploração da classe trabalhadora, a mais-valia. Como se não bastasse esse fato, o jogador se alia à ideologia dominante, apoiando e sendo apoiado pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.

Para termos uma ideia aproximada – porque não consigo nem visualizar tal quantia –, segundo o Globo Esporte [3] de fevereiro deste ano, Neymar tem o quarto maior salário da Europa € 3,06 milhões brutos por mês, o que equivale a R$ 12,9 milhões na cotação atual, enquanto Marta recebe 269 vezes menos que ele [4]. Neymar é, então, um privilegiado. Seu privilégio se origina na acumulação indevida do resultado do trabalho da classe trabalhadora que tem como consequência nossa expropriação, a pobreza, a miséria, a fome, a morte e a subjugação da mulher como classe e como gênero à subalternidade. Neymar é parte do que nos oprime: o capitalismo e seu irmão, o patriarcado.


Chega de exposição, gente!

Muito já foi dito sobre a mulher que acusa Neymar. A vida dela já foi exposta de todas as formas possíveis. É preciso entendê-la também como pertencente a uma classe. Por mais que ela seja modelo, branca, loira e esteja nos padrões que a sociedade capitalista valora como esteticamente belo, ela não é da mesma classe que Neymar. Mesmo que o fosse, como mulher, a avaliação social não seria diferente, pois, fazer parte do gênero feminino, está ligado à lógica de manutenção da sociedade capitalista que precisa nos subjugar, colocar-nos como seres inferiores, confinadas à esfera doméstica e submissas aos homens. A lógica de poder capitalista está intimamente ligada à lógica patriarcal. Elas não se separam. O homem que se vê como classe dominante vê-se também como gênero dominante. Indico aqui a leitura de Davis para compreender como a herança da exploração escravagista e a sexual reverbera na situação das mulheres da própria classe dominante.

Penso que as citações de Davis não estão aqui só para ser um argumento de autoridade sobre o que estou apontando, mas que elas falam por si mesmas. A análise de Davis, fincada no método marxista, não perde de vista um minuto a realidade concreta da sociedade de classes para compreender o fenômeno do estupro e suas consequências nefastas para os homens e mulheres negros da classe trabalhadora, bem como para as mulheres brancas em geral. Como sujeito concreto que é, Neymar pode não ter estuprado essa moça em específico. O grande problema aqui, entretanto, é o fato de ele ser membro de uma classe que compreende a licença e impunidade para fazê-lo.


Qual a nossa verdadeira luta?

Nossa luta, como mulheres da esquerda, não pode estar circunscrita à exigência de leis, investigação e punição para Neymar Jr., nossa luta é para que não existam neymares, pois a segurança de mulheres não depende da atuação do Estado burguês, mas “derrota definitiva do capitalismo monopolista”. Do mesmo modo, mas por vias completamente diferentes, o feminismo pejorativamente chamado de lacração que não perdeu tempo em acusar Neymar de estuprador e exigir punição comete a mesma legitimação do Estado de direito burguês e, também, se equivoca ao fazê-lo. Por isso tenho dito e volto a repetir, chamando as mulheres da esquerda a resgatar o marxismo como método de análise da realidade, que precisamos de teoria revolucionária para o feminismo e que essa, com todas as suas contradições e tendo sido iniciada por um homem, é a ferramenta para construir a mudança de nosso tempo.

Compreendo, então, que não cabe às mulheres de esquerda exigir apuração ou qualquer outro direito burguês ao Neymar, não porque eu possa dizer a priori que ele cometeu o estupro, mas por dois motivos principais, além de tudo o que disse até aqui:

1 – o direito é burguês, portanto ele já está do lado de Neymar, seja ele culpado ou inocente.

2 – se o direito é burguês, exigir que ele seja justo é uma contradição em si porque ele é parcial por natureza.


Para mim, a consequência mais grave de chamar justiça para o caso Neymar por meio da ilusão de que o Estado de direito burguês seja justo, é legitimar o poder dele como órgão da burguesia para punir quanto os únicos que sofrem realmente com o poder de punição do Estado burguês são os homens ou mulheres da classe trabalhadora.

Se Neymar Jr., além de preto, fosse trabalhador pobre, morador de favela, nenhuma vírgula teria sido escrita nenhuma palavra teria sido pronunciada em sua defesa. Se quiserem saber como o capitalismo trata preto-pobre, assistam à série que mencionei no início desse artigo e leiam o artigo de Davis, depois, voltaremos a conversar.

Karla Raphaella Costa Pereira

Doutoranda em Educação (PPGE/UECE)
Artigo publicado originalmente no esquerdaonline.com.br em 17/06/2019.

