Durante a Ditadura Militar (1964-1985),
ou nas palavras de Octavio Ianni, “a ditadura do grande capital”, operou-se no
Brasil uma profunda violação dos direitos humanos e sociais. Coube ao governo
autoritário a responsabilidade de perpetrar as mais variadas formas de
repressão contra o conjunto da população trabalhadora brasileira. Em nome da
“economia política da burguesia financeira” e do imperialismo, as classes
subalternas foram brutalmente espoliadas. A dissociação entre Estado e povo,
indubitavelmente, consistia numa prática necessária para garantir a
“legitimidade” dos interesses das classes dominantes.
Neste sentido, podemos compreender que:
Por dentro da doutrina de ‘segurança e desenvolvimento’ a ditadura acionou e aperfeiçoou o planejamento e a violência estatais, como técnicas econômicas e políticas, como forças produtivas complementares. Por dentro da economia política governamental, desenvolveu-se um Estado forte e abrangente, ativo e repressivo, a serviço da grande burguesia financeira, da produção da mais-valia regular e extraordinária (IANNI, 2019, p. 274).
O planejamento econômico da ditadura
brasileira, visou sobretudo garantir as condições favoráveis para a plena
acumulação de capital nos níveis mais elevados possíveis. Nestas
circunstâncias, as classes dominadas, principalmente, operários e camponeses,
foram exploradas ao extremo, o que resultou concretamente no aumento de poder e
privilégios dos ricos em detrimento do aumento da pobreza da maior parte da
população. Assim, a herança oligárquica, autoritária e ditatorial do pode
estatal ressurgiu na Ditadura de 64 com novas roupagens.
O contexto da Ditadura Militar instalada
no Brasil, se configurou como uma “longa noite de trevas”. A prisão, o
sequestro, o desaparecimento e o assassinato, juntamente com o arrojo salarial,
a ingerência governamental nos sindicatos urbanos e rurais, a abolição das
ligas camponesas, a manipulação do boato e do medo, constituíram técnicas de
poder que garantiram a hegemonia e ampla reprodução do capital financeiro e
monopolista.
A associação entre militares, burocratas
e tecnocratas de acordo com Octavio Ianni, tinha o claro propósito de favorecer
empresas privadas, pois,
Isso era tanto mais evidente porque com frequência os técnicos do aparelho estatal eram personagens com ligações diretas, ou indiretas, com empresa privada. Além de que a sua economia política, competência técnica, ou modo de compreender a organização da sociedade, estava sempre fundada na lógica da acumulação do capital; ou no jogo das "forças do mercado" (IANNI, 2019, p. 67).
A prática do poder estatal ditatorial,
implicava, sobremaneira, no controle político da classe trabalhadora em seu
conjunto. E neste sentido, o objetivo dos golpistas era, indisfarçavelmente,
coibir qualquer reação por parte dos movimentos sociais e políticos
organizados, os quais constituíam efetivamente, a única oposição real ao
aparato autoritário da burguesia. É evidente, dessa forma, que a ditadura
militar de 64 foi organizada por um bloco de poder que tinha como principal
propósito engendrar uma contrarrevolução social, que na prática se configurou
como uma estratégia eficiente de consolidação e desenvolvimento dos interesses
econômicos da grande burguesia financeira e monopolista.
Este bloco de poder consistia na
associação de setores tais como: a igreja, a classe média, militares,
policiais, latifundiários, burocratas, tecnocratas dentre outros grupos e
classes. Todos eles mancomunados com o propósito de impedir o ascenso político
da classe operária e do campesinato. A principal razão disso, seguramente, é
porque a década de 60 no Brasil, foi marcada pelo significativo avanço das
organizações de classe. Os operários e camponeses, organizados, conscientes e
combativos, atuavam por dentro e por fora do populismo, nos sindicatos urbanos
e rurais, juntos aos setores das igrejas progressistas, nas ligas camponesas,
nos partidos e sob várias outras formas.
Assim, conforme Octavio Ianni:
A ditadura formou-se e desenvolveu-se como contrarrevolução. O bloco de poder que organizou, planejou e deu o golpe de Estado de 31 de março de 1964, e consolidou-se no controle do aparelho estatal, na prática realizou uma ampla e brutal contrarrevolução (IANNI, 2019, p. 304).
