Para a proteção da vida da
humanidade, seria necessário um isolamento social rigoroso, com exceção dos
serviços verdadeiramente essenciais de abastecimento de alimentos, de saúde e
de transportes, até o advento da vacina contra o coronavírus. Apesar de a
humanidade possuir reservas suficientes para tanto, esse isolamento se revelou impossível
no capitalismo.
Trump, Johnson e Bolsonaro
atuaram como negacionistas da gravidade da crise sanitária e, assim, fizeram
com que EUA, Grã Bretanha e Brasil se tornassem responsáveis por metade das
mortes do planeta. São governos genocidas de seu próprio povo. A grande maioria
dos governos burgueses, porém, fez alguma demagogia social.
Muitos líderes políticos
declararam que a vida é mais importante que os lucros. Alguns realizaram, por
poucas semanas, alguma forma de isolamento social. Não poucos, inclusive, usaram
a justificativa das medidas necessárias contra a pandemia para atacar greves,
protestos populares e sufocar a resistência política social. Por isso, a luta
pelo controle sobre o isolamento social também faz parte da luta da classe
trabalhadora contra a burguesia, seu Estado e seus governos. Passado algum
tempo, porém, todos os governos trataram de proteger o capital da recessão
criada pelas medidas de isolamento social, ao custo da desproteção da vida e do
aumento dos números de contaminados e mortos.
Por mais que o comércio
virtual tenha disparado nos últimos meses, ele não supre as necessidades do
mercado capitalista. A reabertura dos comércios se impôs, no auge da pandemia, mesmo
com os hospitais colapsados e mesmo que tal reabertura significasse a ampliação
do caos no sistema de saúde. A liberação começou quando até mesmo a Organização
Mundial da Saúde (OMS) alertou que o pior ainda estava por ocorrer. Nos EUA, a
reabertura do comércio foi fatal para a multiplicação do número de casos de infectados
e de mortes. Como registra o New York Times:
“O número de casos está aumentando em grande parte dos Estados Unidos, inclusive em vários estados que foram os primeiros a reabrir. Como o número de pessoas hospitalizadas e a porcentagem de pessoas positivas também estão aumentando em muitos desses locais, o aumento de casos não pode ser explicado apenas pelo aumento dos testes ... E enquanto alguns lugares reimpuseram restrições, outros continuam a reabrir suas economias... Em alguns estados que reabriram cedo, os níveis de casos aumentaram novamente.” (Coronavírus nos EUA: Últimos Mapas e Contagem de Casos).[1]
Não nos referimos a grande
maioria dos assalariados assediados a voltar ao trabalho, ainda mais sob a
chantagem do desemprego, multiplicado pela crise econômica agravada pela pandemia.
Não exigimos nenhuma parcimônia, dos que estavam confinados há semanas, no sentimento
de reencontrar-se com os amigos e amigas. Tampouco deve-se ter parcimônia em
relação ao próprio consumo individual ou familiar. “Os trabalhadores fizeram
tudo e podem destruir tudo, porque podem fazer tudo de novo”. Do mesmo modo, eles
têm direito a tudo, a todos os valores de uso. Há também uma boa parcela dos
trabalhadores conscientes que buscam preservar-se, ficando em casa o quanto
podem. A nenhum desses casos nos referiremos aqui. Aliás, sobre a parcimônia,
nos aliamos a Oscar Wilde que uma vez escreveu:
“Às vezes elogiam-se os pobres por serem parcimoniosos. Mas recomendar-lhes parcimônia é tão grotesco quanto insultuoso. É como aconselhar a um homem que esteja passando fome que coma menos. Que um trabalhador do campo ou da cidade usasse de parcimônia, seria absolutamente imoral. Um homem não deveria estar pronto a mostrar-se capaz de viver como um animal mal alimentado.” (A alma do homem sob o socialismo, 1891).
Com a reabertura, milhares de
pessoas foram aos shoppings e aos mercados para comprar, ou simplesmente
simular o circuito de consumidores pondo-se em contato, se contaminando,
adoecendo e morrendo. Foram atraídas como peixes para o anzol, como qualquer animal
é atraído por uma isca e fazem isso apesar de terem algum nível de consciência
dos riscos. Caminharam e caminham cegamente para a morte. Por que isso é assim?
O senso comum costuma criticar
o consumismo. Segundo essa concepção, a culpa da insensata corrida aos
shoppings seria da própria vítima, o consumidor. A crítica ao consumismo,
porém, é uma crítica moralista. A culpa não é dos trabalhadores, como tenta
impor a dupla moral burguesa, assim como a culpa do vício em alguma droga não é
do drogado, mas do sistema do narcotráfico que a seduziu e estimulou ao vício. Nem
mesmo o mais perverso dos capitalistas escapa ao fetiche da mercadoria, do
dinheiro e do capital. Os governos são determinados pelos grandes capitalistas
que, por sua vez, são determinados pelo capital. Não foi por acaso que Marx
batizou sua obra magna de “O Capital”, e não “O Capitalismo” ou “O
Capitalista”.
