O
educador e filósofo Dermeval Saviani trouxe contribuições importantes para a
reflexão sobre a importância política do ato de lecionar e do papel social dos
educadores na contemporaneidade.
Embora
a tradição conceitual do marxismo centrado nas premissas filosófico-políticas
do bolchevismo tenha dominado o pensamento crítico e a produção teórica desde o
século passado e determinado as estruturas organizacionais da classe
trabalhadora, e essa supremacia tenha condenado ao degredo ou à execração
concepções políticas que daquela se afastassem, o pensamento do educador
brasileiro se insere na perspectiva de ampliação da compreensão das formas do
Estado e da sociedade civil de nosso tempo, assim como dos mecanismos políticos
de intervenção dos explorados para a supressão do sistema capitalista.
Saviani
compreende a escola como espaço de disputa ideológica entre a burguesia e o
proletariado e propunha a construção de uma pedagogia que elevasse o nível de
compreensão dos alunos da escola pública acerca da realidade social e das
tarefas históricas que cabem ao proletariado e demais classes exploradas na
sociedade capitalista. No entanto, a tradição marxista opunha-lhe esse ideal
com a convicção histórica da ineficácia dessa forma de combate político, dado
que a escola não é um espaço de produção da vida material e sua destinação
social é de mero instrumento de formação da mão-de-obra especializada de que
necessita o sistema capitalista. Essa compreensão sugere a impossibilidade de
se converter a escola de seu papel primordial de afirmação da sociedade
capitalista em instrumento de sua destruição.
A
base teórica dos críticos ao ideal de Saviani baseia-se na compreensão de que
os sistemas de ensino, as pedagogias, o controle burocrático sobre sua
aplicação e sobre sua eficácia na lógica capitalista estão submetidos aos
tecnocratas e seus auxiliares nas esferas do poder de Estado. Desse modo, seria
uma tarefa de Sísifo tentar subverter a destinação social da escola por dentro
dela mesma. Um desperdício de energia política que deveria estar concentrada
nas esferas fundamentais do embate político anticapitalista (as unidades
fabris, o grande comércio, os bancos, os bairros operários, o parlamento, os
partidos políticos, os confrontos de rua etc.).
Em
contrapartida, as concepções teóricas que emprestam apoio ao ideário do autor
mencionado partem de uma premissa conceitual proposta originalmente pelo
pensador italiano Antonio Gramsci, segundo a qual as sociedades ocidentais
diferem profundamente da sociedade russa à época da revolução bolchevique, e
que o modelo de construção do processo revolucionário para essas sociedades
ocidentais deve ser distinto daquele encetado pelos dirigentes do bolchevismo.
Para
aquele pensador, a sociedade contemporânea ocidental tem organizações sociais
já plenamente solidificadas, um sistema político que açambarca o conjunto das
classes sociais e nelas se legitima pela tradição e pelas ideologias dominantes
da classe dirigente exploradora. Um Estado centralizador e regulador da vida
social, manobrado inteligentemente pelo poder dominante burguês. E, por essas
características, a dimensão da luta política dos explorados deve estar centrada
primordialmente nos espaços de disputa ideológica, nos quais se fortalece a
hegemonia político-ideológica da burguesia.
A escola,
portanto, seria um espaço imprescindível no embate político anticapitalista,
posto que a juventude proletária (futuros operários-camponeses-eleitores-cidadãos)
estariam se incorporando no processo de construção de uma unidade política
ampla entre os diversos setores dominados pelo grande capital, constituindo uma
aliança social que minimizaria a
hegemonia burguesa e sua influência entre os explorados em geral.
Para
essa corrente do pensamento, a mera construção de uma organização partidária para
a aglutinação dos explorados não seria suficientemente eficaz no processo
revolucionário e nem principalmente asseguraria a vitória daquele após a tomada
do poder pelo proletariado e seus aliados, tendo em vista o processo de
burocratização que solapou todas as tentativas de se estabelecer uma sociedade
livre da exploração e da dominação política em diversos países, em função da
centralização excessiva do poder nos órgãos dirigentes dos partidos que
lideraram aquelas revoluções, e que acabaram por assenhorar-se do controle da
sociedade.
