domingo, 24 de janeiro de 2021

A totalidade concreta em Karel Kosik: uma teoria do real



O filósofo marxista Tcheco Karel Kosik (1926-2003) em sua mais notável obra A dialética do concreto (2011), assinala que a categoria da totalidade busca, sobretudo, compreender a realidade nas suas leis intrínsecas e, desvelar, sob a aparência e a causalidade dos fenômenos, as suas conexões internas imanente. Nesse sentido, a totalidade apresenta-se como antítese à perspectiva do empirismo, que leva em consideração apenas as manifestações fenomênicas e causais dos processos da realidade objetiva.

Para Kosik (2011) pela mediação da categoria da totalidade, chega-se a entender a dialética das leis e dos nexos causais dos fenômenos, da essência intrínseca e dos aspectos constitutivos do movimento concreto da realidade, da constituição das partes e do todo, da produção e da reprodução social. Assim, para o filósofo marxista, o sentido fundamental das mudanças ocorridas nas décadas anteriores, no que tange, categoria da totalidade foi sua declinação a uma exigência meramente metodológica de interpretação da realidade. De acordo com o filósofo: “Na filosofia materialista a categoria da totalidade concreta é sobretudo e em primeiro lugar a resposta à pergunta: que é a realidade?  (KOSIK, 2011, P. 42, itálicos no original).

As tendências idealistas do século XX reduziram a totalidade essencialmente à dimensão da relação da parte com o todo e, de forma radical, considerando-a como um produto do pensamento lógico/abstrato no conhecimento do real. Com efeito, a totalidade como um fundamento metodológico perdeu sua força e congruência. Por causa dessa redução, a totalidade acabou se constituindo numa representação idealista da realidade histórico-social.

Nessa polêmica, uma questão fundamental destacada por Karel Kosik (2011) no seu livro ganha relevância: a ideia de que existe uma diferença marcante entre a concepção daqueles que consideram a realidade como uma totalidade concreta, ou seja, um todo estruturalmente articulado em processo de desenvolvimento e autocriação e, a concepção daqueles que justificam que o conhecimento humano não pode apreender a totalidade dos processos factuais, isto é, das relações, dos fundamentos e processos constitutivos da realidade objetiva.

Dessa forma, Kosik afirma que:


Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético [...] se são entendidos como partes estruturais do todo (KOSIK, 2011, p. 44, itálico no original).

    

A totalidade concreta, assim, não constitui apenas o conjunto de todos os fatos, o aglomerado de todos os elementos, relações e processos. Pois, sem o entendimento de que a realidade é uma totalidade concretamente articulada e que se converte em uma processualidade dialética, em que cada fato em sua particularidade e universalidade se determinam mutuamente, o entendimento da realidade concreta não passa de uma mistificação do real.

A dialética da totalidade concreta constitui um método que não visa, inadvertidamente, se apropriar e conhecer todas os âmbitos da realidade, sem levar em conta certas peculiaridades, e oferecer uma compreensão geral da realidade, na determinidade de seus traços múltiplos e constituitivos. Para Kosik (2011, p. 44) a dialética da totalidade concreta “é uma teoria da realidade e do conhecimento que dela se tem como realidade”. O postulado da totalidade concreta “não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade” é, portanto, a teoria da realidade enquanto uma totalidade concretamente articulada.

Essa afirmação teórica evidencia que a realidade é compreendida como uma concreticidade, como uma totalidade estruturada em seus próprios fundamentos e conexões intrínsecas. Um todo mutável, com suas partes interagindo dialeticamente, dinamizando as relações e processos num conjunto articulado, coerente e inteligível. Como assinala Karel Kosik (2011), disso decorre certas orientações epistemológicas para pesquisa, “estudo”, “descrição”, “compreensão”, “ilustração” e “avaliação” de algumas dimensões tematizadas da realidade, quer seja da física, da literatura, das ciências bilógicas, da economia política, de questões teóricas da matemática ou de problemas práticos atinentes à forma de organização das nossas relações em sociedade.

