Estamos
na transição para um outro ciclo de acumulação capitalista, um fenômeno
relativamente novo, um ciclo que nasce através da maior catástrofe planetária
desde a segunda guerra mundial. A impotência do capitalismo diante do Covid-19
vem criando muitas expectativas de que a tragédia seria um momento de
renovação, que se abriria um período mais solidário, de capitalismo keynesiano,
de estatizações, renda básica universal. As ilusões na regeneração do
capitalismo pós-coronavírus têm como base material as medidas emergenciais
tomadas por uma série de governos.
Essa
foi e continua sendo a euforia de amplos espectros da intelectualidade de
esquerda. Acredita-se que tudo isso seria possível sem uma luta tenaz da classe
trabalhadora para impor um recuo na ofensiva burguesa, ofensiva que tem na sua
vanguarda uma série de governos de extrema direita e filofascistas.
Intensificação
do Trabalho e a Compressão dos Salários
Estabelecida
a pandemia mundial, a lumpenização das camadas mais populosas do proletariado parece
ter se tornado o plano das classes exploradoras. Os miseráveis pacotes de ajuda
econômicas para trabalhadores informais, por alguns meses, apontam isso. Vale
lembrar que a informalização é uma política predominante no mundo. Segundo a
Organização Internacional do Trabalho (2015), 60,7% da força de trabalho
mundial não possui vínculos trabalhistas. Em muitos países, como no Brasil, a
informalidade chega a metade da força de trabalho. Em outros países da Ásia,
Africa e América Latina, a informalidade é ainda maior.
Durante
a pandemia, o auxílio do governo Bolsonaro aos trabalhadores informais
estabelecido foi de R$ 600,00, aproximadamente 100 dólares. Inicialmente
Bolsonaro cogitou pagar 35 dólares, ou 200 reais. Em outros países, como a
Tailândia, chega a 170 dólares por mês. O que é ainda muito pouco porque é bem
menos que a média salarial dos próprios países. Por sua vez, essa própria média
costuma ficar abaixo das necessidades vitais de uma família de trabalhadores.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
do Brasil, em março o salário mínimo necessário deveria ser de R$ 4.483,20
(aproximadamente 780 dólares).
O
desespero de amplas parcelas da classe trabalhadora por conseguir receber a
miséria de 600 reais, supera em duas ou três vezes o número de inscritos
esperado pelo governo. 600 reais é pouco mais do que a metade dos R$ 1.045,00
de salário mínimo obrigatório para os trabalhadores formais. Passada a
quarentena, com desemprego e subemprego bem maiores do que os atuais, que
atingem, respectivamente, 13 e 30 milhões de trabalhadores, a classe
trabalhadora é induzida a acostumar-se a sobreviver com metade ou menos do
salário que recebia antes da pandemia.
Cria-se
então um novo piso salarial mínimo, rebaixado, formal ou informalmente, porque
em tempos de calamidade a anarquia capitalista aumenta. Os salários são
comprimidos abaixo de seu valor, para o conjunto da classe e, em cada vez mais
amplos setores, também pelos novos aplicativos tecnológicos.
Mais
uma vez, aprofunda-se a superexploração da classe trabalhadora, sobre a qual
escrevera Ruy Mauro Marini, quando os salários pagos são inferiores ao valor da
força de trabalho, impedindo que essa classe se reproduza em suas condições
normais. Também se aprofundará o grau de exploração do trabalho por novas
ferramentas tecnológicas que prolongam a jornada e ocupam ao máximo os momentos
do dia e da noite dos trabalhadores, agora com o trabalho também em casa. A
intensificação do trabalho e a compressão do salário abaixo de seu valor são
duas causas contra arrestantes para a queda da taxa de lucros, já apontadas por
Marx em O Capital, utilizadas pelos capitalistas para evitarem ou saírem das
crises há mais de 120 anos. De lá para cá, mediada pelas conquistas e derrotas
da maioria explorada, a exploração e seus mecanismos se tornaram mais
complexos. Obrigada a sobreviver e se adaptar com rendimentos bem abaixo do
mínimo vital, a barbárie conduz a maioria dos seres humanos a viverem como uma
sub-raça humana.
Fatalismo
e Intencionalidade de Classe
Esse
elemento perverso da superexploração do trabalho se combina com suspeitos
procedimentos sanitários para o SARS-CoV-2. Por exemplo, o da suposta
“imunização em massa”, adotado explicitamente pela Grã Bretanha até o momento
em que o próprio primeiro ministro também contraiu a virose. A minimização da
gravidade do problema, o descaso consciente, a negligência e o fatalismo com a
perda de milhares de vidas, sobretudo da população trabalhadora, revela certa
dose de intencionalidade. A pandemia, que vitima de forma desigual as classes
sociais, é usada, objetivamente, como uma arma da guerra de classes. Se deseja
sobreviver e viver, a classe trabalhadora de modo algum pode aceitar as
previsões fatalistas de seus inimigos como “normal”, “inevitável” o elevado
número de mortes. A classe não pode passivamente admitir seu padecimento e
extermínio.