O
princípio da liberdade do indivíduo e da autonomia como fundamentos
fenomenológicos da nova organização social pós-revolução ganha contornos de
imprescindibilidade nessa nova proposta de construção da sociedade socialista,
que pressupõe a noção de hegemonia a
partir da adesão consciente e participativa dos indivíduos que constroem
coletivamente, no cotidiano de seu engajamento, a nova ordem social. Assim, a
noção mesma de definhamento progressivo do Estado no socialismo estaria
factualmente assegurada na compreensão contínua e na atividade social
consciente de todos os indivíduos, cônscios de seus deveres e de suas
atribuições nas novas formas de relações sociais de produção já solidificadas
na ação coletiva integradora e evolucionária da nova sociedade emancipada dos
conflitos de classes.
Portanto,
segundo esses pensadores, a pedagogia histórico-crítica proposta por Saviani
teria uma importância inquestionável no processo emancipatório da luta
política, pois seria um instrumento vigoroso de embate ideológico dentro do
espaço da educação pública, cuja eficácia incidiria na consciência crítica da
juventude proletária, que já não estaria subjugada pela visão de mundo da
burguesia, mas vinculada às formas de luta dos explorados, partícipes
conscientes da luta pela hegemonia social proletária na sociedade brasileira e
mundial.
Dessa
forma, para esses teóricos, todos os espaços sociais são importantes para a
construção da unidade dos explorados e todas as formas de luta se equivalem
politicamente no processo de construção de uma nova hegemonia social que
determine a vitória da revolução socialista e evite a sua degeneração política
ulterior.
No
entanto, para os teóricos vinculados à tradição do bolchevismo, essa concepção
inevitavelmente desemboca numa política de adequação à ordem vigente,
sucumbindo às pressões do Estado burguês opressor, controlado pelos interesses
dominantes do capital transnacional. Isto porque, invariavelmente, a condução
dos movimentos sociais dos explorados por partidos adeptos daquela teoria
(considerada pelos pró-bolchevismo como reformismo pequeno-burguês) converge
para a conciliação de classes, como o demonstram as diversas iniciativas de
partidos ditos progressistas em vários países, inclusive no Brasil, cujos
projetos políticos redundaram em derrotas históricas da luta dos explorados.
Para
os bolchevistas, iniciativas que priorizam os aspectos puramente ideológicos,
sem vínculo com os setores determinantes da vanguarda dos explorados e suas
lutas objetivas, incorrem sempre na política de conciliação de classes, tal
como a teoria pedagógica de Dermeval Saviani.
A condução da luta política na Educação Básica do proletariado, para
estes teóricos, deve estar focada na construção e fortalecimento de
organizações estudantis e de professores que se insiram na luta contra o Estado
burguês e os interesses do capital imperialista, e não apenas contra projetos
pedagógicos propostos pela intelligentsia da classe dominante.
E
aqui surge um segundo embate teórico entre as duas correntes de pensamento que
advogam o marxismo como arcabouço conceitual de análise da sociedade
capitalista, da história da civilização humana e da ontologia do ser social, e
no qual se insere a teoria crítica pedagógica de Saviani: o professor é um
proletário?
Em sua trajetória filosófica, que vai de “A
ideologia alemã” até sua obra mais impactante “O capital”, Marx define classe social
a partir do vínculo dos indivíduos com a produção da vida material e com o
usufruto desta. Os proprietários dos meios de produção (burgueses) e os que a
estes vendem sua força de trabalho e geram a riqueza social (proletários) são
as classes fundamentais da sociedade capitalista, na acepção daquele autor.