Nesse sentido Kosik (2011, p. 45) enfatiza que no âmbito da ciência moderna a elaboração do conhecimento teórico, atinge tanto “a concepção dialética do conhecimento"[1] como a “compreensão dialética da realidade objetiva”. Com efeito, o filósofo marxista entende que a ciência se apresenta com uma unidade. E uma ciência, concebida como unitária se fundamenta no desvelamento “da mais profunda unidade da realidade objetiva”. A unidade do real; a unidade da realidade objetiva configura uma forma profunda de compreensão da peculiaridade de cada aspecto do real e de cada fenômeno que se manifesta.

A ciência no século XX se notabilizou por ter desenvolvido um conjunto de saberes extremamente especializados. Um grande número de campos do conhecimento científico surgiram, o que expressa de forma significativa, uma maior necessidade de compreensão da unidade material no interior dos múltiplos e dinâmicos aspectos do real. E nesse bojo se destaca um importante elemento, a saber: o problema das conexões entre mecanismo e organismo; causalidade e teleologia e, por conseguinte, a questão da unidade do mundo objetivo.

O que se apresenta como problema para reflexão nesse aspecto é a questão da “diferenciação da ciência”. O desenvolvimento significativo dos vários ramos do saber científico, com suas especialidades, divisões, classificações e etapas parecia comprometer a unidade do mundo, da natureza e, estabelecer uma divisão ou segregação destituindo-os de sua configuração unitária real. Nesse plano, pareceu que as matérias em suas temáticas específicas e os cientistas em suas áreas de pesquisa, se dedicariam apenas às suas disciplinas isoladas, pesquisando e atuando academicamente de forma solitária, sem comunicação e troca de informações no âmbito da comunidade científica. Ao contrário, ressalta Kosik (2011) que com as suas consequências e seus resultados concretos, a diferenciação da ciência levou, amplamente, ao descobrimento mais profundo e a um maior conhecimento da “unidade do real”.

            De outra maneira segundo Karel Kosik:


[...] esta compreensão mais profunda da unidade do real representa uma compreensão também mais profunda da especificidade de cada campo do real e de cada fenômeno. Em pleno contraste com o romântico desprezo pelas ciências naturais e pela técnica, forma justamente a moderna técnica, a cibernética, a física e a biologia que abriram novos caminhos ao desenvolvimento do humanismo e à investigação daquilo que é especificamente humano (KOSIK, 2011, p. 45, itálico no original).

 

Essa tentativa de constituir uma ciência unitária do real é produto da constatação de que a realidade na sua própria estrutura e legalidade imanente é dialética. O que revela-se por algumas analogias entre os diversos campos do real, em que todas as dimensões da realidade concreta, em seus fundamentos, são sistemas, ou seja, “conjuntos de elementos que exercem entre si uma influência recíproca”.

Podemos assim, estabelecer um paralelo entre as várias esferas da ciência em que essa relação se apresenta como conexões concretas, especificamente: a biologia, a física, a química, a tecnologia, a cibernética e a psicologia, no sentido de que elas estão diretamente ligadas aos problemas da organização, da estruturação, da integridade, da dinâmica de interação, levando à conclusão de que “o estudo das partes e dos processos isolados não é suficiente”. Ao contrário enfatiza Kosik: “[...] o problema essencial consiste em ‘relações organizadas que resultam da interação dinâmica, fazem com que o comportamento da parte seja diverso, se examinado isoladamente ou no interior do todo’” (KOSIK, 2011, p.46, itálico no original).

O positivismo no século XIX operou no campo das ciências humanas, especificamente na filosofia, uma perspectiva de análise pautada na “purificação” da concepção “teleológica” da realidade. Esta compreendida como uma estrutura hierarquizada, de acordo com matizes de aperfeiçoamento completo, reduzida simplesmente à realidade física. A maneira hierarquizada como os sistemas, baseados na configuração complexa da sua estrutura interna, resultou, segundo Kosik (2011), do alentado complemento do movimento da ilustração e da herança epistemológica de Hegel. Sob a prefiguração do “mecanismo”, do “quimismo” e do “organismo”, a realidade passou a ser analisada pela perspectiva da complexidade de sua estruturação imanente.

