Will
Duran, historiador estadunidense (1885-1981), em seu clássico A história da
civilização, volume I – Nossa herança oriental, ao comentar sobre os
fundamentos econômicos da civilização ilustra um fato interessante. Entre os
povos primitivos, a posse da terra cabia à comunidade, tendo até um “comunismo
de víveres”. Era costume entre os “selvagens” que o indivíduo que dispusesse de
víveres os partilhasse com quem não tinha, ou com viajantes que pediam pouso;
comunidades vítimas de seca eram alimentadas pelas vizinhas. Dito isso, Durant
relata que, quando um pesquisador relatou a um samoano[1] a tragédia dos pobres em
Londres, o dito “selvagem” encheu-se de espanto: “Como isso? Sem alimentos? Sem
amigos? Sem casa em que morarem? Como vivem, então? Não possuem casa os amigos
dessa gente?” (s/d, p. 12).
Bem,
nos últimos dias, pelo menos cinco pessoas, em situação de rua, morreram de
frio em São Paulo[2],
capital do estado, que é o centro econômico da economia brasileira. Em Recife,
no dia 14, um representante de
vendas de 53 anos, da rede de hipermercados Carrefour morreu enquanto trabalhava. O
corpo de Moisés Santos foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas, para
que a loja continuasse funcionamento[3]. E
isso acontece em um contexto de uma tragédia tríplice: crise econômica, governo
de extrema direita e pandemia. De 2016 a 2019, a população
brasileira afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda aumentou de 37,5
milhões para 43,1 milhões[4]. Segundo o IBGE, em informe de junho, desempregados já somavam 87,6
milhões de brasileiros, enquanto ocupados chegavam a 85,9 milhões[5]. O que se vê é um descaso do poder público, ataques constantes aos
diretos sociais e uma política econômica voltada exclusivamente para os
interesses dos grandes grupos econômicos internacionais e nacionais. Resumo: é
o lucro acima da vida.
O que diria o “selvagem”
samoano de nossa “civilização” orientada por “valores judaico-cristãos”?
Bem, a verdade é a seguinte. O
único valor que orienta nossa “civilização tupiniquim” é o valor de troca,
orientado para a produção de mais-valor, uma espiral crescente centrada na
acumulação de capital. O resto é o resto. Saúde, educação, lazer, fé, justiça e
tudo o mais é abocanhado pela sanha de valorização do valor. O próprio Estado brasileiro
- nascido com marcas de escravismo, latifúndio e política oligárquica - é um
servo fiel da lógica capitalista e das frações burguesas em disputa. O regime
político cada vez mais remodela as relações institucionais no sentido de
expulsar qualquer conquista democrática que favoreça, mesmo que formalmente, a
maioria da população. E o governo Bolsonaro objetiva exterminar não só a
democracia formal, mas a democracia construída pelo movimento sindical e
sociais, além de suas expressões políticas.
Nesse contexto, falar de amor
ao próximo, de políticas públicas universais, de reformas estruturais (agrária,
urbana, tributária) e de combate às opressões (de gênero, de etnia, nacional) é
coisa de comunista.
Na verdade, o capitalismo, no
Brasil e no mundo, só se sustenta pelo aprofundamento das desigualdades, da
concentração de riquezas, da superexploração do trabalho, do aumento das
opressões e crescimento da violência de classe sobre a maioria da população.
Frente a isso não basta dizer não. É preciso socializar os meios de produção e
construir uma economia planejada democraticamente sob a direção dos
trabalhadores e trabalhadoras. Pois, quem produz as riquezas deve dirigir a
sociedade. Isso é um projeto internacional, que começa no espaço nacional.
O ato simples dos chamados “selvagens” de ao estarem no campo para comer ao avistar outrem chamá-lo para compartilhar sua refeição será algo civilizado e cotidiano, próprio de uma sociedade não dirigida pelo capital. Então nosso presente será lembrado como um passado bárbaro.
Referências
DURANT,
Will. A história da civilização: nossa herança oriental, volume I. Rio
de Janeiro: Editora Record, s/d.
[1] Habitante de ilhas da Polinésia,
hoje Samoa, país da Oceania.
[2] https://www.brasildefato.com.br/2020/08/22/frio-intenso-causa-morte-de-cinco-moradores-de-rua-em-sp-nos-ultimos-2-dias,
em 23/08/2020.
[3] https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/08/trabalhador-morre-no-carrefour-que-esconde-corpo-com-guarda-sois/, em 23/08/2020.