No
capítulo central de História e
consciência de classe: “A reificação e a consciência do proletariado”,
Lukács se propõe a estudar o fenômeno da reificação
da sociedade capitalista e suas implicações sobre a consciência do proletariado. Sua reflexão inicial é sobre o “enigma
da estrutura da mercadoria”. Nesse sentido, notadamente, buscará em Marx os
fundamentos teóricos para elucidar esse problema como uma questão central e
estrutural do sistema capitalista em todas as suas dimensões.
Lukács
assinala, que na sociedade burguesa a mercadoria[1]
consiste num particular inserido na totalidade
das relações sociais capitalistas. Sendo esse particular uma expressão do todo
que se manifesta no conjunto das relações reais entre os homens. O fenômeno da
reificação é resultado das relações de produção capitalista, ou seja, é o
processo pelo qual os produtos da atividade do trabalho humano propriamente
dito, se transformam num “universo de coisas”; que torna a relação entre os
homens uma relação entre coisas; um sistema “cosificado” independente e estranho
aos homens, que os subjuga por suas próprias leis. Desse modo, fundamentado em
Marx no que se refere à natureza essencial da “estrutura da mercadoria”, Lukács
assinala, portanto, que:
Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma objetividade fantasmagórica[2] que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens (LUKÁCS, 2003, p. 194, itálico nosso).
Esse
aspecto fetichista da relação entre os homens com o mundo da mercadoria
resulta, portanto, do caráter social
peculiar do trabalho que produz mercadorias (Marx). Essa forma social de
relação entre os homens é uma consequência do processo de transformação dos
objetos de uso em mercadoria. Uma vez que estes só se tornam mercadorias porque
são produtos de trabalho privado, que se executa independentemente entre si.
Nesse sentido, Marx assegura que o conjunto desses trabalhos privados constitui
a totalidade do trabalho social. Pois, como os produtores só estabelecem
contato social por meio da troca de seus produtos do trabalho, os aspectos fundamentalmente
sociais de seus trabalhos privados a parecem somente na esfera desse processo
de troca. Ou para dizer de outra maneira:
[...], os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtores do trabalho e, por meio destes, também ente os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 2013, p. 148, em negrito nosso).
Essa
caracterização elaborada por Marx, sobre a lógica da produção social da
mercadoria permite à Lukács chamar a atenção para os problemas fundamentais que
resultam do caráter fetichista da mercadoria: 1) o fetichismo da mercadoria como forma de objetividade e 2) o comportamento do sujeito frente a esse
fetichismo. Somente a partir da compreensão dessa dualidade é que conseguimos
ter uma visão transparente dos problemas “ideológicos do capitalismo em
declínio”. É importante destacar aqui, que o fetichismo da mercadoria é um
processo peculiar da nossa época, ou seja, do capitalismo moderno, diz Lukács.
Pois, como todos sabem o intercâmbio de mercadorias e as relações comerciais
subjetivas e objetivas já existiam desde épocas remotas. Portanto, a questão
proposta por Lukács é saber em que medida, a troca de mercadorias no
capitalismo é capaz de influenciar o comportamento da vida social em sua
totalidade.
Nessa
perspectiva de análise, Michel Löwy (2008b), afirma que a “teoria lukacsiana da
reificação” em História e consciência de
classe é rigorosamente “fundada no materialismo histórico” e, nesse
sentido, supera criticamente o legado do romantismo anticapitalista para
compreender de forma científica a totalidade da vida em sociedade:
É claro que Lukács parte de O capital de Marx, de sua análise do fetichismo e da coisificação, ao nível do processo de produção; mas ele vai além da esfera propriamente econômica, para abordar o conjunto da vida social, nas suas manifestações políticas, culturais etc., à luz do fenômeno da reificação. Ele tenta inserir a contribuição da sociologia alemã nestes dois níveis (econômico e social), nos seus aspectos convergentes ou complementares com a problemática marxista (LÖWY, 2008b, p. 72, itálico no original).