Todavia, salienta Karel Kosik (2011), que só a concepção dialética da realidade, apreendida em seu aspecto ontológico e epistemológico, permite alcançar uma resolução positiva e se desviar do “formalismo matemático” e do “ontologismo metafísico”. Essa concepção dialética da totalidade da realidade efetiva comporta “analogias estruturais” entre os vários segmentos das relações humanas como a linguagem, a economia, as relações de parentesco, por exemplo, representando um entendimento de que a realidade social em sua objetividade dialética está imbricada numa interação dinâmica entre a “analogia estrutural” e a “especificidade dos fenômenos em causa”.

Este princípio da totalidade concreta como perspectiva teórica de pesquisa dialética da realidade social, parte da afirmação de que todos os fenômenos da realidade podem ser apreendidos como um todo estruturado. Todo fato social, portanto, se constitui como um processo histórico, quando é compreendido como um momento do todo. A conexão entre a parte e o todo; a singularidade e a universalidade mediada dialeticamente por processos que interagem entre si, com todas as suas relações e contradições intrínsecas, sugere um sentido ontológico e gnosiológico imanente à própria estrutura hierárquica do mundo real, à relação dialética entre aparência e essência e à relação entre sujeito e objeto no processo de conhecimento.

            Para Kosik (2011, p. 49):


[...] Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade. Do mesmo modo, o todo de que não foram diferenciados e determinados os momentos é um todo abstrato e vazio (KOSIK, 2011, p. 49).

 

Pelo fato de que o real é um todo dialeticamente estruturado, que se cria e se processa, a pesquisa do conhecimento dos fatos ou sistemas de fatos da realidade objetiva, se apresenta como um conhecimento do lugar em que eles se situavam na totalidade da própria estrutura do real, pois, diferentemente, dos postulados do racionalismo e do empirismo, afirma o filósofo marxista, o pensamento dialético tem como ponto de partida o pressuposto de que o conhecimento humano se desenvolve num movimento dinâmico e contraditório, onde sujeito e objeto se determinam mutuamente. A realidade estruturada num todo significa que um conhecimento concreto da própria realidade não configura “um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções” (Kosik, 2011, p. 50).

Este processo de concretização no dizer de Kosik (2011), se caracteriza pela interação “do todo para as partes e das partes para o todo”, do fenômeno para a essência, da totalidade para as contradições, reciprocamente. Isso resulta numa configuração objetiva onde os processos de correlações entre essas esferas se clarificam mutuamente, até atingir a concreticidade. Esse processo de concretização é um “processo em espiral” de “mútua compenetração e elucidação” das categorias. Nesse sentido, o processo de abstratividade dos elementos é suprassumida em uma correlação dialética, baseada na interação “quantitativo-qualitativa, regressivo-progressiva”.

O todo, assim, da realidade, se cria a si mesmo mediante a relação dinâmica das partes. Sobre isso assevera Kosik: “[...] A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes (KOSIK, 2011, p. 50, itálicos no original).

O debate em torno da cognoscibilidade ou não da realidade concreta em si, como conhecimento da totalidade dos acontecimentos, funda-se na perspectiva empirista e racionalista, que afirma a ideia de que o conhecimento se processa a partir de um método de análise somatória. Estes pressupostos que fundamentam na configuração “atomística da realidade” como uma aglomeração indistinta de fatos, processos e coisas.

Na concepção dialética o real é compreendido e prefigurado como uma totalidade que não se constitui apenas como uma soma de relações, fatos e processos, mas também como a sua produção, estrutura e formação. À totalidade dialética, nos informa Kosik (2011, p. 51), “pertence a criação do todo e a criação da unidade, a unidade das contradições e a sua gênese”.

A concepção da realidade como uma totalidade, sofreu fortes ataques no século XX desferidos principalmente pelos empiristas e existencialistas. Para estes o mundo, especialmente no pós-segunda guerra, passou por um contundente processo de pulverização e, assim, deixou de se constituir como uma totalidade estruturada, redundando, por conseguinte, num caótico processo social. Nesse sentido, caberia ao sujeito a tarefa de reorganizar do mundo estilhaçado (KOSIK, 2011).

Num mundo marcado pelo caos, a ordenação das coisas é determinada pelo “sujeito transcendental”, ou pela posição subjetivista, para qual a totalidade do mundo desembocou numa fragmentação das perspectivas existenciais. A possibilidade de se conhecer o mundo em sua totalidade é um problema que Karel Kosic (2011) entende, como uma questão fundamentada na concepção de que o sujeito que conhece o mundo é sempre um sujeito determinado socialmente.

