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Domingos Sávio
Neste texto, procurei descrever, com base no livro História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpearx, como a arte de Homero e Hesíodo está enraizada na comunidade em que viveram.
A citada obra fala da Teogonia de Hesíodo (poeta grego que viveu entre 750 e 650 a.C.), que revela as crenças religiosas bem primitivas das camadas populares incultas da Grécia antiga e que estão imbuídas de terror cósmico, de medo do caos do mundo resultante da falta de seu conhecimento racional pelo homem; tal religião, inclusive, nessa mesma época já não era seguida pelos “intelectuais” da camada aristocrática do povo grego; em Hesíodo está fortemente presente o pessimismo dos camponeses que não têm perspectiva de melhorar as suas condições de vida, que se queixam da miséria e da opressão e “cujo ideal é a honestidade, cuja esperança é a justiça”. (pág. 27/28) De fato, segundo ainda Carpeaux, a religião primitiva da Teogonia de Hesíodo não está presente na Ilíada e na Odisséia de Homero, o que não deixa de ser um fato curioso já que são produto de uma mesma época histórica. Na epopéia homérica “a racionalização acha-se tão adiantada que os gregos de todos os tempos podiam ler Homero sem deparar com os primitivismos incompatíveis com os seus dias.” (pag. 27) Para o citado autor a característica fundamental da Ilíada é a presença de uma ética heróica dos guerreiros e da Odisséia a ética familiar de aristocratas latifundiários da Grécia antiga: Homero narra feitos e conquistas de homens superiores portadores de perfeição física e espiritual, que vencem as lutas porque ultrapassam seus próprios limites, ou até mesmo os limites da condição humana (os deuses, para os antigos gregos, representam um ideal atingível pelo homem; assim, a obra de Homero tem um caráter ético, serve como um guia da conduta de vida dos homens para atingir tal objetivo, tanto na vida pública como na vida doméstica).
Carpeaux fala ainda que Os trabalhos e os dias, a outra obra de Hesíodo, “é uma espécie de poema didático, que estabelece normas de agricultura, de educação dos filhos, de práticas supersticiosas na vida cotidiana. É uma poesia cinzenta, prosaica. Não tem nada com Homero. Não se trata de guerras, e sim de trabalhos, não de reis e sim de camponeses” (pág. 28). Aqui não há como não indagar o seguinte: as obras de Hesíodo e de Homero refletem as condições de vida de duas classes distintas do antigo mundo grego, a classe oprimida e a classe dominante opressora? Afinal, em Homero a aristocracia guerreira quer atingir a perfeição física e espiritual, tem por ideal a atingir a força e perfeição dos deuses. Em Hesíodo, os camponeses querem justiça face à sua opressão e miséria, querem viver honesta e dignamente de forma mais prosaica, digamos, sem arroubos heróicos. É claro que se trata de um reflexo mediado, não imediato da realidade. Essa ressalva, aliás, Carpeaux faz em relação à obra de Homero que, segundo ele, “compreende tudo: sol e noite, tragédia e humor, universo grego inteiro, do qual é a bíblia e o cânone ideal. Cânone estético e religioso, pedagógico e político; uma realidade completa, mas não o reflexo imediato de uma realidade. Se Homero só fosse este reflexo (imediato), teria perdido toda a importância com a queda da civilização grega. Mas era já, para os gregos, uma imagem ideal; e não desapareceu nunca. O equilíbrio entre realismo e idealidade é que confere aos poemas homéricos a vida eterna: a bíblia estética, religiosa e política dos gregos podia transformar-se em bíblia literária da civilização ocidental inteira.” (pág. 27) Diz o mesmo autor que os exemplos de conduta contidos na Ilíada e na Odisséia “aplicam-se – e Homero acentua isso – aos temperamentos mais diversos e aos homens de todas as condições sociais.”(pág. 28) Isso lembra Marx para quem as idéias da classe dominante são as idéias prevalecentes na sociedade. A ideologia do mundo “proletário” refletida na obra de Hesíodo seria assim restrita à classe trabalhadora, aos camponeses; não seria essencial, portanto, para a definição da identidade grega da época; para Carpeaux, esse papel é cumprido pela epopéia homérica: “Homero é o próprio mundo grego”, diz ele. (pág. 28)
Confirmando a tese de Lukacs de que a obra de arte autêntica trata de uma totalidade, figura um mundo fechado, Carpeaux diz que a epopéia homérica “compreende tudo: sol e noite, tragédia e humor, universo grego inteiro, do qual é a bíblia e o cânone ideal. Cânone estético e religioso, pedagógico e político; uma realidade completa, mas não o reflexo imediato de uma realidade.” (pág. 27).
