Tive a oportunidade de
estar em uma escola municipal de Fortaleza acompanhando uma sala de aula de 1°
série do Ensino Fundamental cujo nome não revelarei por motivos éticos. Venho
relatar esse fato porque ele é singular para entender os temas que dão título a
esta crônica argumentativa. Já me deparei com algumas situações dentro de sala
de aula e, por isso, sei o quanto ela é intensa e complicada. Mas, semana
passada, enquanto os alunos estavam estudando Matemática, uma professora da
própria escola entrou na sala para ensinar a Bíblia para as crianças. Pareceu-me
que era uma atividade que essa professora realiza regularmente na escola em
salas que não são as de sua regência.
Quero conversar com você, leitor, sobre
duas situações ocorridas nesse dia. Ela pregou na lousa um versículo da Bíblia
e fez com que os alunos repetissem até decorá-lo. O atual desgoverno vive
falando por aí que, nas escolas, acontece doutrinação por partes dos
professores de esquerda. E a doutrinação religiosa pode? Então a escola pode ser
sem partido, desde que seja com religião. A religião é de decisão pessoal e
individual de cada pessoa.
A própria legislação determina que seja facultativa e sendo vedada qualquer
forma de proselitismo, ou seja, doutrinação religiosa (Art. 33, Lei nº 9394/96).
A professora não deu opção aos alunos que não desejassem participar da aula nem
apontou para a diversidade de credos. Fiquei pensando o quanto essa situação
deve ser a realidade de muitas escolas. Isso não foi tudo.
Satisfeita com a
"decoreba" do versículo bíblico, a professora começou a ensinar as
cores escuras e disse aos alunos e às alunas que as cores escuras não agradavam
a Deus, pois eram as cores do pecado, diferentemente das cores claras que
representam a paz, a alegria etc.
Veja, a metade da sala era composta por alunos e alunas negras. Durante o tempo
que estive lá, precisei trabalhar muito a dificuldade desses alunos em aceitar
que o lápis “cor de pele”, na verdade, só representava uma cor e que não
correspondia com a cor da pele da maioria deles. Foi um trabalho árduo
proporcionar esse autoconhecimento para crianças de cinco e seis anos, mas
houve avanços postos em xeque pela ação da professora.
Para além da história, me pergunto aqui como nasce o racismo nos dias atuais?
Melhor: como ainda hoje nascem pessoas racistas mesmo com tantos debates sobre
raça que estamos travando? Naquele dia, comprovei um sentimento pessoal: as
práticas desenvolvidas por pessoas cristãs favorecem a reprodução racista de
uma sociedade que foi e continua sendo educada para reproduzir comportamentos
opressores. Em uma conversa com um grande amigo sobre toda essa problemática,
ele me lançou o seguinte questionamento: A mulher que se prestou ao papel de
fazer isso na sala de aula era ciente do que estava fazendo, uma vez que o
racismo estrutural é invisível aos olhos mais desatentos? Minha resposta é a
seguinte: toda prática educativa, seja ela dentro ou fora de sala de aula,
possui consequências sérias para a construção e o desenvolvimento do ser humano.
Uma vez que você ensina que cores escuras são ruins e desagradam a um deus, o
mínimo resultado que você obterá será a construção de futuros adultos com
olhares racistas um para com o outro. Esse caso só comprova como o racismo está
estruturalmente nas nossas relações; como a sociedade reproduz conceitos e
comportamentos racistas sem perceber, causando um sério dano à sociedade.
Para aprofundar o assunto, precisaríamos discutir formação e práxis docente,
mas não é o caso deste texto. Quero dizer que o problema não é a religiosidade,
mas impor uma religião às crianças de cinco e seis anos é um grande problema.
Por isto formar o pensamento crítico é fundamental: para que as alunas e os
alunos possam se defender e dizer não aos verdadeiros doutrinadores. O
engraçado é, que diante de todas as problemáticas que temos que nos deparar nos
ambientes educacionais, como falta de recursos para a própria manutenção da
escola, falta de comida, falta de materiais didáticos etc., ainda temos que
ouvir absurdos de que NÓS professores e futuros professores somos doutrinadores.
Quem me dera ser, quem me dera! Eu me pergunto: a educação, o Estado, não é
laico? Quem são os verdadeiros inimigos da educação? Talvez precisaria de outra
crônica para debater isso. Até quando seremos obrigados a ouvir que nossas
pequenas tentativas de práticas emancipatórias são doutrinações, enquanto a
verdadeira doutrinação acontece debaixo dos nossos próprios olhos, ou melhor,
nas nossas próprias salas de aula praticadas pelas mesmas pessoas que defendem
uma educação sem partido e sem viés político ideológico! Eu pergunto: quem são
os doutrinadores mesmo?
Cybely Ribeiro
Graduanda
em Pedagogia - UECE.