Estas circunstâncias resultaram da crise
em que entrou o estado burguês autoritário, o que significou em linhas gerais,
uma crise econômica, em virtude das contradições entre os setores da própria
burguesia brasileira, as pressões do imperialismo pelo fim do populismo, o
nacionalismo econômico, a politização da classe trabalhadora e, sobretudo do
ascenso político na cena histórica, dos operários e camponeses. Neste contexto
de acordo com Octavio Ianni, criou-se uma situação pré-revolucionária, no
sentido que de efetivamente avançou a consciência política da classe
trabalhadora, principalmente operários e camponeses, o que representou do outro
lado, o enfraquecimento do poder da burguesia. Pois,
As classes dominantes, em sentido amplo, dividiram-se: alguns setores apoiavam o presidente Goulart […]; outro setor concentrava a sua força no Pode Legislativo; outro, ainda, trabalhava ampla e ostensivamente na organização do golpe de Estado […] A despeito disso, no entanto, enfraquecia-se bastante o poder burguês, devido à crise econômica e política e ao ascenso político das classes subalternas, principalmente o proletariado e o campesinato ( IANNI, 2019, p. 307).
Dessa maneira, podemos inferir, numa
perspectiva histórica, que a ditadura militar no Brasil representou uma dupla
contrarrevolução. Num aspecto, foi uma contrarrevolução no sentido de um golpe
de Estado e num outro foi uma contrarrevolução no sentido de uma reação contra
a radicalização política das classes operárias e camponesas. Isso, decerto,
rompeu e destruiu um amplo e sistemático processo de ascenso político das
classes subalternas: operários da indústria, trabalhadores do campo, empregados
e funcionários empobrecidos. Foi, indubitavelmente, um contexto de avanço
político, de organização consciente e de luta que foi interrompido por um golpe
que instalou uma ditadura sangrenta.
Com efeito, o golpe que destituiu João
Goulart, assinalou uma brutal ruptura com a sociedade civil, o que resultou num
profundo processo de segregação social. A máquina de poder repressiva implantou
na prática mecanismos jurídico-políticos que abertamente consolidavam e
desenvolviam os interesses econômicos da grande burguesia financeira e
monopolista. Neste contexto os planos, metas e programas do governo ditador
revelaram seus significados fundamentais. Primeiro, o planejamento
governamental se tornou na prática uma técnica de transformação efetiva de
mais-valia. Isto, possibilitou concretamente o rearranjo e o desenvolvimento
das forças produtivas e relações de produção com vistas à a acumulação e
expansão do capital em larga escala.
Este processo ocasionou de forma
generalizada a subjugação da força de trabalho produtiva ao grande capital.
Segundo, o âmbito do planejamento, em seus mecanismos e atividades no bojo de
uma “parafernália tecnocrática”, passou efetivamente a se constituir como uma
esfera de “articulações” e “metamorfoses” entre a economia política do capital
monopolista e financeiro e a economia política da ditadura da burguesia. Como
afirma Ianni:
O Estado foi levado a desenvolver não só um amplo e complexo instrumental de política econômica, como também desenvolveu uma ampla e complexa articulação interna desse mesmo instrumental. Os vários ministérios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, superintendências, institutos, conselhos etc. Articulam e rearticulam-se por suas organizações, burocracias e tecnocracias (IANNI, 2019, p. 58).
A forma como o poder estatal e o grande
capital monopolista se articulavam para garantir a hegemonia financeira,
cumpria o propósito de desenvolver de forma planejada o crescimento
econômico-social do país, entretanto, isso se dava às custas de enorme arrocho
salarial, intervenção nos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos,
prisões, torturas, assassinato de líderes das oposições e ao aumento violento
da taxa de exploração dos assalariados do campo e da cidade. Assim, de acordo
com a tese de Octavio Ianni, o planejamento econômico do estado autoritário se
consubstanciava como uma “força produtiva complementar”, igualmente ao lado da
força de trabalho, capital, tecnologia e divisão do trabalho.
