sexta-feira, 10 de abril de 2020

Educação e luta de classes




O educador e filósofo Dermeval Saviani trouxe contribuições importantes para a reflexão sobre a importância política do ato de lecionar e do papel social dos educadores na contemporaneidade.

Embora a tradição conceitual do marxismo centrado nas premissas filosófico-políticas do bolchevismo tenha dominado o pensamento crítico e a produção teórica desde o século passado e determinado as estruturas organizacionais da classe trabalhadora, e essa supremacia tenha condenado ao degredo ou à execração concepções políticas que daquela se afastassem, o pensamento do educador brasileiro se insere na perspectiva de ampliação da compreensão das formas do Estado e da sociedade civil de nosso tempo, assim como dos mecanismos políticos de intervenção dos explorados para a supressão do sistema capitalista.
Saviani compreende a escola como espaço de disputa ideológica entre a burguesia e o proletariado e propunha a construção de uma pedagogia que elevasse o nível de compreensão dos alunos da escola pública acerca da realidade social e das tarefas históricas que cabem ao proletariado e demais classes exploradas na sociedade capitalista. No entanto, a tradição marxista opunha-lhe esse ideal com a convicção histórica da ineficácia dessa forma de combate político, dado que a escola não é um espaço de produção da vida material e sua destinação social é de mero instrumento de formação da mão-de-obra especializada de que necessita o sistema capitalista. Essa compreensão sugere a impossibilidade de se converter a escola de seu papel primordial de afirmação da sociedade capitalista em instrumento de sua destruição.
A base teórica dos críticos ao ideal de Saviani baseia-se na compreensão de que os sistemas de ensino, as pedagogias, o controle burocrático sobre sua aplicação e sobre sua eficácia na lógica capitalista estão submetidos aos tecnocratas e seus auxiliares nas esferas do poder de Estado. Desse modo, seria uma tarefa de Sísifo tentar subverter a destinação social da escola por dentro dela mesma. Um desperdício de energia política que deveria estar concentrada nas esferas fundamentais do embate político anticapitalista (as unidades fabris, o grande comércio, os bancos, os bairros operários, o parlamento, os partidos políticos, os confrontos de rua etc.).
Em contrapartida, as concepções teóricas que emprestam apoio ao ideário do autor mencionado partem de uma premissa conceitual proposta originalmente pelo pensador italiano Antonio Gramsci, segundo a qual as sociedades ocidentais diferem profundamente da sociedade russa à época da revolução bolchevique, e que o modelo de construção do processo revolucionário para essas sociedades ocidentais deve ser distinto daquele encetado pelos dirigentes do bolchevismo.
Para aquele pensador, a sociedade contemporânea ocidental tem organizações sociais já plenamente solidificadas, um sistema político que açambarca o conjunto das classes sociais e nelas se legitima pela tradição e pelas ideologias dominantes da classe dirigente exploradora. Um Estado centralizador e regulador da vida social, manobrado inteligentemente pelo poder dominante burguês. E, por essas características, a dimensão da luta política dos explorados deve estar centrada primordialmente nos espaços de disputa ideológica, nos quais se fortalece a hegemonia político-ideológica da burguesia.
A escola, portanto, seria um espaço imprescindível no embate político anticapitalista, posto que a juventude proletária (futuros operários-camponeses-eleitores-cidadãos) estariam se incorporando no processo de construção de uma unidade política ampla entre os diversos setores dominados pelo grande capital, constituindo uma aliança social que minimizaria  a hegemonia burguesa e sua influência entre os explorados em geral.
Para essa corrente do pensamento, a mera construção de uma organização partidária para a aglutinação dos explorados não seria suficientemente eficaz no processo revolucionário e nem principalmente asseguraria a vitória daquele após a tomada do poder pelo proletariado e seus aliados, tendo em vista o processo de burocratização que solapou todas as tentativas de se estabelecer uma sociedade livre da exploração e da dominação política em diversos países, em função da centralização excessiva do poder nos órgãos dirigentes dos partidos que lideraram aquelas revoluções, e que acabaram por assenhorar-se do controle da sociedade.
