quinta-feira, 25 de junho de 2020

A privatização da água e do saneamento e a pandemia


A aprovação pelo senado federal do Marco Regulatório  do Saneamento, traduzido no PL 4162/19, indica as tendências de fortalecimento de um mercado de água, ao estabelecer, em última análise, um alinhamento entre massa líquida, saneamento e mercado. Concretamente, a água e o saneamento se convertem, de maneira categórica, em mercadorias, o que tende, mais do que nunca, a tornar dinheiro em mais dinheiro. Aliás, dessa conversão entende bem o relator da matéria, o empresário Tasso Jereissati, o homem da Coca-Cola no Brasil. Assim,  o Projeto de Lei, que já havia sido acolhido e deliberado na Câmara dos Deputados, foi aprovado pelos senadores por 63 votos a 13, sublinhando a correlação de forças que, hoje, determina o caráter das votações essenciais no parlamento.

Cria-se, assim, um molde legal, jurídico e político de mercantilização de um segmento que, em larga medida, ainda está debaixo do controle de estados e municípios, e o faz sob o repetido argumento da inoperância do Estado, embora se esqueça, em geral, premeditadamente, que firmas estrangeiras, ao longo do tempo, cuidaram dessa tarefa em muitos lugares do país, e o fizeram muito mal, o que ensejou uma entrada estatal mais efetiva no setor. Ainda hoje, há capitais importantes, como Manaus, em que uma companhia privada está incumbida desse encargo, e o realiza precariamente.

            Muitos estudiosos da temática, a exemplo do pesquisador Flávio José Rocha da Silva, relatam os casos da França e da Inglaterra, países nos quais o Estado assegurou todo trabalho de saneamento, considerando que empresas privadas foram incapazes de honrar contratos e realizar as tarefas que lhes cabiam. Posteriormente, as empresas estatais foram privatizadas, permitindo ganhos fabulosos ao capital privado. A perda de qualidade do trabalho, bem como os altos custos, no entanto, produziram um intenso questionamento das privatizações e, em certos casos, a reestatização foi a saída encontrada. Ou seja: a experiência histórica tem revelado o campo de incompatibilidade que se forma à luz das relações entre a febre lucrativa dos agentes do mercado e às necessidades sociais da população, mesmo nas economias centrais.

            No Brasil, Collor deu os principais passos, mas foi no governo de FHC que se intensificou a ideia da água, não como um bem público, mas um recurso dotado de “valor econômico”, um bem mercantil, para o qual as formas estatais de administração e distribuição, pouco a pouco, deveriam transitar em direção às modalidades de apropriação privada. Os governos do PT, por seu turno, avançaram nas parcerias público-privadas, sem, contudo, agilizar os processos mais agudos de mercantilização pleiteados pelo grande capital. Temer tentou, sem êxito, acelerar o tempo e as medidas favoráveis aos extraordinários direitos reivindicados pelo mercado, mas deixou o legado de uma proposta, e essa foi apropriada por Jair Bolsonaro-Guedes e transformada no PL 4162/19.

            Os privilégios particularistas da burguesia foram saudados por Paulo Guedes que, ao falar do Projeto de Lei, exclamou: “Está lindo!”. Nesse mesmo sentido, embora saiba que o diferenciador do projeto aprovado consiste simplesmente na adoção de um caminho que facilita o processo de privatização do setor de água e saneamento, a comentarista da Globo News, Juliana Rosa, saudou a decisão do senado como “uma vitória dos mais pobres”.

            Não se trata de uma euforia do governo ou da Globo. De fato, toda a burguesia aclamou a deliberação senatorial. A Folha de São Paulo exibiu a sua posição por meio de editorial. Os noticiários da Band News não esconderam a animação de seus chefes. Em pleno São João da pandemia, os representantes do capital soltaram rojões. Entende-se, por fim, porque a grande mídia confere imunidade à economia política do bolsonarismo.

No caso dos poderes constituídos, notadamente do poder executivo e do congresso nacional, a conclusão é lapidar: eles atuaram como zelosos executores das demandas do mercado. De Jair Bolsonaro a Alcolumbre, passando por Rodrigo Maia, foram capazes de se desembaraçar de um intricado labirinto, para, aproveitando-se da pandemia, “passar a boiada”. Não por acaso, o curso privatista se acelera em múltiplas direções, como se observa no caso de 23% de florestas públicas que, de repente, se viram em mãos privadas. A destruição acelerada das florestas demonstram o quanto é dolorosamente tangível a índole devastadora das forças particulares do capital. É essa índole devastadora, sequiosa do lucro rápido, que se volta ao setor de água e saneamento, não mais para tê-lo em pequenos pedaços, mas, agora, por inteiro.