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[1] DAVIS, Angela. Estupro, racismo e o mito do estuprador negro. In: Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] MILARÉ, Jéssica. 500 mil motivos contra a difamação da mulher que denunciou Neymar. Esquerda Online. 09 jun. 2019. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2019/06/09/500-mil-motivos-contra-a-difamacao-da-mulher-que-denunciou-neymar. Acesso em 17 jun. 2019.
[3] GLOBO ESPORTE. Neymar tem o quarto maior salário da Europa, revela jornal. 08 fev. 2019. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/neymar-tem-o-quarto-maior-salario-da-europa-revela-jornal.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2019.
[4] VEJA. Salário de Neymar é 269 vezes maior que o de Marta. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cidades/salario-neymar-marta. Acesso em: 17 jun. 2019.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

A crise política brasileira entre árvores e floresta

junho 13, 2019



A importância da greve geral

Recentes revelações do Canal The Intercept estão compondo o quadro do processo de golpe de Estado que teve como ponto culminante a aprovação, em 31 de agosto de 2016, pelo Senado Federal, do impeachmentda presidenta Dilma Rousseff (PT).

Militares, agronegócio, FIESP, grandes meios de comunicação, fundamentalismo religioso, partidos tradicionais (PSDB, Democratas, MDB), movimento reacionário de massas, imperialismo estadunidense, setores da esquerda, Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal convergiram em uma frente única reacionária para mudar o capenga regime de Estado Democrático de Direito brasileiro em um mostrengo autoritário em crescimento. O eixo de toda essa operação golpista era o suposto caráter ético e emancipatório da Lava Jato em sua luta contra a corrupção. Aqui é bom lembrar que a “luta contra a corrupção” tem um longo histórico a serviço da reação: Mussolini, Hitler, Plínio Salgado (nosso fascista tupiniquim), a UDN e todos os golpistas de 1964 foram grandes representantes do combate ao comunismo e à corrupção.

Todo o esforço golpista resultou no governo Temer que radicalizou as medidas de austeridade: corte de gastos sociais, desmonte da legislação de direitos trabalhistas, ampliação da mercantilização de serviços fundamentais entre outras ações contra a população trabalhadora. Apesar disso, e de algumas divergências sobre os caminhos da Operação Lava Jato, esta seguia para os meios de comunicação dominantes, em sua cruzada anticorrupção, acima de qualquer suspeita.

Bem, nada como as denúncias do Canal The Intercept para nos trazer à realidade: essa nova árvore ajuda a delinear a floresta macabra do golpismo. O Judiciário é partidário, da reação. O Ministério Público e a Polícia Federal são arbitrários e conspiram com o imperialismo contra minguadas conquistas da maioria da população brasileira. Mecanismos obscuros, próprios de regimes de exceção, vêm à luz do dia: conluios, provas forjadas, perseguição de inocente, procedimentos irregulares. E tudo para evitar a candidatura de Lula à Presidência da República e reestruturar o regime político.

Todo esse mecanismo vai além de um problema de personalidade ou de ética. É uma questão relacionada a própria formação social brasileira e à luta de classes. Infelizmente, o resultado da derrota da ditadura (1964-1985) não superou os mecanismos oligárquicos de poder no Brasil. Houve certos avanços formais e positivos presentes na Constituição de 1988, que expressou uma determinada correlação de forças. Porém, o regime político instaurado sempre foi, em última instância, impermeável às reivindicações populares. A burguesia interna e associada ao imperialismo, que possui como fundamento existencial a superexploração do trabalho, teme qualquer concessão democrática aos trabalhadores. Os mínimos direitos tiveram que ser conquistados com muita luta. Além disso, a origem das classes dominantes brasileiras tem raízes profundas na violenta colonização portuguesa, no latifúndio, na monocultura, na produção voltada para o exterior e na escravidão de africanos. O passado do Brasil é escravista colonial e está presente na estrutura de classes, na cultura e nas instituições.

O impasse atual é que inclusive as conquistas formais e parciais do regime político instaurado pela Constituição de 1988 não interessam às classes dominantes brasileiras e ao imperialismo. A destruição da previdência, a privatização da educação e da saúde, o ataque à demarcação de reservas indígenas, a superexploração do trabalho, a submissão ao imperialismo estadunidense, a repressão aos movimentos do campo,  a opressão de setores sociais (negros, LGBTs, mulheres) e a devastação ambiental, tendem a se chocar com as parcas conquistas democráticas. Daí o governo de extrema-direita de Bolsonaro ter iniciativas mais contundentes para instaurar um Estado a serviço do ultraliberalismo econômico, um Estado mais forte no controle e repressão de movimentos populares para servir aos interesses econômicos da oligarquia financeira, do latifúndio e do imperialismo.

A simbiose entre Moro, Dallagnol e, agora, Fux, que hoje causa horror até em setores liberais, será regra geral se o governo Bolsonaro não for derrotado. Por isso, a importância de parar o Brasil no dia 14. Apenas a iniciativa das multidões, dos milhões que constroem o Brasil cotidianamente pode virar o jogo. Derrotar a destruição da previdência é um passo significativo para barrar o processo de golpe de Estado e seu produto: o governo Bolsonaro. Lula livre! Amanhã, GREVE GERAL!