O princípio da liberdade do indivíduo e da autonomia como fundamentos fenomenológicos da nova organização social pós-revolução ganha contornos de imprescindibilidade nessa nova proposta de construção da sociedade socialista, que pressupõe a noção de hegemonia a  partir da adesão consciente e participativa dos indivíduos que constroem coletivamente, no cotidiano de seu engajamento, a nova ordem social. Assim, a noção mesma de definhamento progressivo do Estado no socialismo estaria factualmente assegurada na compreensão contínua e na atividade social consciente de todos os indivíduos, cônscios de seus deveres e de suas atribuições nas novas formas de relações sociais de produção já solidificadas na ação coletiva integradora e evolucionária da nova sociedade emancipada dos conflitos de classes.
Portanto, segundo esses pensadores, a pedagogia histórico-crítica proposta por Saviani teria uma importância inquestionável no processo emancipatório da luta política, pois seria um instrumento vigoroso de embate ideológico dentro do espaço da educação pública, cuja eficácia incidiria na consciência crítica da juventude proletária, que já não estaria subjugada pela visão de mundo da burguesia, mas vinculada às formas de luta dos explorados, partícipes conscientes da luta pela hegemonia social proletária na sociedade brasileira e mundial.
Dessa forma, para esses teóricos, todos os espaços sociais são importantes para a construção da unidade dos explorados e todas as formas de luta se equivalem politicamente no processo de construção de uma nova hegemonia social que determine a vitória da revolução socialista e evite a sua degeneração política ulterior.
No entanto, para os teóricos vinculados à tradição do bolchevismo, essa concepção inevitavelmente desemboca numa política de adequação à ordem vigente, sucumbindo às pressões do Estado burguês opressor, controlado pelos interesses dominantes do capital transnacional. Isto porque, invariavelmente, a condução dos movimentos sociais dos explorados por partidos adeptos daquela teoria (considerada pelos pró-bolchevismo como reformismo pequeno-burguês) converge para a conciliação de classes, como o demonstram as diversas iniciativas de partidos ditos progressistas em vários países, inclusive no Brasil, cujos projetos políticos redundaram em derrotas históricas da luta dos explorados.
Para os bolchevistas, iniciativas que priorizam os aspectos puramente ideológicos, sem vínculo com os setores determinantes da vanguarda dos explorados e suas lutas objetivas, incorrem sempre na política de conciliação de classes, tal como a teoria pedagógica de Dermeval Saviani.  A condução da luta política na Educação Básica do proletariado, para estes teóricos, deve estar focada na construção e fortalecimento de organizações estudantis e de professores que se insiram na luta contra o Estado burguês e os interesses do capital imperialista, e não apenas contra projetos pedagógicos propostos pela intelligentsia da classe dominante.
E aqui surge um segundo embate teórico entre as duas correntes de pensamento que advogam o marxismo como arcabouço conceitual de análise da sociedade capitalista, da história da civilização humana e da ontologia do ser social, e no qual se insere a teoria crítica pedagógica de Saviani: o professor é um proletário?
     Em sua trajetória filosófica, que vai de “A ideologia alemã” até sua obra mais impactante “O capital”, Marx define classe social a partir do vínculo dos indivíduos com a produção da vida material e com o usufruto desta. Os proprietários dos meios de produção (burgueses) e os que a estes vendem sua força de trabalho e geram a riqueza social (proletários) são as classes fundamentais da sociedade capitalista, na acepção daquele autor. Entre essas duas classes fundamentais, outras se interpõem, com funções sociais distintas (planejamento, controle, fiscalização, coerção, pesquisa, administração etc.), chamadas classes médias, além do campesinato. Para Marx, o proletariado concentra em si os interesses históricos de todas as classes subjugadas pela burguesia, e sua luta por libertar-se da exploração capitalista redundará na libertação de todas aquelas demais classes também exploradas pelo capital. Mas como o proletariado está imediatamente submetido ao rigor da exploração de sua força de trabalho e como é o produtor da base econômica de existência da vida material da sociedade, a ele cabe precipuamente a tarefa histórica de eliminação das relações sociais de produção capitalistas, e ,portanto, nele deve residir prioritariamente todos os esforços políticos de conscientização, organização e de embates políticos contra a sociedade capitalista e o Estado burguês.