“[...] o trabalho se representa no valor, e a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho[...] Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo.” (O Capital, livro I, p. 155-156, Editora Boitempo).
Portanto, para entender essa
tendência suicida da “insensata corrida aos shoppings”, temos que ir à raiz do
problema, e a raiz é explicada pelo fetiche da mercadoria. Ao explicar o
processo de produção do capital, no capítulo 1 do livro I, da obra O Capital,
Marx esclarece que é um erro acreditar que a mercadoria é valor de uso e valor
de troca.
“Quando, no começo deste capítulo, dizíamos, como quem expressa um lugar-comum, que a marcadoria é valor de uso e valor de troca, isso estava, para ser exato, errado. A mercadoria é valor de uso – o objeto de uso – e “valor”. (Idem, p. 136).
Na verdade, a mercadoria é
valor de uso e “valor”, um valor que nasce antes da troca. A substância do
valor é o trabalho e sua medida de grandeza o tempo de trabalho. A forma de
valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, mas também mais geral do
modo burguês de produção [...] é tomada pela forma natural e eterna da produção
social” (idem, p. 155).
Feitiço
mortal
Mais adiante, quando vai
explicar o caráter fetichista da mercadoria e seu segredo, Marx diz que o
caráter místico da mercadoria não está no seu valor de uso nem no conteúdo das
determinações do Valor. O caráter enigmático das mercadorias surge da relação social
estabelecida entre elas como produtos do trabalho humano. Os produtos do
trabalho humano, quando assumem a forma de mercadorias, tornam-se “coisas
sensíveis supra-sensíveis” (idem, p. 146), e assumem para os homens uma relação
entre coisas.
O fetiche da mercadoria não é
uma fantasia, como superstições ou ilusões descoladas da realidade; são ilusões
fabricadas pela realidade. O fetiche da mercadoria é uma ilusão real.
No capitalismo, os objetos de
uso necessários se tornam mercadorias produzidas pelo homem. Os produtores das
mercadorias se condicionam a realizar o contato social entre si, mediante a
troca de produtos dos seus respectivos trabalhos.
A forma valor do produto do
trabalho é tomada como natural e eterna. As mercadorias donas do modo de vida
dos homens, que por elas são controlados, “relacionam-se umas com as outras
apenas como valores de troca”. E “o valor só se realiza na troca, isto é, num
processo social.” (idem, página 158).
O ciclo do capital se consuma
com a troca das mercadorias. E as pessoas, como que obnubiladas, se movimentem
atrás das mercadorias. Mesmo que essa troca seja representada entre a forma
dinheiro e outra mercadoria, as mercadorias e o dinheiro ou o capital, produtos
do trabalho humano, exigem que os homens, pondo sua vida em risco, as satisfaçam,
para consumar o ciclo.
É o modo como os homens
produzem sua vida que explica como eles acabam por liquidá-la. O grande aumento
dos casos de depressão e de suicídio[2] durante o isolamento
social se deve ao fato de as pessoas não poderem realizar esse movimento ou,
por não terem dinheiro para realizar esse movimento, se sentirem excluídas,
frustradas. Inclusive, para além de ter o objeto, de possuí-lo, independentemente
de seu valor de uso para o consumidor, é importante realizar a prática do
pagamento, em dinheiro ou crédito.
Crise
econômica, Pandemia e Fetichismo do Capital
O fetiche da mercadoria, do
dinheiro e do capital são ilusões reais. Mas são mistificações diferentes, que
podem atuar de forma combinada, mas diferentes. Também descrito no Capítulo 1
do Livro I de O Capital, o fetiche monetário, faz com que o dinheiro enfeitice
os homens, atuando como “uma coisa natural dotada de estranhas propriedades
sociais” (p. 157), como equivalente do valor de toda e qualquer mercadoria
produzida socialmente.
Quanto ao fetiche do capital,
a pandemia o desmascarou. Essa mistificação vai ser criticada por Marx mais
adiante na obra O Capital, no Capítulo 24 do Livro III, que aborda “A
exteriorização das relações capitalistas sob a forma de capital portador de
juros”. Quando o dinheiro e o valor se valorizam a si mesmos através dos juros,
a relação capitalista assume sua forma mais exterior, mais independente da
reprodução, mais extremamente mistificada. A fórmula D-MD’ é reduzida a D-D’. O
capital se apresenta como criador de si mesmo, produto da coisa, dinheiro que gera
mais dinheiro. A coisificação das relações de produção é elevada a máxima
potência. Para a economia vulgar essa situação é um achado magnífico, o capital
assume existência independente. Se com o dinheiro, momentaneamente, já se
apagam as outras determinidades do dinheiro se apagam, se tornam invisíveis as
diferenças das mercadorias como valores de uso e a diferença dos capitais
industriais constituídos por essas mercadorias e suas condições de produção, o
capital, em forma de dinheiro, se apresenta como valor de troca autônomo, no
mercado monetário, permanentemente, o capital assume essa forma autônoma em
relação a produção e circulação, parece se auto-reproduzir.
