O caminho empreendido por Lukács no aprofundamento crítico sobre a
essência do estético, com base na perspectiva ontológico-materialista, o conduz
a caracterizar a arte como um fenômeno histórico-social, colocando a
peculiaridade filosófica da “positividade estética” no centro de suas
reflexões. A partir dessa concepção, o filósofo húngaro afirma, que a essência
da arte não pode ser caracterizada como uma categoria imutável preexistente,
mas sim, como o resultado de determinações sociais empreendidas num longo
processo de desenvolvimento histórico.
Dessa maneira, assinala em sua obra, que a produção e recepção estéticas
são produtos da subjetividade humana, as quais brotaram no cotidiano, e por
isso, efetivam-se nele como um reflexo antropomórfico. Lukács (1966, p. 254)
revela, ainda, que os reflexos da magia, da religião e do cotidiano, tal como a
arte, realizam-se, de forma antropomórfica, dessa maneira, expõe que na “vida
cotidiana los deseos y las satisfacciones se centran según eso en el indivíduo:
por una parte, nascen de su existência indiviual, real y particular y, por
outra parte, se orientan a una satisfacción real, práctica, de deseos
personales concretos. No hay duda de que la conformación
artística nace de ese suelo”.
Esta semelhança dificulta ainda mais, o processo de separação da arte dos
demais reflexos, pois, de acordo com o esteta húngaro, mesmo operando, em
última instância, através de princípios diferentes, os reflexos antropomórficos
efetivaram-se milenarmente de forma unificada no processo prático. Desse
modo, Lukács demonstra que
Es mucho más fácil practicar la distinción, conceptualmente al menos, en las mezclas del principio estético com el científico producidas por la vida social que en el primitivo tronco común de arte y magia, o religión. Pues en el primer caso, […] se contraponen los modos desantropomorfizador y antropomorfizador del reflejo de la realidad, mientras que en el segundo caso se trata de variedades de la antropomorfización (LUKÁCS, 1966, p. 232).
Compreendemos, portanto, que o processo separatório do reflexo artístico
foi “muy lento, contradictorio e irregular, discurre, para el arte mismo, com
mucha problematicidad y con crisis internas”(LUKÁCS, 1966, p. 232), e apenas,
com o desenvolvimento gradual, com um determinado nível de elevação da
consciência, este reflexo vai desprendendo-se e elevando-se paulatinamente,
enquanto um complexo particular.
Para Lukács a arte se constitui enquanto uma objetivação do ser social,
como um momento fundamental e decisivo do processo de autoformação do ser
humano; um reflexo antropomorfizador da
realidade, ou seja, criado pelo homem; próprio do homem e para o homem. Assim,
segundo o autor: “La génesis de lo estético es un análogo desprenderse de la autoconsciencia respecto de la práctica cotidiana, como la gênese de la
<<consciência de>> en la independización del reflexo científico de
la realidad” (LUKÁCS, 1966, p.253).
A arte em seu processo de “independentização” em relação à magia e à
religião, por exemplo, se constituiu, com base no prisma ontológico, numa
atividade que surge na vida cotidiana, ou seja, parte dela para em sequência, a
ela retornar, “produzindo nesse movimento reiterativo uma elevação na
consciência sensível dos homens” (FREDERICO, 2005, p. 110).
O reflexo próprio da vida cotidiana pressupõe para Lukács, um “materialismo espontâneo”, pois, “os
homens intuitivamente percebem que o mundo exterior existe de modo independente
de sua consciência” (FREDERICO, 2005, p.
113). Mas esse reflexo imediato do homem comum capta apenas a aparência
fenomênica das coisas, fazendo com que o homem se relacione com um mundo, com
características, descontínuas e heterogêneas. O homem imerso na imediaticidade
do cotidiano é designado por Lukács como homem
inteiro e o homem que se eleva do seu cotidiano, pela arte, por exemplo, é
designado pelo autor como homem
inteiramente.
Temos assim, que a arte em contraposição a vida cotidiana oferece ao
homem um mundo homogêneo, depurado das “impurezas” e consequências próprias do
aspecto heterogêneo do cotidiano. Como assinala Celso Frederico (2005, p. 113, negritos do original):
Na fruição estética, o indivíduo depara-se com a figuração homogeneizadora, mobilizando toda a sua atenção para adentrar-se nesse mundo miniatural, despojado dos acidentes e variáveis que geram as descontinuidades do cotidiano. Essa concentração da atenção, essa mobilização das forças espirituais, produz uma elevação do cotidiano. Nesse momento, segundo Lukács, o indivíduo supera a sua singularidade e é posto em contato com o gênero humano.
Tentando estabelecer um diálogo sobre esse ponto em específico, tomamos
emprestadas as reflexões de Leandro Konder (2009, p. 155) que estudando o pensamento estético de Lukács em relação à
arquitetura, destaca que esta possui dois tipos de reflexo:
Segundo o filósofo húngaro, existem na arquitetura dois tipos de reflexo: num primeiro momento, a construção reflete determinadas necessidades práticas e o construtor se baseia no conhecimento científico, desantropomorfizador, tanto das funções que a construção deve cumprir quanto dos meios materiais e das normas técnicas adequadas ao processo construtivo. Esse primeiro reflexo se apresenta inexoravelmente a todos os grupos humanos, de todos os tempos e de todos os lugares, pois é possível existir uma sociedade sem pintura ou sem tragédia, mas não sem construções.