No
sistema capitalista, a mercadoria transforma-se num elemento universal que
“conforma” a sociedade nos seus diversificados graus e âmbitos. Os problemas
enfrentados por Lukács, no que diz respeito, a influência da estrutura
mercantil dominante nos “os hábitos modernos de pensamento” (como na
consciência do proletariado), não podem ser concebidos como uma mera questão
quantitativa. Por isso: “A diferença entre uma sociedade em que a forma
mercantil é a dominante que influencia decisivamente todas as manifestações da
vida e uma em que ela aparece apenas episodicamente é, antes, uma diferença
qualitativa” (LUKÁCS, 2003, p. 195). A
totalidade dos fenômenos objetivos e subjetivos das sociedades em foco assume,
em face dessa diferença, aspectos de “objetividade qualitativamente diferente”.
No sistema capitalista, o processo de troca mercantil repercute sobre o
conjunto da vida social, provocando uma “ação desagregadora”. Portanto, essa ação produz uma mudança qualitativa que
brota da dominação da mercadoria.
Sobre
essa questão Lukács destaca o seguinte:
Mas essa diferença qualitativa entre a mercadoria como uma forma (entre muitas outras) do metabolismo social dos homens e a mercadoria como forma universal de conformação da sociedade não se mostra somente no fato de a relação mercantil como fenômeno isolado exercer no máximo uma influência negativa sobre a estrutura e a articulação da sociedade, mas no fato de essa diferença reagir sobre o tipo e a validade da própria categoria (LUKÁCS, 2003, p. 196).
A
forma mercantil configura uma forma universal, que submete a totalidade da
sociedade ao jugo do valor de troca.
“[...] esse desenvolvimento da
forma mercantil em forma de dominação efetiva sobre o conjunto da sociedade
surgiu somente com o capitalismo moderno”, sustenta Lukács (2003, p. 197,
itálico no original). E com o desenvolvimento cada vez mais complexo da forma
mercantil, se tornou mais insólito e difícil o desvelamento do mundo reificado.
A lógica do controle do processo de produção capitalista é obscurecida pela
relação de dominação do capital sobre o trabalho. Com efeito, a essência do
modo de produção capitalista é ocultada pela ideologia burguesa, pelos seus
mecanismos teóricos de interpretação do mundo como a “economia política
vulgar”, por exemplo, que afirma ser o sistema capitalista um modo de produção
com “leis fixas e eternas”, “natural”, “imutável”. Lukács, porém, assinala que:
[...] é somente como categoria universal de todo o ser social que a mercadoria pode ser compreendida em sua essência autêntica. Apenas nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destrutivos, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo (LUKÁCS, 2003, p. 198, itálico nosso).
O
caráter “fantasmagórico” da forma mercantil deve ser compreendido, afirma
Lukács, sobretudo, como uma relação social objetiva e subjetiva. A mercadoria
como um produto do trabalho social, comporta determinações múltiplas, que
expressa uma totalidade de relações diversas; uma totalidade de conexões. Desse
modo, a universalidade da forma mercantil condiciona, tanto o aspecto subjetivo
como o objetivo, uma abstração do “trabalho humano que se objetiva nas
mercadorias”. Trata-se aqui de constatar que o “trabalho abstrato” em sua
igualdade formal, mensurável, em relação ao “tempo de trabalho socialmente
necessário”, a “divisão capitalista do trabalho” e que existe concomitantemente
como produto e condição do processo de produção capitalista, surge somente no
decurso do desenvolvimento da forma mercantil.
Dessa
maneira, destaca Lukács que:
Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador [...], o processo de trabalho é fragmentado, numa proporção continuamente crescente, em operações parciais abstratamente racionais, o que interrompe a relação do trabalhador com o produto acabado e reduz seu trabalho a uma função especial que se repete mecanicamente (LUKÁCS, 2003, p. 2001).
Enquanto
a mecanização e a racionalização do processo produtivo avançam e se
intensificam, o tempo de trabalho socialmente necessário que elabora a base do
“cálculo racional”, é desconsiderado como “tempo médio e empírico” para se
representar como uma quantidade de trabalho objetivamente mensurável, que se
contrapõe ao trabalhador sob o aspecto de uma objetividade dada, instituída.
Compreendemos assim, afirma Lukács, que a unidade do objeto, do produto enquanto
mercadoria não converge mais com sua “unidade como valor de uso”. Como
corolário da fragmentação do produto do trabalho, o homem, o trabalhador, o
sujeito social também é submetido à fragmentação. O homem nesse sentido, “não
aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de
trabalho, como verdadeiro portador desse processo” muito menos domina a
totalidade do processo produtivo, do contrário, “ele é incorporado com parte
mecanizada num sistema mecânico que já se
encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e cujas
leis ele deve se submeter” (LUKÁCS, 2003, p. 203-204, itálico nosso).