Muitas pessoas que são
enfeitiçadas pela mercadoria, repudiam o feitiço do capital como já vandalismo
na mistificação, admitem as relações entre as coisas produzidas pelo homem
desde que que elas não cheguem até a essa forma mais descarada. Feitiço da
mercadoria e do dinheiro sim, não poderíamos viver sem eles, mas feitiço da
especulação não. Ou seja, são reféns do modo de produção capitalista, mas
repudiam sua forma mais desenvolvida, buscam voltar atrás a roda da história.
No estágio atual, de elevado desenvolvimento da força produtiva social do trabalho e diminuição do tempo de trabalho que custa para a reprodução, a sobre acumulação de capitais – como demonstrado por Marx, também no livro III, na abordagem da lei da queda tendencial da taxa de lucros – a taxa de lucros diminui em relação ao aumento da acumulação de capitais e a capacidade produtiva do trabalho social. O capital variável se vê diminuído em relação ao capital constante.
Esta situação, que foi
registrada no ciclo de acumulação de capitais entre a crise de 2008 e 2020, faz
com que a queda da taxa de lucros e a guerra comercial EUA-China tenha criado
de forma latente uma nova crise econômica. A guerra comercial, com suas medidas
protecionistas, deprimiu o mercado mundial, a pandemia e as medidas de
isolamento social, fizeram com que ele retrocedesse a índices muito anteriores
de produção. A crise sanitária não foi a causa preponderante da crise
econômica, mas um detonador.
Em um primeiro momento, em março de 2020, as bolsas despencaram, os capitais fugiram para investirem em dinheiro, no dólar, e mais ainda se refugiaram no ouro. Em um segundo momento, comprando as ações que caíram, o capital voltou a inflar as bolsas de valores. Mas esse salto para a frente não se sustenta enquanto o mercado se mantém em retrocesso acelerado. O desemprego disparou de forma inédita nos EUA. Não cabe mais nos gráficos que registraram as décadas anteriores.
Mas, durante a pandemia,
quando o circuito capitalista se interrompe com a retração do consumo mundial e
em cada um dos países, pela miséria crescente das massas, desempregadas e
endividadas em meio a pandemia, descobre-se os limites da autonomia da
valorização do valor. A autovalorização não se sustenta por muito tempo e
independente do trabalho vivo. Toda a fantasia se vê questionada. As relações
entre as coisas criadas pelo homem, dentre elas, as mercadorias, o dinheiro e o
capital, sem o contato com o trabalho vivo e independente da produção e da
circulação, não são sustentáveis, porque as coisas não podem prescindir da
sociedade humana, da vida humana e da sua condição de existência, o trabalho.
O
consumismo faz parte do universo ideológico do fetichismo da mercadoria, mas
são coisas distintas
Fetichismo da mercadoria é diferente
de Consumismo. O consumismo, a compulsão pela compra induzida pelo processo de
valorização do capital através da publicidade e marketing, muitas vezes é
confundido com o fetiche, mas são elementos distintos, sendo que o consumismo é
um ingrediente do fetichismo. O fetiche a que se refere Marx é a incapacidade
de se supor uma sociedade baseada em relações para além das estabelecidas pelo
capital, pelo valor, pelo dinheiro e pelo crédito. Sendo assim, alguém pode
livrar-se da compulsão consumista e ainda assim continuar enfeitiçado pelo
capital, sem acreditar que um mundo pós-capitalista, comunista, é possível.
Por conseguinte, muito além de
se livrar deste ou daquele odiado governo de extrema direita genocida, o que é
preciso fazê-lo sem dúvida, é necessário desenfeitiçar-se, quebrar o
encantamento do capital. Isto é parte da materialidade do processo
revolucionário de luta pela tomada do poder político pelos trabalhadores,
expropriação da propriedade privada e controle da produção por conselhos
populares.
É no interior desse processo
que se pode livrar do domínio fantasmagórico dos condicionamentos práticos que
o capital exerce sobre a humanidade, conduzindo-a para a barbárie e atraindo-a
para a morte. Dito de outro modo, o processo social da vida só se livrará desse
feitiço fatal quando os homens, associados livremente entre si, retomarem o
controle do produto de seu trabalho de forma consciente e planejada. Nesse
tempo, será eliminada a contradição entre trabalho social e apropriação privada
e os meios de produção serão socializados.
Photo by Hennie Stander on Unsplash
[1] https://www.nytimes.com/interactive/2020/us/coronavirus-us-cases.html?te=1&nl=the-morning&emc=edit_nn_20200701
[2] https://www.brasildefato.com.br/2020/06/14/ansiedade-abuso-de-alcool-suicidios-pandemia-agrava-crise-global-de-saude-mental