A Revolução Russa está presente. Segundo Bandeira (2018), na
mitologia germânico-nórdica o tempo é indivisível: o passado mantém-se vivo e
desdobra-se no presente, que flui continuamente, como poderosa realidade. Como
processo revolucionário que teve como protagonista o proletariado urbano
industrial e as massas camponesas, derrotando o imperialismo, a burguesia e os
latifundiários, a Revolução Russa de 1917 é um marco histórico. A conquista do
poder político pelas massas exploradas e oprimidas do antigo Império czarista ainda
bate às portas do século XXI: como espectro a atormentar às classes dominantes,
como esperança de um mundo melhor para os trabalhadores.
Qualquer reflexão, na perspectiva anticapitalista e emancipatória,
das conquistas, contradições, limites e possibilidades da Revolução Russa é benvinda.
É o caso do livro de Ivo Tonet e Sérgio Lessa “A grande revolução russa (1917-1921)”
(2018), que traz aportes interessantes sobre uma temática essencial para os dias
atuais: a possibilidade da tomada do poder político pelos trabalhadores, a
natureza da constituição do proletariado como classe dominante e os caminhos
para a construção do comunismo. Nesse sentido, dialogarei criticamente, isto é,
buscando as coisas pela raiz, sobre essa problemática fundamental para
intelectuais orgânicos do proletariado, para militantes revolucionários e para
o futuro da humanidade.
Entendo que a discussão aberta e franca constitui uma das
melhores maneiras de fazer avançar o conhecimento científico, de aperfeiçoar teorias
e métodos, de desenvolver a postura crítico-radical e constituir mecanismos de
intervenção para a transformação da realidade existente. Portanto, para o
debate ser proveitoso, penso que seja necessário mantê-lo no plano ontológico-científico,
concentrando a discussão científica no essencial, desde a postura metodológica,
teórica e política.
O debate sobre a natureza da Revolução Russa e a formação
social dela originada precede a própria tomada do poder pelos trabalhadores,
influenciando inclusive leituras posteriores sobre o processo revolucionário em
questão. Em síntese é possível identificar quatro concepções sobre a
possibilidades da revolução russa debatidas no seio da social democracia russa
e internacional.
A primeira perspectiva foi a do menchevismo, ala direita do
Partido Operário Social-democrata Russo (POSDR), que possuia intelectuais
marxistas de destaque como Georgi Valentinovitch Plekhanov (1856-1918) e Julius
Martov (1873-1923). Baseado numa naturalização metafísica da história com
resultados fatalistas sobre o processo histórico, advogando um economicismo
objetivista que tornava o crescimento das forças produtivas a base exclusiva do
desenvolvimento político e social. A estratégia política menchevique
alicerçava-se na crença de que a Rússia era um país atrasado, “asiático” e
bárbaro que requeria um longo período de industrialização e “europeirização”
antes que o proletariado aspirasse ao poder. Como a Rússia, devido ao
desenvolvimento limitado de suas forças produtivas, estaria pronta apenas para
uma revolução democrático-burguesa, a tarefa do proletariado era apoiar a
burguesia liberal na derrubada da autocracia czarista e estabelecer um Estado
constitucional democrático. Então, depois que a Rússia se tornasse um Estado
moderno, de capitalismo avançado e democracia parlamentar, estariam postos os
fundamentos para a revolução socialista.
A segunda perspectiva era a do bolchevismo, ala esquerda do
POSDR, de 1903 a 1912, quando se constitui como partido próprio. Sua figura
central foi Vladimir Ilyich Ulyanov (1870-1924),
mais conhecido pelo pseudônimo de Lênin. Os bolcheviques reconheciam o caráter
democrático-burguês da revolução, porém excluíam a burguesia do bloco
revolucionário. Na estratégia bolchevista apenas o proletariado e o campesinato
eram forças autenticamente revolucionárias, com a possibilidade, por meio da
aliança operário-camponesa, de constituir uma ditadura democrática
revolucionária comum.
A questão russa transcendeu os debates internos do POSDR,
envolvendo outras seções da II Internacional. A terceira perspectiva sobre as
tendências da revolução russa foi posta por Aleksandr Parvus (1867-1924) e Rosa
Luxemburgo (1871-1919), os quais reconheciam o caráter burguês da revolução,
insistindo na hegemonia revolucionária do proletariado apoiado no campesinato. Também,
afirmavam que a destruição do absolutismo czarista só seria efetivada por um
governo dos trabalhadores dirigido pela social-democracia, isto é, por um
partido revolucionário marxista, o qual, no entanto, deveria ficar contido
dentro dos limites da democracia burguesa.