Para justificar o itinerário privatista pretendido, ressaltam as conhecidas limitações de acesso dos mais vulneráveis, não só à água tratada, mas a uma necessária rede de esgoto. Os números são desencontrados, mas estima-se que próximo de 40% da população não têm acesso à rede de esgoto e 1\7 não usufrui de um sistema de água potável. Os que se apoiam nesses números para justificar às pretensões dos capitalistas, conscientemente, ocultam os cortes nos investimentos públicos em nome de políticas econômicas de austeridade e, sobretudo, mascaram que as condições sanitárias desiguais e desumanas, em última instância, espelham as profundas desigualdades sociais produzidas pela própria lógica do regime social vigente,. Ao defender uma medida que favorece essa lógica, fatalmente, apontam não para solução das demandas sanitárias da maioria da população, mas para que o capital se aposse de novos mananciais, tendo em vista o enriquecimento de poucos. Por último, mas não  irrelevante, é a ausência de um plano central para o setor, que, nestes termos, carece de prioridade. A única solução que o neoliberalismo é capaz de oferecer é privatizá-lo, a pretexto de universalizá-lo.

Acontece que as promessas dos neoliberais de universalização não se sustentam, uma vez que as privatizações, nos anos recentes, fundamentalmente, trouxeram incalculáveis tragédias, dentre as quais a de milhões de brasileiros, que morando em áreas mais distantes dos maiores centros urbanos, sofrem dificuldades para efetuar uma simples ligação telefônica; outros tantos milhões padecem de outro modo de incomunicabilidade, impedidos de contatos online, conforme se desprende da impossibilidade real, em meio à pandemia, de aulas e atividades remotas, a não ser excluindo uma parcela significativa dos estudantes, muitas vezes desprovida da felicidade de um mero sinal de wi-fi; sem se falar de exemplos mais dolorosos, como Brumadinho e Mariana, em que a privatização trouxe catástrofe e genocídio. A única universalização é a do tormento. Mas, enquanto houver algo a ser privatizado, os capitalistas e os seus ideólogos não se furtarão de lançar ao ar eternas promessas de um sol de primavera.

A nova promessa de sol é a da universalização do saneamento básico, até 2033. Amparados nessa promissão, os articulistas da mídia capitalista reproduzem o discurso no qual privatização é sinônimo de modernidade. Não se enrubescem ao dizer que ao se aprovar o Marco Regulatório, a tarefa é ”tirar atraso de décadas”. No fundo, o tal “marco” apenas abre caminho às privatizações e, a pretexto de responder às desigualdades sociais e sanitárias extremas, reveladas pela pandemia, descortina um novo setor à fúria desmedida do capital. Nesse processo, o sucateamento das companhias públicas, isto é, a destruição das empresas estatais, se dará, par a par, com a “atração” de investimentos, algo há muito esperado pelos empresários, e, desde sempre, cobrado pela mídia comercial.

Estima-se investimento de até 600 bilhões de reais, mas tudo se resume a um sem fim de especulações, bem ao gosto de um sistema econômico cujo funcionamento está muito próximo ao de um cassino. Não é menos paradoxal que, junto disso, os próceres do capital soprem uma cantilena de que entre tarifa social e lucro não há qualquer incongruência. Portanto, os pobres devem esperar e logo vão ter água tratada, saneamento básico e uma tarifa barata. O trabalhador, no capitalismo, costuma ouvir falar de sonhos de uma noite de verão, mas, em regra, acorda devendo o dia que mal começou, pois labuta para pagar as dívidas e vive algemado por quantias devidas que não cessam de bater à sua porta.

Quem não se lembra das privatizações de companhias de energia que ocorreram em alguns estados? Hoje, essas companhias, ao lado das empresas de telecomunicação, encabeçam as listas de reclamação e tiram o sossego do homem e da mulher que vivem da venda de sua força de trabalho. Delas, seguramente, pode se dizer tudo, menos que se caracterizam por adotar como linha prioritária a adoção de tarifas sociais. Nesse quesito, em especial, nunca houve, e não há, garantias seguras. Os pobres rurais e urbanos são os que mais sofrem os efeitos dessa mera evocação retórica, que não se traduz em serviços tecnicamente eficientes e socialmente acessíveis.

No que concerne à essa retórica, é a promessa de dias melhores que a torna possível, mas o seu simples desenho torna o futuro, desde já, o sinal indevido e indesejado da tragédia. Uma tragédia já conhecida, e que se torna ainda mais sombria quando se nota que, em meio a uma crise humanitária como poucas vezes se viu na história, o governo e o congresso aprovam medidas que prejudicam a grande massa trabalhadora e outras que favorecem os detentores de vastos latifúndios de capital. Isso atribui ao discurso neoliberal um caráter  singularmente cínico, mas é apoiado nele que estão passando a boiada. Se essa quadra política não se inverte e, ao contrário, todo esse programa ultraneoliberal permanece, o trabalhador vai pagar caro até para lavar as mãos. A falta de empatia de Jair Bolsonaro é completada pela falta de empatia dos apologistas do seu programa econômico. Por esse motivo, à luta pelo Fora Bolsonaro se deve adicionar a defesa de um programa que represente os interesses da imensa maioria do povo e não de alguns poucos capitalistas. Ou triunfa esse caminho ou a boiada continuará passando, com ou sem Bolsonaro.


Fábio José de Queiroz

Professor da Universidade regional do Cariri  (URCA)

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