quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A ditadura de 64 e a acumulação do capital: Breves notas




Durante a Ditadura Militar (1964-1985), ou nas palavras de Octavio Ianni, “a ditadura do grande capital”, operou-se no Brasil uma profunda violação dos direitos humanos e sociais. Coube ao governo autoritário a responsabilidade de perpetrar as mais variadas formas de repressão contra o conjunto da população trabalhadora brasileira. Em nome da “economia política da burguesia financeira” e do imperialismo, as classes subalternas foram brutalmente espoliadas. A dissociação entre Estado e povo, indubitavelmente, consistia numa prática necessária para garantir a “legitimidade” dos interesses das classes dominantes.

        Neste sentido, podemos compreender que:

Por dentro da doutrina de ‘segurança e desenvolvimento’ a ditadura acionou e aperfeiçoou o planejamento e a violência estatais, como técnicas econômicas e políticas, como forças produtivas complementares. Por dentro da economia política governamental, desenvolveu-se um Estado forte e abrangente, ativo e repressivo, a serviço da grande burguesia financeira, da produção da mais-valia regular e extraordinária (IANNI, 2019, p. 274).

   O planejamento econômico da ditadura brasileira, visou sobretudo garantir as condições favoráveis para a plena acumulação de capital nos níveis mais elevados possíveis. Nestas circunstâncias, as classes dominadas, principalmente, operários e camponeses, foram exploradas ao extremo, o que resultou concretamente no aumento de poder e privilégios dos ricos em detrimento do aumento da pobreza da maior parte da população. Assim, a herança oligárquica, autoritária e ditatorial do pode estatal ressurgiu na Ditadura de 64 com novas roupagens.

   O contexto da Ditadura Militar instalada no Brasil, se configurou como uma “longa noite de trevas”. A prisão, o sequestro, o desaparecimento e o assassinato, juntamente com o arrojo salarial, a ingerência governamental nos sindicatos urbanos e rurais, a abolição das ligas camponesas, a manipulação do boato e do medo, constituíram técnicas de poder que garantiram a hegemonia e ampla reprodução do capital financeiro e monopolista.

   A associação entre militares, burocratas e tecnocratas de acordo com Octavio Ianni, tinha o claro propósito de favorecer empresas privadas, pois,

Isso era tanto mais evidente porque com frequência os técnicos do aparelho estatal eram personagens com ligações diretas, ou indiretas, com empresa privada. Além de que a sua economia política, competência técnica, ou modo de compreender a organização da sociedade, estava sempre fundada na lógica da acumulação do capital; ou no jogo das "forças do mercado" (IANNI, 2019, p. 67).

        A prática do poder estatal ditatorial, implicava, sobremaneira, no controle político da classe trabalhadora em seu conjunto. E neste sentido, o objetivo dos golpistas era, indisfarçavelmente, coibir qualquer reação por parte dos movimentos sociais e políticos organizados, os quais constituíam efetivamente, a única oposição real ao aparato autoritário da burguesia. É evidente, dessa forma, que a ditadura militar de 64 foi organizada por um bloco de poder que tinha como principal propósito engendrar uma contrarrevolução social, que na prática se configurou como uma estratégia eficiente de consolidação e desenvolvimento dos interesses econômicos da grande burguesia financeira e monopolista.

        Este bloco de poder consistia na associação de setores tais como: a igreja, a classe média, militares, policiais, latifundiários, burocratas, tecnocratas dentre outros grupos e classes. Todos eles mancomunados com o propósito de impedir o ascenso político da classe operária e do campesinato. A principal razão disso, seguramente, é porque a década de 60 no Brasil, foi marcada pelo significativo avanço das organizações de classe. Os operários e camponeses, organizados, conscientes e combativos, atuavam por dentro e por fora do populismo, nos sindicatos urbanos e rurais, juntos aos setores das igrejas progressistas, nas ligas camponesas, nos partidos e sob várias outras formas.