A quarta perspectiva do processo revolucionário russo
foi representada por Leon Trotsky (1879-1940), que rompeu com os limites
esquemáticos do marxismo da II Internacional, apreendendo as possibilidades
reais que iam além do dogma de uma revolução russa democrático-burguesa, que
era a moldura das concepções do menchevismo, do bolchevismo e de
Parvus-Luxembugo. Trotsky apresentou como tendência histórica não apenas a
hegemonia do proletariado e a necessidade da tomada de poder, mas a
possibilidade da revolução democrática desdobrar-se ininterruptamente, sem
etapas fixas, em uma revolução socialista [1].
A emergência da União Soviética no cenário mundial, sua
consolidação como potência econômico-militar, sua referência política para
milhões de trabalhadores e a conformação do fenômeno stalinista gerou um
conjunto de interpretações sobre o processo revolucionário russo. Salvadori (1986)
indica alguma dessas interpretações:
1) a teoria de Karl Kautsky (1854-1938) que percebia o
sistema stalinista como consequência do bolchevismo, Stalin seria o herdeiro
lógico de Lenin, pois, a Revolução de Outubro, destruiu as possibilidades de
desenvolvimento democrático da Rússia;
2) a concepção de Rudolf Hilferding (1877-1941) do primado
da política (Estado) sobre a economia no contexto do advento do totalitarismo;
3) a tese de Otto Bauer (1882-1938), de que os bolcheviques
eram revolucionários que levavam a Rússia soviética a empreender o caminho do
socialismo, sendo a ditadura burocrática do stalinismo apenas uma “doença de
crescimento” de uma sociedade socialista;
4) a visão de Trostsky de revolução traída, de tomada do
poder político pela burocracia e de Estado operário degenerado;
5) a proposta de Victor Serge (1890-1947) de degenerescência
totalitária, que atenta para a possibilidade da burocracia stalinista utilizar
a nacionalização para um novo tipo permanente de exploração;
6) as leituras de Bruno Rizzi (1901-1977), James Burnham
(1905-1987) e Max Schachtman (1904-1972) da URSS como sociedade burocrática,
nem socialista nem capitalista;
7) as posições de Karl Kosch (1886-1961), Anton Pannekoek
(1873-1960) e Otto Rühle (1874-1943), que identificaram o bolchevismo como variante
do desenvolvimento capitalista e o stalinismo como um regime burguês.
Além dessas posições vinculadas à social-democracia
reformista, ao comunismo de esquerda, ao trotskismo e à ex-trotskistas, há
outras:
1) a teoria da União Soviética como capitalismo de Estado,
já aventada pela “fração centralismo-democrático” no seio do Partido Comunista
da União Soviética na década de 20 do século passado (Olivier, 2011), na
corrente trotskista de Tony Cliff (1917-2000) e na versão maoísta de Charles
Bettelheim (1913-2003) da luta de classes na União Soviética (1979, 1983);
2) a tese da “nova classe” (1971), do ex-stalinista
iuguslavo Milovan Djilas (1911-1995);
3) a recente contribuição de István Mészáros (1930-2017),
que afirma em Para além do capital (2002)
que as sociedades pós-revolucionárias não eram capitalistas, porém não romperam
com o capital;
4) a tese Christopher J. Arthur (2016), de que o capitalismo
foi destruído na URSS, mas o que restou foi a materialização do capital, no
caso do sistema fabril;
5) as teses clássicas do trotskismo sobre o período de
transição e a economia soviética expressas em trabalhos de Ernest Mandel (1923-1995)
como Tratado de economia marxista
(1969), Para além da perestroika (1989a,
1989b) e El poder y el dinero (1994);
6) Até Fernando Haddad (1992), candidato derrotado a
presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores (PT) nas recentes
eleições fraudadas de 2018 no Brasil, escreveu sobre o tema tratado aqui,
identificando a URSS como um novo modo de produção, o “sistema soviético”.