Podemos citar neste sentido, conforme
destaca Octavio Ianni (2019), alguns dos principais programas instituídos pelo
governo militar: 1) Programa de Ação Econômica do Governo: 1964-1966.
Visava principalmente promover a estabilização financeira e criar outras
condições econômicas favoráveis ao desenvolvimento das forças do mercado e a
prevalência da livre iniciativa empresarial. 2) Diretrizes de Governo: 1967.
Este programa buscava definir as principais linhas da política econômica que
deveriam ser colocadas em prática durante os primeiros meses do governo do
ditador Arthur da Costa e silva (1967-1969). 3) Plano Decenal de
Desenvolvimento Econômico e Social: 1967-1976. Este plano expressava o
caráter totalitário que a ditadura estava ganhando. Os governantes e seus
burocratas evidenciavam as intenções e as decisões que prolongariam por anos o
controle autoritário do Estado. 4) Programa Estratégico de Desenvolvimento:
1968-1970. Tal programa consistia, em muitos aspectos, numa ampla abertura
às empresas privadas. Mostrava como o
poder estatal, enquanto uma instituição econômica e política, se prestava a
garantir as plenas condições para acumulação do capital. 5) Metas e Bases
para a ação do Governo: 1970-1971. A partir deste programa, o governo do
ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) empreendeu as bases fundamentais
de sua política econômica. Buscava sobretudo, garantir a imagem da
“continuidade revolucionária” e da “originalidade”, nas palavras de Octavio
Ianni, de cada ditador que governou “a ferro e fogo o Brasil”. Foram nestes anos
que vigorou no país a propaganda imperialista do “Milagre brasileiro” e do
presumido “Brasil Potência”. Outros planos que seguiam a mesma toada
autoritária foram: o I Plano Nacional de Desenvolvimento: 1972-1974; o II
Plano Nacional de Desenvolvimento: 1975-1979; o III Plano Nacional de
Desenvolvimento: 1980-1985.
Estes programas e planejamentos,
atravessaram largamente as diferentes esferas da vida social brasileira.
Compreendeu acima de tudo, uma articulação entre os diversos segmentos tais
como: as relações entre indústria e a agricultura; a nação e as diferentes
regiões do país; a indústria cultural. O que estava em jogo era sobretudo a
expansão “intensiva” e “extensiva” do grande capital monopolista e financeiro.
Efetivamente, nos anos que antecederam o golpe de 64, o conjunto dos movimentos
sociais vinculados às classes trabalhadoras no Brasil, amedrontaram a burguesia
nacional associada ao capital estrangeiro. João Goulart foi deposto sem reagir
ou insuflar a população para resistir, ainda que grupos de operários,
camponeses e outras categorias sociais tivessem clamados por armas para
combater, nada avançou imediatamente (a resistência foi doravante). Temendo um
“banho de sangue”, Jango recuou.
A burguesia brasileira golpista não
aceitava a possibilidade do poder ficar nas mãos do povo, ou o poder em nome do
povo. Foi subalterna aos interesses do imperialismo na região. Temendo uma
revolução popular, em virtude do ascenso político da classe trabalhadora,
instalou uma ditadura facínora a serviço do grande capital monopolista.
Portanto, podemos afirmar que a ditadura de 64 foi uma ditadura da burguesia.
Sendo assim, essa ditadura representa o fechamento de um período histórico, em
que nenhuma das classes sociais inseridas no processo político brasileiro
logrou sobrepujar a classe dominante. O golpe de 64 inicia um novo ciclo
histórico no país, marcado sobretudo pela primazia da dominação econômica e
política da “grande burguesia monopolista”. Em tais condições
histórico-sociais, as possibilidades econômicas de acumulação do capital
financeiro ocorreram em larga escala, o que significou que os interesses da
burguesia golpista e subserviente ao imperialismo subjugou em grande medida o
conjunto da sociedade brasileira, principalmente a grande maioria da população
espoliada em seus direitos mais básicos.
Antonio Marcondes dos Santos Pereira
Doutor em Educação (UFC)
Membro do GEM/UFC
Membro do GPOSSHE/IMO/UECE
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Membro do GEM/UFC
Membro do GPOSSHE/IMO/UECE
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REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
IANNI,
Octavio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular,
2019.