Falta
razão e sobram ilusões nos que esperam que esses governos e Estados burgueses
venham realizar medidas favoráveis a maioria da população. Essas ilusões se
tornam verdadeiras alucinações diante do salve-se quem puder da nova crise
financeira e da competição por quem parte na frente no novo ciclo de acumulação
de capital. Foram esses governos e Estados que tornaram tão vulneráveis as
condições de vida das massas laboriosas, com medidas ultraparasitárias contra
as classes subalternas (eufemisticamente chamadas de neoliberalismo). A maior
prova disso foi o colapso de quase todos os sistemas de saúde nacionais em
menos de dois meses da nova virose.
Brutalismo,
Coronocracia,...
Achilles
Mbembe, que cunhou o termo “necropolítica”, já apontava antes da pandemia que
caminhávamos para regimes que ele chamou de “Brutalismo”. Esse é o título de
sua obra lançada no início de 2020. Segundo o filósofo camaronês, o projeto
final do “Brutalismo” seria a transformação da humanidade em matéria e energia,
quando todas as esferas da existência são transpassadas pelo capital e o
ordenamento da sociedade é definido por uma mesma orientação de computação
digital. Se ele está correto, a pandemia representa um salto ou uma aceleração
nesse estado de coisas. Muitos analistas em todo mundo, provavelmente entre os
primeiros esteve o jornalista Eshrat Mardi, do Tehran Times, têm usado o termo
“Coronocracia” para se referir as medidas repressivas e centralizadoras.
O
governo de Israel, no Estado que já possuía um caráter nazi-sionista contra os
palestinos, encabeçado pelo o arqui-corrupto primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu, que enfrentaria julgamento por corrupção, aproveitou-se do momento
para estabelecer medidas que ampliam a vigilância sobre os cidadãos, fechou,
oportunamente, os tribunais (o Supremo Tribunal Federal israelense), ampliou a
repressão sobre os palestinos, sem permitir qualquer ingerência, instituiu que
o Exército sionista é a autoridade sanitária máxima, acima do Ministério da
Saúde.
Na
Hungria, Viktor Orbán passa a governar por decreto, criou um estado de
emergência por tempo indefinido e ameaça com prisão de até cinco anos a quem publicar
informações que contrariem as orientações do governo, que “obstruam ou evitem a
proteção eficaz da população”.
No
Peru, o Congresso aprovou uma lei que dá salvo-conduto a policiais e militares
que ferirem ou matarem pessoas sob a justificativa de infração das ordens de
isolamento social. Algo similar ao tal “excludente de ilicitude” para
policiais, defendido pelo ex-ministro Sérgio Moro e por Bolsonaro. Os agentes
da repressão teriam plenos direitos a executar a população sob justificativas
subjetivas como a de “surpresa, medo ou violenta emoção”. Trump fez um giro de
180 graus, do desdém com a pandemia para definições como: “absolutamente
crítico”, “inimigo invisível, incrível”. O presidente dos EUA recomendou uma
injeção de desinfetante no corpo seria benéfica para matar o covid-19.
Desesperadas e ignorantes, dezenas de pessoas seguiram a recomendação de Trump.
O centro de controle de envenenamento de Nova York recebeu 30 chamadas
relacionada ao uso de desinfetante nas 18 horas seguintes à sugestão do
presidente.
Quando
trabalhadores se fragilizam, seus inimigos de classe, os patrões, arrancam-lhes
o couro. Sem uma resistência organizada e vitoriosa dos povos oprimidos e da
classe trabalhadora, as perspectivas apontam para um estágio severo da barbárie
que vivemos. A situação da classe trabalhadora, que já era precária, agora é
globalmente catastrófica. A “nova grande depressão” (terminologia do jornalista
Pepe Escobar) vem fechando milhões de empresas. O desemprego disparou. Segundo
as estimativas otimistas da OIT 25 milhões de empregos serão perdidos. Mas só
nos EUA, cujo governo Trump comemorava o “pleno emprego”, já chega a quase 20%
de desempregados. Se isso é assim no país mais rico do planeta, como será nos
demais? Mesmo a França, representante do sexto poder econômico mundial, foi
incapaz de defender seus cidadãos do vírus, já morreram 23 mil franceses, 10%
de todas as mortes do mundo pelo covid-19 até o momento.
Nesse
quadro depressivo e de oferta da mercadoria força de trabalho há uma queda
brutal dos salários dos trabalhadores com carteira assinada e funcionários
públicos. Todavia, são muito, muito piores, as perspectivas de barbárie para os
precarizados de toda ordem, imigrantes, mulheres.
Os
governos vêm se aproveitando da pandemia para impor verdadeiros estados de
sítio contra as massas, para escraviza-las e para aumentar o controle social
preventivo diante de rebeliões latentes. Todos sabem que o povo pobre e
explorado está sendo arrastado rapidamente para uma situação de luta desesperada
pela vida. Assim, as medidas populistas não regeneram os sistemas de saúde nem
recompõem as condições de vida da classe trabalhadora. De fato, o capital se
aproveita da queda brutal das condições de vida do trabalho para exterminar uma
parte do exército de desempregados excedente, militarizar a vida social e
ampliar o Estado policial.
