Estratégias e táticas são expressões que se
consolidaram no vocabulário militar. Se considerarmos as analogias históricas
entre o mundo da guerra e o mundo da política, é compreensível o uso de
elementos desse vocabulário na análise das classes sociais e de suas lutas.
Posto isso, a exposição que irei desenvolver analisa as determinações gerais em que se inscrevem as noções de estratégias e táticas na linguagem marxista.
Marx: a massa popular dominada e a estratégia das revoluções de maioria
Marx escreveu em As lutas de classe na França
que todas as revoluções até hoje (refere-se ao século XIX) resultaram no
desalojamento de uma determinada classe por outra: todavia, todas as classes
que até agora dominaram eram pequenas minorias em face à massa popular
dominada. (2008, p.43). Desse ponto de vista, qualquer discussão estratégica,
no âmbito marxista, deve partir dessa tese fundamental do arsenal marxiano.
Levada a estes termos, uma compreensão digna de ser reputada como marxista
parte do princípio oposto das velhas revoluções, i.e., de que a necessária
transformação social decorre do desalojamento de pequenas minorias em face à
massa popular dominada. Devido a essa estratégia, todo o demais é absolutamente
tático.
Todas as revoluções vitoriosas do passado, que
precedem à indústria burguesa e ao proletariado, são revoluções que subtraem o
poder do jugo de uma minoria social determinada e o entregam ao domínio de uma
nova minoria dirigente. As insurreições escravas e de servos, em geral,
acabaram em banhos de sangue que nutriram o poderio de uma minoria e sufocaram
as maiorias que lutavam em nome da liberdade. A sociedade industrial burguesa
cria as condições que ensejam o aparecimento de uma massa popular dominada,
mas, para o infortúnio das classes dominantes, tremendamente concentrada. Os
levantes de massa existiram, ao longo do século XIX, como ensaios de revoluções
vitoriosas de maioria. As suas derrotas provisórias sinalizaram para a
possibilidade de triunfos duradouros, o que, seguramente, desde o primeiro
instante, acenderam o sinal de alerta nas hostes burguesas. O esmagamento da
Comuna de Paris, por meio de métodos brutais e inapeláveis, demonstrou que a
classe dos capitalistas e a ordem que se ergueu à volta de seus interesses, com
efeito, não estavam dispostas a contemporizar em face à massa popular oprimida
e a sua estratégia revolucionária.
As revoluções nos Países Baixos, na Inglaterra e na
França, entre os séculos XVII e XVIII, embora dramáticas e comoventes,
conduziram ao poder, em última análise, pequenas minorias em face à massa
popular dominada. A derrota das minorias anacrônicas não elevaram ao poder a
ampla massa da população, mas minorias que, à época, apoiaram-se em um programa
florescente e adiantado.
É neste contexto que emerge a estratégia de uma
revolução que, pela primeira vez, pode conduzir a massa popular oprimida a um
protagonismo que lhe permita engendrar uma situação na qual a maioria inculque
o seu poder em face às pequenas minorias. Essa estratégia marcou as revoluções
do século XX, e o retrocesso dos Estados Operários, primeiros degenerados e
depois abatidos, representa não mais do que um episódio da história e o não o
fim dessa busca de protagonismo da massa trabalhadora.
Se as revoluções do passado restauraram o poder da
minoria sob a forma de uma nova minoria, as revoluções da época do capitalismo
imperialista instauram o domínio e a autoridade de uma maioria social: a
moderna classe trabalhadora. As suas organizações carregam um história de erros
e hesitações, mas a estratégia proletária é a única que pode apontar para além
das restaurações de minorias.
A estratégia e as táticas em Marx
Já é possível adentrar naquilo que é essencial: para
que a estratégia da classe trabalhadora seja bem sucedida, e consequentemente,
a vitória seja duradoura, os trabalhadores precisam ganhar para o seu
estratagema a grande massa do povo. Estudando a experiência francesa do século
XIX, essa é uma das conclusões do Marx. Quando se referia à grande massa do
povo, ele pensava, principalmente, nos camponeses. No Brasil atual, talvez
devêssemos pensar nos camponeses, também, mas, igualmente, nos sem-terra e nos
pobres que se aglomeram nos grandes núcleos urbanos.