        Assim, conforme Octavio Ianni:

A ditadura formou-se e desenvolveu-se como contrarrevolução. O bloco de poder que organizou, planejou e deu o golpe de Estado de 31 de março de 1964, e consolidou-se no controle do aparelho estatal, na prática realizou uma ampla e brutal contrarrevolução (IANNI, 2019, p. 304).

        Estas circunstâncias resultaram da crise em que entrou o estado burguês autoritário, o que significou em linhas gerais, uma crise econômica, em virtude das contradições entre os setores da própria burguesia brasileira, as pressões do imperialismo pelo fim do populismo, o nacionalismo econômico, a politização da classe trabalhadora e, sobretudo do ascenso político na cena histórica, dos operários e camponeses. Neste contexto de acordo com Octavio Ianni, criou-se uma situação pré-revolucionária, no sentido que de efetivamente avançou a consciência política da classe trabalhadora, principalmente operários e camponeses, o que representou do outro lado, o enfraquecimento do poder da burguesia. Pois,

As classes dominantes, em sentido amplo, dividiram-se: alguns setores apoiavam o presidente Goulart […]; outro setor concentrava a sua força no Pode Legislativo; outro, ainda, trabalhava ampla e ostensivamente na organização do golpe de Estado […] A despeito disso, no entanto, enfraquecia-se bastante o poder burguês, devido à crise econômica e política e ao ascenso político das classes subalternas, principalmente o proletariado e o campesinato ( IANNI, 2019, p. 307).

     Dessa maneira, podemos inferir, numa perspectiva histórica, que a ditadura militar no Brasil representou uma dupla contrarrevolução. Num aspecto, foi uma contrarrevolução no sentido de um golpe de Estado e num outro foi uma contrarrevolução no sentido de uma reação contra a radicalização política das classes operárias e camponesas. Isso, decerto, rompeu e destruiu um amplo e sistemático processo de ascenso político das classes subalternas: operários da indústria, trabalhadores do campo, empregados e funcionários empobrecidos. Foi, indubitavelmente, um contexto de avanço político, de organização consciente e de luta que foi interrompido por um golpe que instalou uma ditadura sangrenta.

    Com efeito, o golpe que destituiu João Goulart, assinalou uma brutal ruptura com a sociedade civil, o que resultou num profundo processo de segregação social. A máquina de poder repressiva implantou na prática mecanismos jurídico-políticos que abertamente consolidavam e desenvolviam os interesses econômicos da grande burguesia financeira e monopolista. Neste contexto os planos, metas e programas do governo ditador revelaram seus significados fundamentais. Primeiro, o planejamento governamental se tornou na prática uma técnica de transformação efetiva de mais-valia. Isto, possibilitou concretamente o rearranjo e o desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção com vistas à a acumulação e expansão do capital em larga escala.

   Este processo ocasionou de forma generalizada a subjugação da força de trabalho produtiva ao grande capital. Segundo, o âmbito do planejamento, em seus mecanismos e atividades no bojo de uma “parafernália tecnocrática”, passou efetivamente a se constituir como uma esfera de “articulações” e “metamorfoses” entre a economia política do capital monopolista e financeiro e a economia política da ditadura da burguesia. Como afirma Ianni:

O Estado foi levado a desenvolver não só um amplo e complexo instrumental de política econômica, como também desenvolveu uma ampla e complexa articulação interna desse mesmo instrumental. Os vários ministérios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, superintendências, institutos, conselhos etc. Articulam e rearticulam-se por suas organizações, burocracias e tecnocracias (IANNI, 2019, p. 58).

    A forma como o poder estatal e o grande capital monopolista se articulavam para garantir a hegemonia financeira, cumpria o propósito de desenvolver de forma planejada o crescimento econômico-social do país, entretanto, isso se dava às custas de enorme arrocho salarial, intervenção nos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, prisões, torturas, assassinato de líderes das oposições e ao aumento violento da taxa de exploração dos assalariados do campo e da cidade. Assim, de acordo com a tese de Octavio Ianni, o planejamento econômico do estado autoritário se consubstanciava como uma “força produtiva complementar”, igualmente ao lado da força de trabalho, capital, tecnologia e divisão do trabalho.

