terça-feira, 25 de agosto de 2020

É preciso repensar nossa forma de organização social

 

Will Duran, historiador estadunidense (1885-1981), em seu clássico A história da civilização, volume I – Nossa herança oriental, ao comentar sobre os fundamentos econômicos da civilização ilustra um fato interessante. Entre os povos primitivos, a posse da terra cabia à comunidade, tendo até um “comunismo de víveres”. Era costume entre os “selvagens” que o indivíduo que dispusesse de víveres os partilhasse com quem não tinha, ou com viajantes que pediam pouso; comunidades vítimas de seca eram alimentadas pelas vizinhas. Dito isso, Durant relata que, quando um pesquisador relatou a um samoano[1] a tragédia dos pobres em Londres, o dito “selvagem” encheu-se de espanto: “Como isso? Sem alimentos? Sem amigos? Sem casa em que morarem? Como vivem, então? Não possuem casa os amigos dessa gente?” (s/d, p. 12).

Bem, nos últimos dias, pelo menos cinco pessoas, em situação de rua, morreram de frio em São Paulo[2], capital do estado, que é o centro econômico da economia brasileira. Em Recife, no dia 14, um representante de vendas de 53 anos, da rede de hipermercados Carrefour morreu enquanto trabalhava. O corpo de Moisés Santos foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas, para que a loja continuasse funcionamento[3]. E isso acontece em um contexto de uma tragédia tríplice: crise econômica, governo de extrema direita e pandemia. De 2016 a 2019, a população brasileira afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda aumentou de 37,5 milhões para 43,1 milhões[4]. Segundo o IBGE, em informe de junho, desempregados já somavam 87,6 milhões de brasileiros, enquanto ocupados chegavam a 85,9 milhões[5]. O que se vê é um descaso do poder público, ataques constantes aos diretos sociais e uma política econômica voltada exclusivamente para os interesses dos grandes grupos econômicos internacionais e nacionais. Resumo: é o lucro acima da vida.

O que diria o “selvagem” samoano de nossa “civilização” orientada por “valores judaico-cristãos”?

Bem, a verdade é a seguinte. O único valor que orienta nossa “civilização tupiniquim” é o valor de troca, orientado para a produção de mais-valor, uma espiral crescente centrada na acumulação de capital. O resto é o resto. Saúde, educação, lazer, fé, justiça e tudo o mais é abocanhado pela sanha de valorização do valor. O próprio Estado brasileiro - nascido com marcas de escravismo, latifúndio e política oligárquica - é um servo fiel da lógica capitalista e das frações burguesas em disputa. O regime político cada vez mais remodela as relações institucionais no sentido de expulsar qualquer conquista democrática que favoreça, mesmo que formalmente, a maioria da população. E o governo Bolsonaro objetiva exterminar não só a democracia formal, mas a democracia construída pelo movimento sindical e sociais, além de suas expressões políticas.

Nesse contexto, falar de amor ao próximo, de políticas públicas universais, de reformas estruturais (agrária, urbana, tributária) e de combate às opressões (de gênero, de etnia, nacional) é coisa de comunista.

Na verdade, o capitalismo, no Brasil e no mundo, só se sustenta pelo aprofundamento das desigualdades, da concentração de riquezas, da superexploração do trabalho, do aumento das opressões e crescimento da violência de classe sobre a maioria da população. Frente a isso não basta dizer não. É preciso socializar os meios de produção e construir uma economia planejada democraticamente sob a direção dos trabalhadores e trabalhadoras. Pois, quem produz as riquezas deve dirigir a sociedade. Isso é um projeto internacional, que começa no espaço nacional.

O ato simples dos chamados “selvagens” de ao estarem no campo para comer ao avistar outrem chamá-lo para compartilhar sua refeição será algo civilizado e cotidiano, próprio de uma sociedade não dirigida pelo capital. Então nosso presente será lembrado como um passado bárbaro.


Referências

DURANT, Will. A história da civilização: nossa herança oriental, volume I. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d.


Frederico Costa 
Professor da Universidade Estadual do Ceará e 
Coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.