Nesse
processo, o tempo é abstrato, mensurável, quantificável. As condições da
produção se transformam. A especialização e a fragmentação na esfera científica
e mecanizada do produto do trabalho e os próprios sujeitos do trabalho,
portanto, são “igualmente fragmentados de forma racional”. A objetivação da
força de trabalho do produtor; o trabalhador em face do conjunto de sua
personalidade torna-se “um espectador impotente” com relação aos fatos que
circunscrevem a sua própria existência (uma consequência de uma relação social
já estranhada). O processo de reificação do trabalho é também, portanto, o
processo de reificação da consciência do proletariado e do conjunto de suas
relações sociais.
A
separação do produtor dos seus instrumentos de produção e, a consequente,
expropriação do produto do trabalho pelo capitalista, resultou na desagregação
e dissolução da unidade de produção originária. Essas foram as condições
impostas pelo modo de produção capitalista moderno, que passou a substituir as
relações de produção originárias (que eram mais transparentes diz Lukács),
pelas “relações racionalmente reificadas”. De um modo geral, a consequência
mais evidente do predomínio das relações mercantis (a forma mercadoria) sobre o
conjunto da sociedade moderna é, a reprodução da desumanização plena do homem.
A
reificação como um fenômeno fundamental, geral e estrutural da sociedade
burguesa penetrou, decisivamente, na estrutura da consciência. Assim,
constata-se o fato de que: “[...] Foi o capitalismo a produzir pela primeira
vez, com uma estrutura econômica unificada para toda a sociedade, uma estrutura
de consciência – formalmente – unitária para o conjunto dessa sociedade”
(LUKÁCS, 2003, p. 221). Essa estrutura é exemplificada por Lukács, no caso do
jornalismo, como o traço mais grotesco, em que exatamente a própria
subjetividade, “o saber”, “o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se
um mecanismo abstrato”, deslocado tanto da personalidade do proprietário como da “essência material
e concreta dos objetos em questão”, e que é posto em movimento de acordo com
sua legalidade específica (Idem, p.
222). Para o filósofo marxista, a falta de convicção dos jornalistas e a
“promiscuidade” de suas experiências representam o ápice da reificação
capitalista. Pois:
A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma objetivação fantasmagórica não pode, portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos objetos do mundo exterior (LUKÁCS, 2003, p. 222-223, aspas no original e itálico nosso).
Essa
forma de objetivação do trabalho alienado submete todas as relações humanas, a
um nível progressivo de fragmentação, desagregação, desumanização e
mercantilização. De uma maneira geral, a vida social está inteiramente
submetida à racionalização da produção capitalista. Com esse processo, chama
atenção Lukács, perdeu-se toda a imagem
da totalidade. A totalidade tratada como uma unidade entre a parte e o todo
(enquanto um princípio constitutivo do método dialético) e, que apreende a
realidade cognitivamente, teria sido despedaçada pela força da especialização
do trabalho.
Portanto,
no que diz respeito à reificação, “isso significa que as diferentes classes
sociais têm um método cognitivo distinto, e uma capacidade de compreensão
diferente do fenômeno, de sua gênese e de sua estrutura”. Dessa maneira, a
capacidade ou incapacidade de um economista transpor a imediaticidade da forma
reificada das relações socioeconômicas da vida cotidiana, não é produto de suas
qualidades intelectuais próprias, mas da perspectiva de classe que sua
compreensão da realidade objetiva se vincula, pois, “para Lukács uma ciência
que se situa do ponto de vista da burguesia não pode trazer à luz as formas
reificadas”, destaca Löwy (2008b, p. 77).
GPOSSHE-UECE
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REFERÊNCIAS
LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2008b.
LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética
marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARX,
Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de
produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
[1] “A mercadoria é, antes de tudo, um
objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz
necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se,
por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a
questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana,
se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel],
isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção” (MARX,
2013, p. 113).
[2] De acordo com Marx: “O caráter
misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que
ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como
caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades
sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social
dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos,
existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos
do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais
[...]. É apenas uma relação social
determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Idem, p. 147, itálico nosso).