Aqui, já é possível enunciar três aspectos
fundamentais desse debate. O primeiro deles é que a luta de classes não é um
campo de choques puramente espontâneos. Ela se manifesta vivamente em disputas
tático-estratégicas. O segundo aspecto a ser considerado é que as noções de
tática e estratégia são bastante relativas. O terceiro aspecto, e o mais importante
deles, é que a emancipação da classe trabalhadora é a estratégia que orienta a
ação que se ampara no marxismo. Aliás, para Marx, esse era o segredo revelado
da revolução do século XIX. A questão é que esse segredo ultrapassou as
fronteiras do século XIX. Esse fato fez com que as posições marxistas, ao longo
de todo século XX, sofressem uma repressão contínua da burguesia e do aparelho
do Estado. A retórica bélica do neofascismo, em pleno século XXI, contra o
marxismo, de certo modo, indica que o segredo do século XIX, alcançou o XX e
chegou ao XXI, o que sinaliza o grau de atualidade desse debate estratégico.
Por trás dele está a luta pela manutenção ou destruição da ordem burguesa,
conforme sugeriu Marx em Luta de classes na França (2008, p.92).
Nessa luta, a organização sindical para resistir
aos ataques do capital e do Estado é uma tática imediata, necessária e
insubstituível. Mas essa tática se liga a uma tática preferencial: converter o
movimento dos trabalhadores num movimento histórico livre e autônomo, como
indica Marx (idem, p. 171). Essa conversão se realizaria mediante a organização
política independente dos trabalhadores. Daí o empenho de Marx de dotar a
classe trabalhadora de um programa – o Manifesto Comunista – e de uma
ferramenta política: a I Internacional ou Associação Internacional dos
Trabalhadores (AIT).
Assim, a tática preferencial - movimento histórico
livre e autônomo - é uma estratégia em relação à tática sindical, mas é uma
tática em relação à estratégia da emancipação. Como se observa, a aplicação dos
termos é muito viva e não cabe numa simples receita técnica.
É necessário, aqui, abrir um parêntese.
Há quem no interior da esquerda não se canse de
tomar como estratégico aproveitar os limitados espaços de liberdade propiciados
pela democracia representativa. Nos anos 1970, à luz do eurocomunismo, cresceu
a ideia da democracia parlamentar, não como dotada de um valor de classe, mas
de um valor universal. A recomendação de Marx, em A guerra civil na França,
era outra: "Que (os operários) aproveitem, calma e resolutamente, as
oportunidades da liberdade republicana, para o trabalho da sua própria
organização de classe" (2008, p.373). Assim, a liberdade política, embora
respeitável e inescusável, não possui um fim em si mesmo. Ela é útil na medida
em que possibilita o trabalho político e organizativo da classe trabalhadora.
Por esse motivo, em um raciocínio marxista, há diferenças entre uma ditadura
aberta da burguesia - como as ditaduras fascistas nos anos 20 e 30 do século
passado ou de um regime autocrático como o de 1964, no Brasil -, e uma
democracia parlamentar, na qual o trabalho político e organizativo dos
trabalhadores, malgrado os limites, possuam liberdade de funcionamento.
Concluído o parêntese, é possível afirmar que essas
questões definem o lugar da tática e da estratégia no legado marxista. As
táticas são meios necessários que calçam o trabalho estratégico. Se não temos
em vista esse trabalho, as táticas podem se tornar nós cegos no meio do
percurso. Marx não se contentou com a mera emancipação política, embora jamais
a tenha desprezado. Nunca, no entanto, renunciou à emancipação social como alvo
estratégico. Para ele, emancipação política e emancipação social eram momentos
de um mesmo processo, mas o primeiro era meio para se alcançar o segundo: um
autogoverno dos produtores.
Mas, para alcançar esse fim, Marx, novamente em A
guerra civil na França (2008, p.408) sublinhava que a classe trabalhadora
"terá de passar por longas lutas, por um série de processos
históricos", e, em cada luta e em cada processo histórico, há de empregar
uma infinidade de táticas, isto é, de meios para alcançar o seu alvo estratégico:
a própria emancipação.
Tendo a sua estratégia em mira, as arranjos e
disposições da classe trabalhadora devem fazer usos de meios concretos de obter
às condições mais vantajosas e as posições mais favoráveis. Isso implica criar
ações de solidariedade de classe, realizar assembleias, articular movimentos
grevistas, participar de manifestações públicas, escrever moções e protestos,
efetuar o trabalho de propaganda, enfrentar as forças oficiais de repressão e
os grupos paramilitares, usar o parlamento, levantar-se contra os seus senhores
etc. Todos esses meios são válidos se não se dissipa do horizonte atingir a sua
finalidade.
Em suma, a orientação aos fatos atuais corresponde às táticas que, cotidiana e concretamente, uma formação marxista deve aplicar. A luta sindical é uma tática, a ação parlamentar é outra tática e assim sucessivamente. Essas lutas não têm um fim em si. Por isso, fala-se de tática.
