Eu
costumava acompanhar um podcast chamado É nóia minha?, produzido pela
roteirista Camila Fremder. Uma produção divertida que passava longe de debater
temas profundos ou politizados, mas que cumpria uma função interessante de
entretenimento de fácil consumo. O que interessa é que eu me divertia. Até que
o podcast foi comprado por uma plataforma paga que eu não uso, então, parei de
ouvir.
Esses
dias, vivendo o marasmo do quarto mês de quarentena, vi, numa postagem no Instagram,
que a dita roteirista lançara um livro e, claro, a propaganda garantia risadas
e divertimento. Preciso dizer, a essa altura, que eu não sou o tipo de pessoa
que acha graça de piadas vazias e sem conteúdo, o que deveria ter me alertado.
Resultado: comprei o livro que recebe o título Adulta sim, madura nem
sempre: fraldas, boletos e pouco colágeno.
Eu
superestimei o livro sim. Eu esperava, no mínimo, boas histórias, divertidas,
engraçadas, estava mirando em Luis Fernando Veríssimo, mas "errei feio, errei rude". Acontece que, mesmo ele
não tendo tido nenhuma graça para mim ou acrescentado qualquer conteúdo na
minha vida, o livro me trouxe reflexões, mas reflexões revoltantes sobre como,
a depender da classe a que fazemos parte, vivemos vidas completamente
diferentes, e, para citar o livro, de como nos tornamos adultos de modos muito
diferentes.
Leitores,
vocês não me venham argumentar que todas as formas de viver são válidas e
legítimas. Não é essa a questão. Não culpo indivíduos singulares pelo tipo de
vida que levam, mas compreendo as relações sociais que engendram desigualdades
na forma de viver da sociedade capitalista. Também não legitimo o discurso do “reconheça
seu privilégio” por duas razões: primeiro porque ele, muitas vezes, dirige-se a
quem não tem privilégio nenhum, mas ocorre de acessar um direito mínimo no
interior de precariedade e exploração; segundo porque, quando ele atinge quem
realmente tem privilégio, exige apenas reconhecimento e isso não basta. Eu
quero mesmo é superar a sociedade capitalista: destruir pela negação, conservar
o que produzimos de humano e, finalmente, elevar a um patamar superior: o comunismo.
Então,
voltemos ao livro. Camila Fremder, no livro, conta pequenas histórias pessoais
e faz reflexões sobre sua própria vida, como o título aponta. Na transição para
a vida (nem tão)adulta de Camila, morar sozinha, trabalhar, pagar os próprios
boletos, casar, engravidar, lidar com as expectativas dos outros sobre ser mãe
e ser realmente uma mãe são os temais mais desenvolvidos. Certamente, muitas
mulheres hão de se identificar com Camila e dar muitas risadas com as histórias
contadas e, talvez, o livro seja um sucesso.
Por
quê?
Explico:
por que Camila é um tipo. Um personagem típico é aquele que condensa as
características principais de um tipo social, fazendo com que o leitor reconheça
aquilo que ele representa da realidade. Assim, a Camila personagem do livro é
uma típica brasileira de classe média. Olhar para como Camila tornou-se uma
adulta diz muito sobre as desigualdades sociais que formam o Brasil como ele é.
Enquanto
Camila conta que se deu conta de ter se tornado adulta, quando um vendedor de
panos de prato, no sinal, oferecera a ela seu produto, dizendo que ela devia
estar precisando; eu, uma leitora situada num lugar de classe, olhei para a
existência do vendedor de panos de prato no sinal, tentando ganhar a vida,
provavelmente para sustentar sua existência e de sua família que nem deve
imaginar que sua ação serviu de epifania para a mulher no interior de seu carro
e que viraria personagem pra lá de secundário de um livro. Essa dicotomia se
instalou nas primeiras páginas e não pude mais perder de vista o lugar de
classe de onde falava aquela mulher.
Enquanto
Camila destacava a nostalgia de sua infância indo para casas de praia com seus
pais, jogando videogames, não se preocupando com o botão da blusa que caiu, viajar
com os pais sem se preocupar com agendar o voo, o hotel, verificar documentos;
outras mulheres e homens, neste país, tornaram-se adultos tendo que trabalhar
cedo para ajudar a sustentar a casa e nem conseguem sentir nostalgia porque, na
verdade, não tiveram infância, nunca foram cuidados e protegidos, nunca viajaram
nem tiveram tempo para brincar.
A
maioria das pessoas aqui, ao tornarem-se adultas, entram num caminho sem volta,
não podem se dar ao luxo de, como Camila, gostar de artistas teen nem de dedicar-se
a assistir aos filmes da sessão da tarde, afinal têm verdadeiros problemas não só
para pagar boletos, mas para arrumar trabalho num país cujo desemprego, pela
primeira vez na história, é maior que o número de pessoas empregadas.
Fico
me questionando como somos indiferentes à realidade do país em que vivemos.
Como substituímos problemas de verdade, problemas que têm a ver com a vida e
sua manutenção por pseudoproblemas de uma classe média deslumbrada. Claro que
são questionamentos retóricos, pois, as classes abastadas sofrem da mesma
alienação que as classes subalternas, mas, para aquelas, não há ameaça à vida,
apenas uns percalços, algumas pedras no caminho.
A
cultura de massa, no entanto, consegue subverter a realidade e legitima um tipo
de experiência como hegemônica, como universal, ao difundir esse discurso como
representativo de uma universalidade. É muito pobre a cultura da classe média, as
experiências e a visão de mundo, muito estreita, limitada e limitante. Claro
que Camila não é culpada da ideologia que dissemina, mas, consciente ou não, é
cúmplice de um Brasil que continua com a visão embaçada, bem como diria Chico
Buarque: “Sol, a culpa deve ser do sol / Que bate na moleira, o sol / Que
estoura as veias, o suor / Que embaça os olhos e a razão”.