Para
o discurso teórico pós-moderno a realidade é volúvel, dispersa e fragmentada,
portanto, inapreensível em sua essência ontológica, ou melhor, ele nega que
exista uma essência objetiva em si real do mundo concreto. Tal corrente de
pensamento tem como posição epistemológica central, postular o fim das
metanarrativas modernas, o fim da perspectiva da totalidade enquanto um
fundamento teórico-metodológico de compreensão da realidade histórico-social.
Assim, afirma François Lyotard no seu livro A condição pós-moderna (1979), (ele
talvez tenha sido o principal arauto na difusão da ideia de que vivemos numa
época pós-moderna) que este novo contexto histórico se inaugura, precisamente,
com a falência da metanarrativa científica moderna, a descrença em relação às
concepções de mundo totalizantes e a emergência de uma sociedade
pós-industrial, por conseguinte, o projeto moderno “do sistema-sujeito é um
fracasso, o da emancipação nada tem a ver com a ciência, está-se mergulhando no
positivismo de tal ou qual conhecimento [...] as reduzidas tarefas da pesquisa
tronaram-se tarefas fragmentárias que ninguém domina” (LYOTARD, 1998, p. 74).
O filósofo francês discute basicamente a crise de legitimidade do saber científico da modernidade, solapada pelos novos processos tecnológicos-informacionais que, por sua vez, engendraram uma nova forma de vida social e cultural possibilitando aos indivíduos traçarem novos caminhos de realizações no curso das constantes transformações do momento histórico atual. Nesse sentido, o livro de Lyotard funda a discussão sobre a pós-modernidade, como uma mudança geral na condição da humanidade. “Simplificando ao extremo”, afirma Lyotard,
considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências [...]. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo o crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia. A função narrativa perde seus atores [...], os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos [...]. Assim, nasce uma sociedade que se baseia menos numa antropologia newtoniana [...] e mais numa pragmática das particularidades de linguagem (LYOTARD, 1998, p. 16, aspas no original).
O
pensamento pós-moderno ao fundamentar seus postulados teóricos na perspectiva
da fragmentação para analisar a realidade (só um conhecimento deste tipo pode
acessá-la segundo ele) incorre numa sentença descabida, pois, a realidade
social do sistema capitalista “é totalizante
em formas e graus sem precedentes. Sua lógica de transformação de tudo em
mercadoria, de acumulação, maximização do lucro e competição satura toda a
ordem social”. Por isso mesmo, um entendimento profundo e fundamentado desse
“[...] sistema totalizante requer
exatamente o tipo de conhecimento
totalizante que o marxismo oferece e os pós-modernistas rejeitam” (WOOD,
1999, p. 19, itálicos no original).
Do
lado oposto, a atualidade da categoria da totalidade em Lukács nos permite
fazer um contraponto teórico-metodológico ao pensamento pós-moderno justamente
no sentido da crítica à ideia de que a realidade só pode ser apreendida de
forma fragmentada em seus aspectos particulares atomizados. Para os
pós-modernos, no contexto histórico atual profundamente marcado pela fluidez
das mercadorias, das escolhas “livres” no consumo, dos jogos de linguagem que
conferem significação às coisas e das identidades plurais deslocadas, a própria
realidade se torna um amálgama multifacetado sem “coerência de conjunto”. No
entanto, somente a perspectiva da totalidade é que permite entender que o
conjunto destes processos sociais constitui uma unidade da diversidade
mutuamente determinada, um todo coerente, inteligível.