Entre essas duas classes fundamentais, outras se interpõem, com funções sociais
distintas (planejamento, controle, fiscalização, coerção, pesquisa,
administração etc.), chamadas classes médias, além do campesinato. Para Marx, o
proletariado concentra em si os interesses históricos de todas as classes
subjugadas pela burguesia, e sua luta por libertar-se da exploração capitalista
redundará na libertação de todas aquelas demais classes também exploradas pelo
capital. Mas como o proletariado está imediatamente submetido ao rigor da
exploração de sua força de trabalho e como é o produtor da base econômica de
existência da vida material da sociedade, a ele cabe precipuamente a tarefa
histórica de eliminação das relações sociais de produção capitalistas, e
,portanto, nele deve residir prioritariamente todos os esforços políticos de
conscientização, organização e de embates políticos contra a sociedade
capitalista e o Estado burguês.
Por
isso, para a maioria dos teóricos ligados à tradição do bolchevismo, os
professores não integram o proletariado e, portanto, não são prioridade da luta
política dos explorados contra o capital, o que subestimaria a teoria
pedagógica proposta por Saviani.
Outros
teóricos marxistas, no entanto, compreendem de forma diferente o conceito
marxiano de proletariado e de luta política contra o capital e suas
manifestações sociais. Estes teóricos partem do princípio de que a teoria de
Marx necessita de uma atualização, em função das inovações por que passou o
capitalismo no século passado e seus desdobramentos na contemporaneidade.
Segundo
eles, na sociedade capitalista do século XIX, analisada por Marx, os
proletários eram os operários fabris que produziam as mercadorias basicamente
com a força física que movia as máquinas rudimentares naquele momento
histórico. Ainda não havia o impacto da segunda revolução industrial taylorista
nas unidades produtivas e nem a complexificação das sociedades capitalistas
como se deu a partir do pós-guerra e da automação e da informatização do
processo produtivo. Novas formas de trabalho assalariado, não vinculados
diretamente à produção de mercadorias, mas que repercutem sobre aquela, são
gestados pela dinâmica do progresso social surgido pelas novas formas de
acumulação capitalistas e pelas necessidades sociais que elas engendram
(motoristas de ônibus, zeladores, médicos, professores, vigilantes, vendedores,
etc). Assim, seja cavando buracos, vendendo produtos , levando os trabalhadores
às unidades de trabalho ou formando a mão de obra intelectual de que necessita
o capitalismo, todos os trabalhadores materializam seu trabalho socialmente,
situando-os no conceito marxiano de trabalho abstrato, o que os converte em
proletários, posto que seu trabalho passa a ser computado no tempo socialmente
necessário para a produção de mercadorias (o tempo de escavação para a
construção ou ampliação da indústria, o tempo de transporte de funcionários à
unidade produtiva, o tempo para o tratamento do operário adoentado, o tempo
para o aprimoramento intelectual da futura mão de obra necessária etc.). Aqui
cabe uma observação: o professor da rede privada gera imediatamente a
mais-valia ao proprietário da escola ou universidade. Já os professores da rede
pública, pagos pelo Estado (representante dos interesses burgueses), geram a
este a mais-valia apropriada pelo conjunto da classe burguesa.
Para
esses teóricos, os setores do proletariado que produzem diretamente as
mercadorias são ainda a base fundamental dele, aquela parcela eminentemente
revolucionária, mas não se pode abdicar da organização e da luta dos demais
setores da classe proletária, posto que são também o fermento que inflará os
embates de classe e ampliará o leque de alianças com outras classes sociais
exploradas pelo capital na luta contra o Estado burguês e as relações sociais
de dominação e exploração.
Por
esses motivos, tais teóricos consideram importante a contribuição de Dermeval
Saviani para a luta emancipatória no âmbito da educação pública. Para eles, o
dispêndio de energia na construção de mecanismos de organização e de
conscientização crítica de professores e alunos repercutirá ulteriormente nas
unidades fabris, nos bancos, no grande comércio e nas forças repressivas do
Estado burguês, contribuindo decisivamente para a organização e a luta do
proletariado e demais explorados contra a sociedade do capital.
Prof. Maurício Oliveira - professor da rede estadual de educação do Ceará, da rede municipal de Maracanaú e mestrando em Educação (PPGE/UECE).
Photo by Patrick Tomasso on Unsplash