Por isso, para a maioria dos teóricos ligados à tradição do bolchevismo, os professores não integram o proletariado e, portanto, não são prioridade da luta política dos explorados contra o capital, o que subestimaria a teoria pedagógica proposta por Saviani.
Outros teóricos marxistas, no entanto, compreendem de forma diferente o conceito marxiano de proletariado e de luta política contra o capital e suas manifestações sociais. Estes teóricos partem do princípio de que a teoria de Marx necessita de uma atualização, em função das inovações por que passou o capitalismo no século passado e seus desdobramentos na contemporaneidade.
Segundo eles, na sociedade capitalista do século XIX, analisada por Marx, os proletários eram os operários fabris que produziam as mercadorias basicamente com a força física que movia as máquinas rudimentares naquele momento histórico. Ainda não havia o impacto da segunda revolução industrial taylorista nas unidades produtivas e nem a complexificação das sociedades capitalistas como se deu a partir do pós-guerra e da automação e da informatização do processo produtivo. Novas formas de trabalho assalariado, não vinculados diretamente à produção de mercadorias, mas que repercutem sobre aquela, são gestados pela dinâmica do progresso social surgido pelas novas formas de acumulação capitalistas e pelas necessidades sociais que elas engendram (motoristas de ônibus, zeladores, médicos, professores, vigilantes, vendedores, etc). Assim, seja cavando buracos, vendendo produtos , levando os trabalhadores às unidades de trabalho ou formando a mão de obra intelectual de que necessita o capitalismo, todos os trabalhadores materializam seu trabalho socialmente, situando-os no conceito marxiano de trabalho abstrato, o que os converte em proletários, posto que seu trabalho passa a ser computado no tempo socialmente necessário para a produção de mercadorias (o tempo de escavação para a construção ou ampliação da indústria, o tempo de transporte de funcionários à unidade produtiva, o tempo para o tratamento do operário adoentado, o tempo para o aprimoramento intelectual da futura mão de obra necessária etc.). Aqui cabe uma observação: o professor da rede privada gera imediatamente a mais-valia ao proprietário da escola ou universidade. Já os professores da rede pública, pagos pelo Estado (representante dos interesses burgueses), geram a este a mais-valia apropriada pelo conjunto da classe burguesa.
Para esses teóricos, os setores do proletariado que produzem diretamente as mercadorias são ainda a base fundamental dele, aquela parcela eminentemente revolucionária, mas não se pode abdicar da organização e da luta dos demais setores da classe proletária, posto que são também o fermento que inflará os embates de classe e ampliará o leque de alianças com outras classes sociais exploradas pelo capital na luta contra o Estado burguês e as relações sociais de dominação e exploração.
Por esses motivos, tais teóricos consideram importante a contribuição de Dermeval Saviani para a luta emancipatória no âmbito da educação pública. Para eles, o dispêndio de energia na construção de mecanismos de organização e de conscientização crítica de professores e alunos repercutirá ulteriormente nas unidades fabris, nos bancos, no grande comércio e nas forças repressivas do Estado burguês, contribuindo decisivamente para a organização e a luta do proletariado e demais explorados contra a sociedade do capital.


Prof. Maurício Oliveira - professor da rede estadual de educação do Ceará, da rede municipal de Maracanaú e mestrando em Educação (PPGE/UECE).
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