            Pois para o filósofo tcheco:


O sujeito que conhece o mundo, e para o qual o mundo existe como cosmo ou ordem divina ou totalidade, é sempre um sujeito social; e a atividade que conhece a realidade natural e humano-social é atividade do sujeito social. A distinção entre sociedade e natureza anda pari passu com a incompreensão de um fato: a realidade humano-social é tão realidade quanto as nebulosas, os átomos, as estrelas, embora não seja a mesma realidade (KOSIK, 2011, p. 52, itálicos no original).

 

Para a concepção materialista a realidade social pode ser apreendida em sua objetividade; em sua totalidade concreta, quando se desvela a estrutura essencial da realidade social mesma; quando a pseudoconcreticidade é suprimida, quando se conhece a reciprocidade dialética entre base e superestrutura e o homem enquanto sujeito da história. O homem concebido enquanto sujeito histórico-social, como sujeito da práxis objetiva humana é o fundamento, portanto, da compreensão da realidade social como uma totalidade concreta.

        O problema segundo Kosik (2011) da concreticidade ou da totalidade do real, nesse sentido, não está relacionado à “completicidade” ou “incompleticidade” dos fatos, às variações ou às mudanças de perspectivas, mas, igualmente, ao problema fundamental baseado na indagação sobre, o que é a realidade? Ou como se produz a realidade social? “Nessa problemática que indaga o que é a realidade social mediante a verificação de como é criada esta mesma realidade social, está contida uma concepção revolucionária da sociedade e do homem” (KOSIK, 2011, p. 53, itálicos no original).

A conexão interna dos fatos históricos e o próprio fato como reflexo de um dado contexto constitui um fundamento, cuja expressividade teórica, reside na concepção de que cada fato na sua essencialidade ontológica reflete toda a realidade concreta. Assim, a configuração objetiva da análise dos fatos consiste na “riqueza” e “essencialiadade” que eles conformam e expressam na unidade dialética entre ser e pensamento no interior da totalidade histórico-concreta. A realidade social existe, como um conjunto de fatos, mas num sentido de uma totalidade hierarquizada e articulada de fatos (KOSIK, 2011).

Tomemos aqui o exemplo da história. A justificação de que a história é a disciplina que busca descrever os fatos tal “como deveriam ter acontecido” sem a sua necessária interpretação e avaliação crítica, ignorando que os fatos têm uma significação objetiva e sem estabelecer a necessária distinção do que é essencial e acessório é, incorrer num equívoco científico. Kosik problematiza essa questão em tela da seguinte forma:


O historiador deve examinar a ação tal como ela efetivamente ocorreu. Mas que significa isso? A história real é a história da consciência humana, história de como os homens tomaram consciência da contemporaneidade e das ações que ocorreram, ou é a história de como as ações efetivamente ocorreram e de como deveriam ter-se refletido na consciência humana? Surge aqui um duplo perigo: descrever os fatos históricos tal como deveriam ter ocorrido e, portanto, racionalizar e tornar lógica a história, ou então narrar acriticamente os acontecimentos sem avaliá-los, o que, porém, equivale a desprezar o caráter fundamental do trabalho científico que consiste em distinguir o essencial do acessório, assim como o sentido objetivo dos fatos. A existência mesma da ciência depende da possibilidade de fazer semelhante distinção. Sem ela não haveria ciência (KOSIK, 2011, p. 55, itálicos no original).

 