A obra de Hesíodo que, para Carpeaux, “é o Homero dos proletários”, também parece refletir a totalidade da realidade da classe social subalterna dos camponeses, já que: 1) abarca a sua visão cosmogônica (as crenças religiosas pré-homéricas com a narração das cinco idades da humanidade, da Idade Áurea até a Idade do Ferro, que estão imbuídas de um “pessimismo pouco homérico”, e “os mitos do caos, da luta dos deuses, dos gigantes, de Prometeu e Pandora, que cheiram ao terror cósmico próprio dos povos primitivos” (pág. 27); e 2) “estabelece normas de agricultura, de educação dos filhos, de práticas supersticiosas na vida cotidiana” (pág. 28). Por isso, diz Carpeaux, “nem todos os aspectos da vida grega se refletem na epopéia homérica” (pág. 28). Mesmo assim, reitere-se, para este autor a essência da vida dos antigos gregos está figurada na obra de Homero.
Carpeaux adota o entendimento já estabelecido por historiadores da arte de que as obras de Homero e de Hesíodo têm um ponto em comum muito importante: o caráter pedagógico. Aqui está presente de modo patente a função social da arte de que fala Lukacs, fundamentalmente de garantir a reprodução social do antigo mundo grego. Isso pode ser demonstrado pelo fato de que na visão cosmogônica da classe camponesa, presente nas obras de Hesíodo, temos a presença de crenças religiosas que enfatizam o domínio da natureza sobre o homem, que o tornam vulnerável e, portanto, impotente, que lhe causam o terror, o medo do caos do mundo, tornando-o, assim, inseguro (veja-se o mito da caixa de Pandora que, após aberta, liberou várias doenças e sentimentos que atormentariam os homens ad eternum). Tal religião tem a clara tendência de levar à passividade social, à impotência, do que resulta o pessimismo “dos camponeses que não têm perspectiva de melhorar as suas condições de vida, que se queixam da miséria e da opressão” porque estão sempre a esperar a justiça que nunca vem. Tal passividade social era certamente funcional à dominação aristocrática.
Essa visão religiosa dos antigos camponeses gregos não está presente em Homero, muito pelo contrário; nele domina “o páthos heróico da Ilíada e a ética aristocrática da Odisséia (que) são imagens ideais da vida, que exercem influência duradoura sobre a realidade grega. Na ‘Telemaquia’ e na ‘educação’ de Aquiles, essa intenção é até manifesta. O instrumento de intenção pedagógica é a criação de exemplos ideais, tirados do mito. A tradição só ofereceu uma série de lutas; Homero interpretou-as como vitórias exemplares de homens superiores, e a maior dessas vitórias é a de Aquiles. Por isso a Ilíada não vai além desta última vitória, que é essencialmente uma vitória do herói sobre si mesmo. A presença dos deuses homéricos, que são, por definição, ideais humanos, revela não só a condição humana, mas também a capacidade dos homens de superá-la.” (pág. 25) Assim, a visão religiosa da aristocracia guerreira do antigo mundo grego estimulava na classe dominante a idéia de potência, de aperfeiçoamento físico e espiritual, a conduzia a observar uma ética na vida pública dirigida à iniciativa e à ação heróica, certamente considerada superior e mais gratificante que a ética prosaica e dirigida apenas à sobrevivência, à “vida honesta” do camponês; afinal, parece-nos inequívo, pela leitura de Carpeaux, que a epopéia homérica reflete a essência do mundo grego dos séculos VIII e VII a. C. Assim, para esse autor, “Hesíodo é o Homero dos proletários, é o reverso da medalha” do mundo heróico retratado na epopéia homérica.
Carpeaux também afirma que embora não seja possível “determinar com exatidão a época em que as epopéias homéricas foram redigidas” (pág. 26), “os antigos sempre citaram Hesíodo como contemporâneo de Homero, e a análise da sua língua permite realmente situá-lo no século VII” (pág. 28).
Portanto, pode-se tranquilamente afirmar que as grandes obras de Homero e de Hesíodo estão firmemente enraizadas na realidade material do mundo grego dos séculos VIII e VII a. C, justamente porque refletem de forma mediada (não imediata) as condições de vida de suas classes sociais mais importantes.
No caso de Homero, o “equilíbrio de realismo e idealidade” que confere à sua obra um caráter eterno pode muito bem ser estudado à luz da obra de Lukacs. Fica a dica para quem tiver interesse nesse interessante tema.