Nesse sentido, para Fredric Jameson em seu livro Valences of the dialectic (2009, p. 201,
tradução livre)[1]: “A atualidade de Georg Lukács sempre pareceu nos últimos anos fundar dois
conceitos: a defesa do realismo literário e a ideia de totalidade”, assim, de
acordo com o teórico norte-americano, “a inseparabilidade entre a concepção de
realismo de Lukács e sua noção de totalidade”[2]
(Idem, p. 210), constitui hoje “um argumento que [...] nos compromete a
confrontar toda uma contemporaneidade, pós-estruturalista ou mesmo pós-moderna”[3]
(Idem). Jameson entende, de um modo geral, que a pós-modernidade prefigura a lógica cultural do capitalismo tardio e
que dessa forma ela
é profundamente marcada por dois aspectos decisivos: a transformação da
realidade em imagens e a fragmentação do tempo em uma série de presentes
perpétuos. Ambos os aspectos, para o teórico, portanto, constituem dimensões
consoantes desse novo momento do capitalismo. Com efeito, a perspectiva da
totalidade em Lukács que Jameson faz referência é aquela que configura “uma estrutura na qual vários tipos de
conhecimentos são posicionados, perseguidos e avaliados”[4] (Idem, p. 211) constituindo um fundamento
teórico-metodológico decisivo para a compreensão crítica da realidade atual do
capitalismo tardio em seu todo articulado que o pensamento pós-moderno que
fazer parecer desconexo, fragmentado e inapreensível em sua essência objetiva e
contraditória.
A
recusa metodológica da totalidade por parte do pensamento pós-moderno, acaba se
tornando um equívoco epistemológico. Reduzir a realidade a um conjunto de
relações e processos sem conexões ontológicas entre si resulta,
inevitavelmente, na construção de conhecimentos desagregados, destituídos de
mediações concretas, sem o firmamento necessário que é a unidade dialética da
história. Desse modo, a “destotalização” do pensamento pós-moderno “pressupõe
paradoxalmente a mediação de uma totalidade articulada e sua determinação em
última instância. Na falta disso, a sopa de legumes literários e o caldeirão de
culturas mercantis constituiriam nem sequer mais um pensamento”, afirma Daniel
Bensaïd (2008, p.86). A sociedade capitalista é uma “totalidade relacional”,
isto é, tudo o que existe (enquanto uma objetividade histórico-social) está
ontologicamente interconectado como “um organismo vivo”. A concepção de
totalidade no marxismo, especialmente, em Lukács como podemos constatar nesta
tese, possui uma característica metodológica fundamental: as partes só ganham
sentido se referidas ao todo, pois, elas constituem um “momento de
totalização”; as partes se refletem no todo e o todo pressupõe a unidade interligada
das partes entre si.
Se
o pensamento pós-moderno preconiza a atomização dos sujeitos em seus âmbitos de
sociabilidade de interesses particulares, sem posição de classe e isolados, a
totalidade dialética do marxismo não comporta dissoluções fragmentárias, pois
ela repousa sobre as bases de uma unidade histórico-concreta, e sendo assim,
não perde de vista o fato de que a reprodução do capital que recai sobre o
conjunto das relações sociais, inescapavelmente.
Nada do que existe concretamente está desconectado de suas mediações processuais. A não ser que a concepção de totalidade esteja baseada numa perspectiva abstrata, formal, idealista. Com efeito:
A totalização dialética supõe a impossibilidade, para sujeitos particulares de terem acesso a essa posição suspensa. Num contexto em que a exaltação do instante se opõe à inteligibilidade histórica, em que os conceitos universalizantes são enfraquecidos, o de totalidade torna-se suspeito de desvios totalitários [...]. Se a totalidade abstrata tem uma conduta totalitária, a totalização concreta, aberta à sua própria negação, opõe-se à tirania do absoluto (BENSAÏD, 2008, p. 87-88).
A categoria da totalidade orienta o sentido da “diferenciação” e da “contradição”, dessa maneira, a realidade objetiva não é uma sequência de imagens simbólicas atribuídas pelos jogos de linguagem, antes, do contrário, ela é uma “síntese de múltiplas relações” configurada num todo dialeticamente articulado. A totalidade em Lukács pressupõe que a realidade social é movimento, contradição, devir. Nesse sentido, as classes sociais e suas lutas representam a força da história, assim:
[...]. Do ponto de vista da ontologia do ser social isso significa, num primeiro: - que cada classe enquanto complexo social só pode existir em certa sociedade; - que, por essa razão, a sua existência relativamente autônoma comporta uma relacionalidade irrevogável com essa sociedade em sua totalidade e com as demais classes da mesma sociedade; - que uma classe só existe socialmente em interação prática com as demais classes da formação em que se encontra (LUKÁCS, 2013, p. 185).