    Podemos citar neste sentido, conforme destaca Octavio Ianni (2019), alguns dos principais programas instituídos pelo governo militar: 1) Programa de Ação Econômica do Governo: 1964-1966. Visava principalmente promover a estabilização financeira e criar outras condições econômicas favoráveis ao desenvolvimento das forças do mercado e a prevalência da livre iniciativa empresarial. 2) Diretrizes de Governo: 1967. Este programa buscava definir as principais linhas da política econômica que deveriam ser colocadas em prática durante os primeiros meses do governo do ditador Arthur da Costa e silva (1967-1969). 3) Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social: 1967-1976. Este plano expressava o caráter totalitário que a ditadura estava ganhando. Os governantes e seus burocratas evidenciavam as intenções e as decisões que prolongariam por anos o controle autoritário do Estado. 4) Programa Estratégico de Desenvolvimento: 1968-1970. Tal programa consistia, em muitos aspectos, numa ampla abertura às empresas privadas. Mostrava  como o poder estatal, enquanto uma instituição econômica e política, se prestava a garantir as plenas condições para acumulação do capital. 5) Metas e Bases para a ação do Governo: 1970-1971. A partir deste programa, o governo do ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) empreendeu as bases fundamentais de sua política econômica. Buscava sobretudo, garantir a imagem da “continuidade revolucionária” e da “originalidade”, nas palavras de Octavio Ianni, de cada ditador que governou “a ferro e fogo o Brasil”. Foram nestes anos que vigorou no país a propaganda imperialista do “Milagre brasileiro” e do presumido “Brasil Potência”. Outros planos que seguiam a mesma toada autoritária foram: o I Plano Nacional de Desenvolvimento: 1972-1974; o II Plano Nacional de Desenvolvimento: 1975-1979; o III Plano Nacional de Desenvolvimento: 1980-1985.

  Estes programas e planejamentos, atravessaram largamente as diferentes esferas da vida social brasileira. Compreendeu acima de tudo, uma articulação entre os diversos segmentos tais como: as relações entre indústria e a agricultura; a nação e as diferentes regiões do país; a indústria cultural. O que estava em jogo era sobretudo a expansão “intensiva” e “extensiva” do grande capital monopolista e financeiro. Efetivamente, nos anos que antecederam o golpe de 64, o conjunto dos movimentos sociais vinculados às classes trabalhadoras no Brasil, amedrontaram a burguesia nacional associada ao capital estrangeiro. João Goulart foi deposto sem reagir ou insuflar a população para resistir, ainda que grupos de operários, camponeses e outras categorias sociais tivessem clamados por armas para combater, nada avançou imediatamente (a resistência foi doravante). Temendo um “banho de sangue”, Jango recuou.

     A burguesia brasileira golpista não aceitava a possibilidade do poder ficar nas mãos do povo, ou o poder em nome do povo. Foi subalterna aos interesses do imperialismo na região. Temendo uma revolução popular, em virtude do ascenso político da classe trabalhadora, instalou uma ditadura facínora a serviço do grande capital monopolista. Portanto, podemos afirmar que a ditadura de 64 foi uma ditadura da burguesia. Sendo assim, essa ditadura representa o fechamento de um período histórico, em que nenhuma das classes sociais inseridas no processo político brasileiro logrou sobrepujar a classe dominante. O golpe de 64 inicia um novo ciclo histórico no país, marcado sobretudo pela primazia da dominação econômica e política da “grande burguesia monopolista”. Em tais condições histórico-sociais, as possibilidades econômicas de acumulação do capital financeiro ocorreram em larga escala, o que significou que os interesses da burguesia golpista e subserviente ao imperialismo subjugou em grande medida o conjunto da sociedade brasileira, principalmente a grande maioria da população espoliada em seus direitos mais básicos. 

Antonio Marcondes dos Santos Pereira
Doutor em Educação (UFC)
Membro do GEM/UFC
Membro do GPOSSHE/IMO/UECE

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019.