Como afirma Kosik (2011), a mistificação e a equivocada consciência humana relacionada aos fatos contemporâneos ou pretéritos são elementos constituintes da história. Ou seja, as falsas ideias ou a consciência humana equivocada sobre própria realidade, não podem ser encaradas pelo historiador como apenas um fenômeno acessório ou casual, “ou que a eliminasse[m] como mentira e falsidade” que nada tivesse a ver com história, estaria alterando a própria história.
A concepção materialista concebe a existência de um duplo contexto de fatos: “o contexto da realidade”, onde os fatos existem em sua objetividade real imanente, e o “contexto da teoria”, no qual os fatos se constituem num segundo momento, mediados de forma ordenada, onde antes tinham sido extraídos de seu contexto original da realidade. E assim, pode-se conceber que a riqueza do real está na sua contraditoriedade e multiplicidades de significações (KOSIK, 2011).
Kosik clarifica de forma fundamental que o ponto de vista da totalidade concreta não tem nada de semelhança com a totalidade “holística”, “organicista ou neo-romântica”, que conforma o todo, sem considerar as mediações dialéticas com as partes efetuando assim, uma “mitologização do todo”. Do ponto de vista metodológico, a totalidade concreta comporta um processo genético-dinâmico, que pressupõe relações interativas, movimentos e contradições objetivamente determinadas. Pois, “[...] A totalidade não é um todo já pronto que se recheia com um conteúdo, com as qualidades das partes ou com as suas relações; a própria totalidade é que se concretiza e esta concretização não é apenas criação no conteúdo mas também criação do todo (KOSIK,2011, p. 59, itálicos no original).

A totalidade criada como uma estrutura significativa se apresenta como um processo que conforma ao mesmo tempo, a criação do conteúdo objetivo do real e a significação de todos os seus componentes e partes constitutivas. O que configura uma conexão mutuamente articulada. Para Kosik (2011), dessa questão emerge o problema relativo à afirmação de qual dimensão se constituiria como uma determinação primeira no processo de compreensão da realidade objetiva, se a totalidade ou as contradições. Ou seja, o que confere prioridade à totalidade e o que cofere prioridade às contradições. De acordo com Karel Kosik:     “O problema não consiste em reconhecer a prioridade da totalidade face às contradições, ou a das contradições face a totalidade, precisamente porque tal separação elimina tanto a totalidade quanto as contradições de caráter dialético: a totalidade sem contradição é vazia e inerte, as contradições fora da totalidade são formais e arbitrárias” (KOSIK, 2011, p. 60, itálicos no original).

As contradições e a totalidade formam uma unidade dialética mediada por uma interação dinâmica recíproca. Dessa forma, o que separa efetivamente a concepção materialista da totalidade da concepção estruturalista, por exemplo, é que a concreticidade da totalidade é determinada pelas contradições histórico-sociais e, a legalidade imanente própria das contradições na totalidade. Portanto, a totalidade como princípio metodológico constitutivo do método dialético materialista, reside no entendimento de que a totalidade é a totalidade unitária da base e superestrutura com seus movimentos, processos, influências mútuas e relações diversas. Sendo a base seu elemento preponderante em última instância. Do contrário, a totalidade se torna abstrata e vazia.

Entende-se dessa maneira, que a totalidade concebida à luz do materialismo histórico é produto da sociedade humana. O homem é um sujeito histórico-social que no processo de produção e reprodução de sua existência material é, criador da base e da superestrututa. Produz a realidade social como um conjunto de relações sociais, instituições e ideias. Neste processo de criação da realidade objetiva também produz a si mesmo, como um ser histórico-social, provido de sentidos e poderes plenamente humanos, realizando o processo contínuo da “humanização do homem”.

Por fim, ainda destacamos, com as palavras de Kosik que “[...] A totalidade concreta como concepção dialético-materialista do conhecimento do real [...] significa, portanto, um processo indivisível, cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o conhecimento de sua autêntica objetividade [...]” KOSIK, 2011, p. 61, itálico no original). A realidade concreta é assim, um produto da práxis humana objetivo-subjetiva, que se desenvolve num processo dialético constitutivo imanente da própria realidade historicamente determinada pelos sujeitos sociais em suas relações reais.


Antonio Marcondes

Doutor em educação pela UFC e membro dos grupos GPOSSHE (UECE) e GEM (UFC)

            

Referências bibliográficas    

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 9ª reimpressão no Brasil, 2011. 

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

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Notas

[1] Aqui destaca Karel Kosik (2011, p. 45) que na concepção dialética do conhecimento se manifesta, principalmente, a “relação dialética da verdade absoluta com a relativa, do racional com o empírico, do abstrato com o concreto, do ponto de partida com o resultado, do postulado com a demonstração [...]”.

[2] Aqui cabe uma analogia com a concepção de ideologia de G. Lukács: “[...] A ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos dos ser social; nesse sentido, toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade (LUKÁCS, 2013, p. 465, itálico no original).