Frederico Costa
Professor da UECE - Universidade Estadual do Ceará
Diretor do Sindicato dos Docentes da Universidade Estadual do Ceará – SINDUECE/ANDES-SN
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário-IMO

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Convite ao pensamento crítico

junho 12, 2019



Os homens são, essencialmente, seres ativos. Transformam a natureza para a satisfação de suas necessidades. Nesse processo transformam a si mesmos, suas relações sociais, suas maneiras de agir, suas formas de pensar e ver o mundo.

O pensamento crítico é um tipo de práxis que surgiu para dar resposta às exigências do próprio desenvolvimento social. Embora estivesse presente, de maneira lacunar, em várias culturas, como a chinesa, a hindu, a hebraica e egípcia, por exemplo, foi na Grécia antiga que emergiu de maneira sistemática. O pensamento crítico ou filosófico-científico, isto é, racional, não dogmático e metódico vai nascer nas colônias gregas da Jônia, atualmente Turquia, no século VI a.C.

O pensamento filosófico-científico é uma forma específica de pensar que supera o denominado pensamento mítico.

O pensamento mítico é a maneira pela qual um povo ou comunidade explica sua situação no mundo em que vive. Ele procura responder perguntas como: a origem do mundo, o funcionamento da natureza, o sentido da vida, o fundamento dos valores, a estrutura social, o comportamento dos indivíduos. Sua forma de proceder é por meio de mitos. Incialmente, com base em lendas e narrativas que fazem parte da tradição cultural de um povo ou comunidade. A origem histórica dos mitos é indeterminada e sua forma de transmissão inicial é basicamente oral.

Importante destacar que como tradição cultural o mito configura a própria visão de mundo dos indivíduos, a sua maneira de viver a realidade. E, como o pensamento mítico não exige fundamentação, ele pressupõe adesão: a aceitação dos indivíduos de formas de experiência com o real. Nesse sentido, o mito não se justifica e não se questiona, excluindo outras perspectivas para debater. Daí a tendência do pensamento mítico tornar-se dogmático, autoritário e excludente. Então, ou o indivíduo faz parte da comunidade e aceita a estrutura mítica que explica e justificas sua atividade social ou não pertence a ela.

Um dos elementos centrais da estrutura mítica de pensamento é a explicação da realidade por meio do apelo ao sobrenatural ou ao mistério, levando aos mecanismos do sagrado, da magia e do irracional.

No pensamento mítico há um paradoxo. Por um lado, pretende explicar a realidade para dar plausibilidade a determina práxis social; por outro lado, recorre nessa explicação ao mistério e ao sobrenatural: exatamente àquilo que não pode explicar, que não pode se compreender por estar fora do plano da compreensão humana. Logo, a explicação do pensamento mítico esbarra no inexplicável. É bom destacar que essa estrutura não está confinada apenas à esfera de comportamentos denominados de religiosos, mas apresenta-se, também, sob a forma de discursos seculares e laicos.

Já o pensamento filosófico-científico choca-se com a postura mítica porque procura explicar o mundo pelo próprio mundo, não necessitando de um plano extramundano como fundamento explicativo. Essa é uma postura crítica. O conhecimento e a compreensão da realidade passam a se basear na rebelião contra certezas que parecem óbvias e naturais. O conhecimento nutre-se de uma radical falta de certezas. O pensamento crítico é fluido e capaz de desenvolvimento constante, com capacidade de subverter a ordem das coisas e repensar continuamente o mundo.

A crise do capitalismo gera uma crescente desigualdade social, também, insegurança, respostas desesperadas e alienantes. Proliferam a ideologia anticientífica e o irracionalismo, que servem de fundamento para perspectivas reacionárias e conservadoras da extrema-direita. O pensamento mítico fortalece-se, atualmente, como forma de um “discurso de ódio”, elitista, racista, xenofóbico, machista, lgbtfóbico e anti-intelectual, que ameaça o futuro.

Mais do que nunca é preciso, defender, resgatar, divulgar e utilizar o pensamento crítico. A falta de certeza, a dúvida, a busca pelas raízes das coisas e processos são a força da práxis filosófico-científica, baseada na curiosidade, na revolta e na mudança. É preciso submeter à discussão continua os fundamentos da visão de mundo dominante. Daí a importância de perguntas como estas:

1. Como você sabe que isso é verdade?
2. Quem disse que isso é verdade?
3. Você pode provar que isso é verdade?
4. Há alguma evidência científica ou racional de que isso é verdade?
5. É possível que alguém tenha inventado isso?
6. De que outras formas podemos explicar isso?
7. Isso serve a algum interesse?

Diante da atual conjuntura: vamos pensar criticamente? 
  
Frederico Costa
Professor da UECE - Universidade Estadual do Ceará
Diretor do Sindicato dos Docentes da Universidade Estadual do Ceará – SINDUECE/ANDES-SN
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário-IMO