É óbvio que o conjunto de reflexões não param por
aqui. Apenas indico esse conjunto de concepções para demonstrar a riqueza e
diversidade do debate. É claro que o tema suscita paixões e até sectarismo, mas
isso em si não oblitera o debate científico do marxismo. Entendo que não cabe
nenhum alerta dos perigos de uma prévia tomada de partido para uma melhor
análise possível. No marxismo a análise mais objetiva possível é inseparável da
transformação da realidade social. Disso, decorre uma discordância com a
postura de Ivo Tonet e Sérgio Lessa exposta abaixo:
[...] Não é, evidentemente, nem por sombra, nossa intenção entrar nesse debate. Nossa intenção, aqui, é simplesmente alertar para os perigos que essa prévia tomada de partido pode acarretar, e muitas vezes acarretou, para uma análise o mais objetiva possível. [...] Nosso interesse volta-se para aqueles que são, de alguma forma, favoráveis à revolução. Entre esses também se cristalizaram determinadas posições que dificultam enormemente a análise científica. [...] O que preocupa não é a quantidade de posições a esse respeito. Preocupante é a cristalização de todas essas posições. Disso resulta um sectarismo que inviabiliza qualquer análise científica. Já não se trata mais, então, de compreender o processo histórico, mas de defender determinada posição. Desse modo, defrontam-se leninistas, trotskistas, stalinistas, anarquistas, autonomistas e socialistas democráticos, com as mais variadas subdivisões em cada uma dessas posições. Imiscui-se nisso também o culto a determinadas personalidades que tiveram um papel destacado nesse processo – Lenin, Trotski, Stalin – ou que tiveram posições relevantes a respeito dele, como o caso de Bakunin, Kropotkin e outros anarquistas. Esse culto, tanto à revolução – refletido nos adjetivos que a designam – gloriosa, vitoriosa, grandiosa, extraordinária etc – quanto a essas personalidades cria ao seu redor uma auréola de intocabilidade, de inquestionabilidade, de justificativa das ideias e dos procedimentos que integraram todo esse processo, impedindo, assim, um questionamento em maior profundidade. Como consequência, cada um desses grupos, encastelado na sua posição, pretende-se o detentor da compreensão mais verdadeira do processo revolucionário. Qualquer questionamento das posições defendidas por cada um deles é imediatamente qualificado como heresia, deformação burguesa, ou até defesa do capitalismo (TONET e LESSA, 2018, p. 9-10)
Três motivos iniciais para discordar.
Primeiro, a problemática do processo revolucionário russo e
da natureza da URSS é um debate aberto e antigo. É como coração de mãe, sempre
cabe mais um. O sectarismo está em todos os lugares, em especial dentro das
coordenadas dos que se intitulam marxistas, pois sempre tem alguém querendo se
apropriar da postura original de Marx, candidatando-se a único intérprete. Entendo
que não se deve preocupar com isso. Todos são chamados ao debate. As diversas
posições são, também, intepretações, não há problema nisso. Ainda mais para a
perspectiva de Marx, na qual qualquer interpretação questiona praticamente o
existe. Não levar isso em consideração é ter uma posição próxima ao
positivismo.
Segunda discordância, uma análise ontológico-científica
compreende os indivíduos no seu devido contexto histórico, portanto, passiveis
de crítica e compreensão. Marx e Engels, por exemplo, sempre levaram isso em
consideração não poupando nem seus seguidores mais fiéis. Noutras palavras, os
fundadores do materialismo histórico não podem ser objetos de culto e muito
menos seus intérpretes.
Terceiro, considero o maior equívoco de Ivo Tonet e Sérgio
Lessa aparentarem criticar os grupos que pretendem ter a única intepretação
verdadeira (o que é correto), mas a partir de uma posição isenta de compromisso
ideológicos, como se fossem inovadores em suas teses. Na verdade, os
companheiros não foram os primeiros nem serão os últimos a questionar a
natureza socialista da Revolução Russa, entre tantas perspectivas.
Frederico Costa
Professor da UECE - Universidade Estadual do Ceará
Diretor do Sindicato dos Docentes da Universidade Estadual do Ceará – SINDUECE/ANDES-SN
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário-IMO
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Diretor do Sindicato dos Docentes da Universidade Estadual do Ceará – SINDUECE/ANDES-SN
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário-IMO
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Referências Bibliográficas
[1] Para uma visão mais profunda dessas quatro concepções da revolução russa
e da teoria da revolução permanente ver Löwy (2015).
__________________________________________
ARTHUR,
Christopher J. Um relógio sem corda: epitáfio para URSS. In: ARTHUR,
Christopher J. A nova dialética e “O
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BANDEIRA,
Luiz Alberto Moniz. A desordem mundial:
o espectro da total dominação. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2018.
BETTELHEIM,
Charles. A luta de classes na União
Soviética (1917-1923). 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
___________.
A luta de classes na União Soviética:
segundo período (1923-193). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
DJILAS,
Milovan. A nova classe. 5 ed. Rio de
Janeiro: Agir Editora, 1971.
HADDAD,
Fernando. O sistema soviético:
relato de uma polêmica. São Paulo: Scritta Editorial, 1992.
LÖWY,
Michael. A política do desenvolvimento
desigual e combinado: a teoria da revolução permanente. São Paulo:
Sundermann, 2015.
MANDEL, Ernest. El
poder y el dinero. México, D.F.: Siglo XXI, 1994.
___________.
Além da perestroika: a era Gorbachov
e o despertar do povo soviético, Volume I. São Paulo: Busca Vida, 1989a.
___________.
Além da perestroika: a era Gorbachov
e o despertar do povo soviético, Volume II. São Paulo: Busca Vida, 1989b.
Tratado de economia marxista: Tomo II. México, D.F.:
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MÉSZÁROS,
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OLIVIER, Michel. La
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SAVATORI,
Massimo L. A crítica marxista ao stalinismo. In: HOBSBAWN (Org.). História
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construção do socialismo ao stalinismo. Vol. VII. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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TONET,
Ivo e LESSA, Sérgio. A grande revolução
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