Konder enfatiza, ainda, que a partir da construção, é possível um segundo
reflexo (antropomorfizador) que constitui a expressão sensível, subjetiva
presente na característica física da construção, o que exprime “a sensibilidade
espacial” da época o que permite comunicar seus traços históricos, sociais e
culturais constituídos no seu devir temporal específico. Dessa forma, ressalta
o autor que:
Esse segundo reflexo faz da arquitetura, na terminologia lukacsiana, uma arte de mimese duplicada (gedoppelte Mimesis). É ele que permite às obras-primas da arquitetura produzir um efeito catártico que leva o sujeito da vivência espacial a se elevar bruscamente, no plano da sensibilidade, da sua particularidade como indivíduo, à altura de todo um momento da história da humanidade (KONDER, 2009, p. 156).
Podemos entender que essa elevação possibilita ao
indivíduo enriquecer-se e compreender a sua realidade de forma mais profunda,
crítica e, consequentemente, enriquecê-la. O homem nesse processo vai além do
que está habituado cotidianamente, supera a superfície dos fenômenos. O reflexo
artístico está diretamente relacionado a existência concreta dos homens,
apontando sempre para o destino da humanidade, pois
La profunda verdad vital del reflexo estético descansa, no en último lugar, en que, aunque siempre apunta al destino de la espécie humana, no separa nunca a ésta de los indivíduos s que la constituyen, no pretende hacer nunca de ella una entidad existente com independencia de los indivíduos mismos. El reflejo estético muestra siempre a la humanidad en la forma de individuos y destinos individuales. Su peculiaridad [...] se expresa, por una parte, en la modo esos individuos poseen su inmediatez sensible, que destaca de la vida cotidiana precisamente por la intensificación de ambos momentos, y, por outra parte, en el modo como está presente en esos indivíduos, aún sin suprimir su inmediatez, la tipicidad de la especie humana de eso se sigue que el reflexo estético no puede ser nunca una simple reprodución de la realidad inmediatamente dada (LUKÁCS, 1966, p. 259-260).
A arte, neste sentido, educa o homem possibilitando-o ir além de seu
cotidiano imediato, fragmentado. Ela se separa inicialmente para depois
perfazer o caminho de volta. Esse processo de ida e retorno, produz
reiteradamente, um enriquecimento subjetivo do indivíduo. A arte se constitui
assim, no dizer de Lukács, “como uma autoconsciência da humanidade”.
Configura uma afirmação fundamental na estética de Lukács que o comportamento do homem no cotidiano é o
ponto de partida e o ponto de chegada ao mesmo tempo de toda atividade humana.
Deste modo, o cotidiano constitui o solo concreto de onde emergem as
necessidades da vida social. A ciência e a arte, por exemplo, se originam e se
desenvolvem historicamente a partir do solo da cotidianidade.
Nesse sentido, o desenvolvimento da sensibilidade humana subjetiva, ou
mais especificamente, os cinco sentidos tem na historicidade do processo
objetivo, real de vida a sua riqueza e o seu modo peculiar de desenvolvimento,
pois,
Solo por la riqueza objetivamente desplegada de la esencia humana nace la riqueza de la sensibilidad humana subjetiva, nace un oído musical, un ojo para la hermosura de la forma, en resolusión, nacen sentidos capaces de goces humanos, sentidos que actúan como energias esenciales humanas, se forman en parte, en parte se producen. Pues no solo cinco sentidos, sino también los sentidos llamados intelectuales, los sentidos prácticos (voluntad, amor, etc.), en una palabra el sentido humano, la humanidad de los sentidos, nace por la existencia de su objeto, por la naturaleza humanizada. La educación de los cinco sentidos es un trabajo de la entera historia universal (LUKÁCS, 1966, p. 238).
Para Lukács, o desenvolvimento
histórico-social dos sentidos humanos representa, significativamente, a essência
do ser como resultado de uma processualidade e, por conseguinte, a educação dos
cinco sentidos é um trabalho inteiramente determinado pela história universal.
Os problemas discutidos pelo filósofo húngaro, no que tange aos aspectos
caracterizadores da separação da arte da vida cotidiana, desembocam nas
questões relativas à perspectiva teórica de compreensão e apreensão do que
realmente existe, a essência da coisa em-si. Debatendo com a perspectiva do idealismo
filosófico, que concebe a realidade como sendo um produto do pensamento Lukács
busca na compreensão da existência em-si da coisa, e de sua processualidade
histórica o fundamento da determinação objetiva das atividades artísticas
humanas e, que isso está diretamente relacionado com a evolução do trabalho e
da divisão social do trabalho, nas palavras do esteta:
No se trata de un processo rectilíneo; los ejemplos de Marx muestran cómo las relaciones de produción, la división social do trabajo, pueden ser, incluso a niveles superiores, obstáculos opuestos a las correctas relaciones subjetivas con los objetos. La génesis histórica del arte, en sentido productivo y en le de la receptividad artística, tiene que tratarse en le marco de la génesis de los cinco sentidos, que es el marco de la historia universal. El principio estético se presenta así como resultado de la evolución histórico-social de la humanidad (LUKÁCS, 1966, 240).