Mas
para o pensamento pós-moderno a noção de classe social perdeu seu sentido. Num
mundo caracterizado pela volubilidade da existência, pelas “subjetividades
pulverizadas” e pela sensação do efêmero em que o “tempo histórico parece se
estreitar em torno de um presente reduzido ao instante que passa” (Bensaïd),
(presentismo sem historicidade), as classes sociais se dissolveram em miríades
de “guetos” sem vinculação orgânica com os horizontes da revolução social
geral. Desse modo, a recusa pós-moderna das metanarrativas, da razão universal
e do projeto de emancipação do sujeito histórico, constituem os fundamentos
teórico-ideológicos exigidos hoje, como pretexto, para refundar o fazer
científico, político, social e cultural do mundo “em migalhas”, desnorteado,
sem télos.
O “fim das utopias” é uma noção bem definida pela
perspectiva pós-moderna. Nada poderá ser feito para se ir além do capitalismo,
pois este sistema é o último refúgio da história humana. Não há como transpor
seus limites. Sendo assim, toda tentativa de se fazer concretamente uma
revolução social, fatalmente resultará em fracassos, frustrações, ilusões e
arrependimentos. Esse desalento com o “fim da história” desencadeia uma atitude
geral de conformismo político programado. Mas é isso mesmo que preconizam os
pós-modernos: desconstruir a historicidade dos processos sociais e pensar as
possibilidades da Revolução como uma coisa “fora de moda”. Este é um projeto
consciente daqueles que querem manter intactos os pilares do sistema produtor
de mercadorias. Para tanto, o conhecimento científico[5]
precisa ser manipulado para atender aos interesses dos homens de negócios e
suas instituições financeiras, que não subtraem esforços em empreender novos
“nichos” no mercado global. Parece que não existe vida fora do mercado!
Todavia, a realidade é conflito e contradição. E
nesse aspecto, nada garante que as coisas continuem como estão. A luta de
classes ainda é a força motriz da história. Com efeito, a pesquisa
teórico-científica marxista tem como um de seus pressupostos determinantes:
entender o mundo para transformá-lo. E aqui, o método dialético de Marx é uma
ferramenta imprescindível para a classe trabalhadora se apropriar do
conhecimento do mundo e satisfazer suas variegadas necessidades humanas. Isso é
relevante porque a luta contra a exploração capitalista é uma demanda social e,
a construção de uma sociabilidade superior, uma exigência imperativa. Nesse
sentido, só um conhecimento científico ligado às questões de classe pode
possibilitar ao conjunto da humanidade a apropriação teórico-metodológica
necessária para se compreender os fundamentos que constituem as legalidades do
mundo social contemporâneo. “Na vida cotidiana, os fenômenos frequentemente
ocultam a essência do seu próprio ser em lugar de iluminá-la”, portanto,“em
condições históricas favoráveis” o conhecimento científico “pode realizar uma
grande obra de esclarecimento nesse terreno” e revelar assim as determinações
da essência do mundo concreto (LUKÁCS, 2012, p. 294). Por isso mesmo,
encontramos no marxismo (enquanto apropriação universal da ciência e da
cultura) a chave de entendimento mais correto dos problemas humanos, bem como,
o programa de luta ideológica e política mais avançado do nosso tempo.