Tática e estratégia depois de Marx
Moreno (2008) considerava que, para um marxista, só
existem duas estratégias fundamentais: construir o partido revolucionário e a
mobilização permanente da classe trabalhadora até a conquista do poder por
organizações dessa mesma classe. Se isso é assim, tudo o mais pertence ao
terreno do arsenal tático. Nessa perspectiva, o que é estratégico pertence ao
tempo de longa duração, e o tático diz respeito ao tempo breve, à sucessão de
eventos. Quanto à essa questão, Moreno é bastante sucinto e categórico: "O
objetivo estratégico é de longo prazo; as táticas são os meios para chegar a
esse objetivo" (2008, p.193). Nessa lógica, para ele "Todas as
táticas são válidas se se adaptam ao momento concreto, presente, da luta de
classes e, portanto, servem para ajudar a mobilizar as massas e construir o
partido" (p. 194).
Moreno busca se apoiar no marxismo clássico. Por
isso, aqui, cabe um retorno à Lênin. As suas concepções estratégicas se
espalham ao longo de todo de um trabalho de cerca de três décadas de
militância. Considerando o que escreveu Marx, Lênin o aprofunda e o enriquece à
luz das experiências do século XX, com as suas guerras, revoluções e lutas
políticas próprias, notadamente ao oferecer uma definição de tática, que
influenciará vigorosamente toda gramática marxista:
Por tática de um partido entende-se a sua conduta política ou o caráter, a orientação e os métodos da sua atuação política. O congresso do partido adota resoluções táticas para definir de modo preciso a conduta política do partido no seu conjunto em relação com as novas tarefas ou em vista de uma nova situação política. (LÊNIN, 1978, p. 16).
Numa frase: a tática é a conduta política que se
adota, concretamente, frente a uma determinada situação política, delineando as
tarefas daí correspondentes. No caso de mudança da situação política,
seguramente, mudam as tarefas, mudam as táticas. Diferentemente das estratégias,
que são válidas para toda uma época histórica, as táticas são sempre
provisórias. Desse modo, as táticas são válidas para períodos curtos, respondem
às tarefas imediatas e atuais, até que mudanças imponham uma reorientação. Já a
estratégia só perderia o seu sentido à medida em que a época histórica
que ensejara a sua existência, finalmente, se achasse sobrepujada.
Indo mais longe na reflexão, se a tática responde a
uma análise política concreta, ou, como prefere Lênin (1978), se apoia nos
fundamentos dos fatos, a estratégia responde a uma análise científica
histórica, isto é, a uma análise de maior longevidade.
Isso expresso, caberia um questionamento: por que
para os marxistas esse tema parece tão caro? Talvez Trotsky ofereça uma pista a
esse enigma no livro Em defesa do marxismo, quando escreveu que "O
socialismo não se realiza por 'si mesmo', mas como resultado da luta das forças
vivas: as classes e seus partidos" (s/d, p.46). Até por essa razão,
Trotsky nunca considerou a Revolução de Outubro como um acidente. Logo, seria
impossível entendê-la sem considerar uma série de condições e referências históricas
e políticas, dentre elas a situação objetiva da Rússia Czarista, a situação
internacional, a guerra, as táticas e estratégias esgrimidas por Lênin e os
bolcheviques etc.
Partindo dessa linha de raciocínio, são as táticas
e as estratégias que conduzem ou não ao socialismo, até porque não há um
caminho natural até uma sociedade socialista.
Agora mesmo, no terreno da crise na qual o Brasil
está engolfado, as classes e os partidos ajustam as suas táticas e miram os
seus objetivos estratégicos. Não há um caminho natural para superação da crise.
A solução será o resultado da luta das forças vivas.
Se "A tática é posta à prova nos momentos
críticos e de responsabilidade", como escreveu Trotsky (1979, p. 308), o
momento atual é propício a esse teste de fogo. Para que não se entre no
labirinto sem o necessário fio de Ariadne, esse esforço de explicitação dos
conceitos tem a sua relevância, até para que o empirismo taticista não
constitua um dique ante os delineamentos estratégicos.
Fábio José de Queiroz
Professor da Universidade Regional do Cariri – URCA e militante da Resistência.
Referências
LÊNIN, V.I. Duas
táticas da social democracia na revolução democrática, Lisboa: Editorial
Avante, 1978.
MARX, Karl. As
lutas de classe na França, in: A revolução antes da revolução, São
Paulo: Expressão Popular, 2008.
__________. A
guerra civil na França, in: A revolução antes da revolução, São Paulo:
Expressão Popular, 2008.
MORENO,
Nahuel. O partido e a revolução, São Paulo: Sundermann, 2008.
TROTSKY, Leon.
Em defesa do marxismo, São Paulo: Proposta Editorial, S/D.
_________. Revolução
e contrarrevolução na Alemanha, São Paulo: Livraria Editora Ciências
Humanas, 1979.