Como fica evidente pela citação acima, a evolução dos cinco sentidos se
deu nos marcos do desenvolvimento histórico-social da humanidade. A capacidade
artística do homem se constituiu lentamente ao longo do processo da história, a
arte dessa maneira, tem uma gênese e
desenvolvimentos enraizados historicamente. Na esteira
dessa formulação, ressalta Lukács:
La lección que nos ofrecen aquellas ideas de Marx rebasa el simple reconecimiento de la historicidad radical del arte, de la receptividad artística, etc. Al elaborar la interación entre los sentidos humanos y sus objetos, Marx no se olvida de llamar la atención sobre el hecho de que los sentidos, cualitativamente distintos, tienen que poseer relaciones (y, por tanto, interaciones) también cualitativamente distintas com el mundo de los objetos (LUKÁCS, 1966, p. 241).
A arte como um processo de objetivação social resulta de uma interação
dialética entre subjetividade e objetividade, ou seja, entre o ser e o mundo
externo. Embora, teóricos como Fiedler, citado por Lukács na estética, se nege a aceitar essa
possibilidade de interação entre mundo exterior e o ser, não obstante, o caráter
idealista de suas interpretações, assim, Fiedler “niega el reflejo de la
realidad objetiva por nuestros sentidos y nuestros pensamientos...” (LUKÁCS,
1966).
Fiedler parte de uma análise abstrata a e antidialética, negando a
possibilidade do reflexo da realidade objetiva pelos nossos pensamentos e
sentidos, pois, o que importa não é o mundo externo, mas, a “subjetividad
pura”. Lukács contestando Fiedler destaca que:
La concreta polémica de Fiedler se dirige en esse lugar contra la necesaria deficiência de la expresión linguística respecto de lo concreto de los fenômenos. Y aunque em su crítica no carezca de momentos parciales acertados, pasa completamente por alto el proceso de aproximación indefinida a um reflejo cada vez más adecuado de la realidad, proceso que atraviesa el lenguaje com el pensamiento, e ignora así la complicada interación dialética entre el mundo de los objetos y la subjetividad que se esfuerza por captarlo y dominarlo (LUKÁCS, 1966, p. 242).
Podemos depreender do exposto acima, que o filósofo húngaro rebate
teoricamente o subjetivismo exacerbado de Fiedler, uma vez que este, afirma que
as imagens do mundo produzidas, não são um reflexo na consciência do sujeito da
realidade objetiva refletida pelos seus sentidos. Lukács ainda ressalta que
essa perspectiva teórica de Fiedler está relacionada diretamente com o
paradigma epistemológico de Kant, que preconiza a prioridade gnosiológica de
“uma atividad pura del sujeto”. A crítica de Lukács também aponta para a
própria negação de Fiedler e sua posição de negação aos princípios da
universalidade e da totalidade.
Lukács apreende a realidade da arte a partir dos pressupostos da
concepção dialético-materialista, que rompe exatamente com as premissas
teóricas metafísicas e a dedução apriorística das expressões artísticas
particulares pelo pensamento puro do sujeito. No percurso
dessa reflexão, enfatiza o esteta:
La concepción dialéctico-materialista tiene que romper igualmente con ambos extremos metafísicos, tanto con la deducción apriórica de las artes particulares a aprtir de una supuesta fuente originária, de la <<esencia>> del hombre, cuanto con el rígido aislamiento de ellas, para poder entender correctamente el fenômeno real de lo estético en su deveneir y em su esencia. Por eso aunque en el tratamiento filosófico de la génesis de la arte partimos de una multiplicidad de orígenes reales y consideramos que la unidad de lo estético, lo común de esa multiplicidad, es un resultado de la evolución histórico-social (LUKÁCS, 1966, p. 244).
Do que foi discutido até aqui, podemos concluir provisoriamente, que o
reflexo estético da realidade objetiva é resultado de uma evolução
histórico-social, sendo o objeto fundamental deste reflexo a sociedade e o seu
intercâmbio com a natureza. Este reflexo implica, sempre dessa forma, uma
generalização que eleva o indivíduo de sua particularidade ao nível da
universalidade humano-genérica, pois, o reflexo artístico sinaliza
verdadeiramente para a concreta existência humana; uma manifestação autêntica
da evolução da humanidade dada a especificidade da processualidade
histórico-social das relações no tempo e no espaço.
Referência Bibliográfica
FREDERICO, Celso. Marx,
Lukács: a arte na perspectiva ontológica. Natal: Editora da UFRN, 2005.
KONDER, Leandro. O
marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
LUKÁCS, Georg. Estética
I: la peculiaridad de lo estético. Tradução de Manuel Sacristán. Barcelona-México, D. F.:
Ediciones Grijalbo, 1966.