O
Manifesto “Antiautoritário” dos Neoliberais
Nesse
cenário, cerca de 150 intelectuais neoliberais, oportunistas de direita, em uma
lista encabeçada por ex governantes, aspirantes a voltar ao governo de seus
países na região ibero-latino-americana lançou o manifesto “Que la pandemia no
sea un pretexto para el autoritarismo”, organizado pela "Fundación
Internacional para la Libertad" (FIL), presidida por Mario Vargas Llosa,
ex-escritor de esquerda, convertido em político neoliberal do Perú. O manifesto
também foi assinado pelos ex-presidentes da Espanha (Aznar); Argentina (Macri),
México (Zedillo e Vicente Fox); Colômbia (Uribe); Uruguai (Lacalle e
Sanguinetti); El Salvador (Cristiani) e Paraguai (Franco). Segue-se uma lista
de empresários, economistas, e instituições golpistas como o Instituto
"Mises" do Brasil ou do venezuelano “Vente”, um partido de oposição
que tenta sem sucesso dissociar sua imagem do narcotráfico.
O manifesto critica:
“En lugar de algunas entendibles restricciones a la
libertad, en varios países impera un confinamiento con mínimas excepciones, la
imposibilidad de trabajar y producir, y la manipulación informativa [...] han
suspendido el Estado de derecho e, incluso, la democracia representativa y el
sistema de justicia [...] en las dictaduras de Venezuela, Cuba y Nicaragua la
pandemia sirve de pretexto para aumentar la persecución política y la
opresión”.
Obviamente
que se trata de um clube de cartas fora do baralho. Macri, por exemplo, está muito longe de voltar a ser presidente da Argentina. Nessa e na próxima
encarnação. Mas, quem sabe? Muita coisa tende a mudar (para pior) no
pós-pandemia. Além do perfil dos assinantes, o texto não deixa dúvida de que
não passa de um manifesto de capatazes dos EUA, e, mais provavelmente, da
fração da burguesia imperialista enquadrada dentro do Partido Democrata. No
texto do manifesto neoliberal, os governos nacionalistas como Venezuela e
Nicarágua, e o Estado operário cubano são atacandos como ditaduras. Nenhuma
citação as verdadeiras ditaduras, instituídas por golpes de Estado no
continente latino americano, como recentemente ocorrido na Bolívia, onde as
eleições presidenciais foram suspensas por tempo indeterminado muito antes do
início da pandemia.
Esses
senhores, como Aznar, e seus partidos, como o PP, foram escorraçados do poder
pelo desgaste político junto a população de seus países, devido as suas
políticas de opressão neoliberal e de saqueio do Estado, privatizações e
programas de desvios de recursos públicos para as máfias privadas, das quais
eram representantes políticos. Foram os principais responsáveis por
vulnerabilizar os sistemas de saúde e as condições de vida das massas
laboriosas, agora semi-indefesas diante da pandemia. Agora, esses mesmíssimos
senhores, tentam se apresentar como alternativa aos atuais governos, pegando
carona na insatisfação popular que sabem que vai explodir em breve.
A
direita tradicional reorganiza-se em nome das liberdades democráticas e civis e
contra o autoritarismo. O autoritarismo crescente de fato é um movimento
oportunista de vários governos por centralizar poder político. Bolsonaro
mobiliza sua base neonazista e ameaça com o fechamento do Supremo Tribunal
Federal e do parlamento (como Benjamin Netanyahu fez em Israel) mas por sua
fragilidade política não vem tirando todo proveito possível do momento para
suas aspirações ditatoriais. Assim como o manifesto, o bolsonarismo é contra a
quarentena e acusa aos que a defendem medida contra a pandemia de
"conspiradores para impor uma ditadura globalista comunista".
Bolsonaro poderia tranquilamente também assinar esse manifesto neoliberal
encabeçado por Vargas Losla. Mas, certamente a maioria dos assinantes não
desejariam a adesão do neonazista brasileiro por não quererem ser rotulados de
autoritários e porque exatamente ao executar o programa político e econômico do
manifesto, tornou o Brasil o novo epicentro mundial da pandemia.
Distintas
frações burguesas disputam a barbárie que resultar da associação pandemia-crise
econômica. Cada fração se relocaliza, elabora o programa estratégico que lhe
for mais conveniente, move-se, rearticula-se e faz a agitação correspondente a
sua estratégia. A maioria da população mundial, as principais vítimas desse
processo, precisamos realizar movimentos semelhantes, mas no sentido inverso,
contra as classes exterminadoras e pela humanidade.
A
tragédia já está acontecendo, dela não temos dúvida. A pergunta agora é o que
fazer da tragédia que o sistema mundial do capital nos meteu. De um lado, a
morte, a superexploração e a opressão brutais. Do outro lado, a luta
revolucionária pelo socialismo, pela sobrevivência e por uma vida digna para a
maioria.
Érico Cardoso