As incertezas pós-modernas não cabem na amplitude e
profundidade do mundo real em devir ininterrupto. A história, seguramente, é um
campo aberto de possibilidades objetivas, no entanto, sem a concepção da luta de classes - tão
fundamentais para a inteligibilidade das contradições sociais e os fatores
concretos das transformações históricas - incorre-se no equívoco de naturalizar
os problemas reais das condições materiais de existência vigentes. Se para o
pensamento pós-moderno o que prevalece como postulado epistemológico de
compreensão da realidade é perceber e relativizar as subjetividades
fragmentadas e descentradas no cotidiano, então as pequenas causas sem rumo
preciso, perdem seu sentido em virtude da continuidade de uma vida cada vez
mais reificada e reificante. Portanto, sem fazer concessões ao discurso
pós-moderno, a repolitização das formas de luta social enquanto uma alternativa
ao esgotamento do modelo de representação democrático-parlamentar hoje, é uma
tarefa que o próprio movimento da classe trabalhadora e o conjunto dos
movimentos sociais devem colocar para si, no sentido de repensar as estratégias
de ações revolucionárias que possam abrir concretamente os caminhos rumo à
sociedade comunista.
A
perspectiva da totalidade no marxismo pressupõe que o conhecimento científico
só é possível porque existem legalidades e regularidades que dirigem a
realidade objetiva e que o ser social, por meio de seu ato de trabalho,
engendra a esta realidade. Dessa forma ele também reproduz dialeticamente no
plano do pensamento, o movimento efetivo da sociedade enquanto uma totalidade concreta em sua dinâmica
processual e contraditória. Portanto, conhecer a essência do real é apreender a
sua dinâmica e estrutura tal como ele é em si mesmo. Para a dialética
materialista, “a teoria é o movimento real do objeto transposto para o cérebro
do pesquisador – é o real reproduzido e
interpretado no plano ideal (do pensamento)” (NETTO, 2011, p. 21, itálico
no original).
De um
modo geral, a categoria da totalidade na Ontologia
do ser social de Lukács (enquanto um fundamento teórico-metodológico
haurido do pensamento de Marx) trata de compreender o “ser-precisamente-assim”
de um “complexo de complexos” em interconexão com as legalidades imanentes que
o determinam. Nesse sentido, o espelhamento dialético do real no plano do
pensamento do indivíduo que investiga o mundo dos homens, se realiza pela
mediação dos complexos categoriais ontológicos. Isso, indubitavelmente,
representa um avanço para a fundamentação hoje, de um conhecimento científico
em bases materialistas que seja capaz de apreender ontologicamente a totalidade
das relações constitutivas de um mundo marcado de forma profunda pelas
contradições de uma formação social cada vez mais irracional e alienante.
Evidenciar a essência dessas contradições e apontar os caminhos para superá-las
é a função da categoria da totalidade no marxismo. Lukács, notadamente, foi
quem mais avançou nessa direção.
Doutor em Educação pela UFC, professor substituto da UECE e membro do GPOSSHE.
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REFERÊNCIAS
BENSAÏD, Daniel. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008.
JAMESON, Fredric. Valences of the dialectic. London: Verso, 2009.
LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. 5.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
_________. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.
NETTO, José Paulo. Introdução ao método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
WOOD, Ellen Meiksins. O que é a agenda “pós-moderna”?. In: WOOD, Ellen Meiksins e FOSTER, John Bellamy (Orgs). Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
[1]
No original: “The actuality of Georg Lukács has in recent years always seemend
to founder on two concepts: the defense of literary realism and the idea of
totality” (JAMESON, 2009, p. 201).
[2]
No original: “inseparability between Lukác’s conception of realism and his
notion of totality” (Idem, p. 210).
[3]
No original: “an argument that now commits us to confront a whole contemporany,
poststructural, or even postmodern” (Idem).
[4] No original: “mas
sim uma estrutura na qual vários tipos de conhecimento são posicionados,
perseguidos e avaliados” (Idem, p. 211).
[5] “A liquidação pós-moderna da totalidade”, esclarece Daniel Bensaïd, “aparece como uma rejeição dogmática das estruturas e dos sistemas. Ela vai contra pesquisas em ciências naturais (biologia ou química orgânica) e sociais (quer se trate de teorias da informação ou do conceito de ecossistema, central no desenvolvimento de uma ecologia crítica)” (BENSAÏD, 2008, p. 89).