sábado, 3 de abril de 2021

Feminismo na ciência

Photo: Science in HD

Karla Costa

Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Ceará - PPGE/UECE


    Do ano passado para cá, recebi alguns convites para falar sobre mulheres e ciência. Todos os debates foram riquíssimos e eu não seria capaz de reproduzir aqui a diversidade de perspectivas trazidas por mulheres incríveis que conheci nesses espaços. Há muito tinha resolvido que transformaria em texto algumas anotações que fiz para essas atividades; somente agora, consegui dar cabo desse projeto. O resultado não é um artigo científico bem referenciado, mas tentei construir uma organicidade lógica das ideias. O objetivo é guardar o texto para futuras leituras.

Há diferentes vertentes do feminismo, tanto que hoje usa-se a palavra no plural: feminismos;


Mas o que caracteriza uma vertente?


Dividimos as vertentes do feminismo a partir de como se compreende a origem da opressão e o que é preciso ser feito para superar essa opressão. Como vocês já devem saber, minha vertente é o feminismo marxista, ou marxismo feminista, como nomeiam algumas correntes. A questão é: compreendo a superação da opressão das mulheres a partir da superação do capitalismo porque a origem e o interesse dessa opressão está nas relações capitalistas.

A opressão da mulher nem sempre existiu. Há estudos que apontam que, em sociedades primitivas, havia divisão do trabalho, mas que não implicava subordinação das mulheres. Estudos divergem sobre a origem dessa opressão; alguns apontam a produção do excedente, outros falam sobre a propriedade privada, alguns tratam do controle da prole. Tenho gostado bastante de pensar que tudo isso tem relação com a opressão das mulheres. 

Gosto bastante do livro "A criação do patriarcado” porque a autora, Gerda Lerner, traz, como o título indica, a história da formação do patriarcado desde o que os estudos antropológicos e arqueológicos das comunidades primitivas apontam, assim ela demonstra como eram as relações dessas sociedades e que não há evidências de sociedades matriarcais, se por matriarcado entendermos o par de patriarcado, ou seja, sociedades em que o poder exercido por mulheres causava opressão aos homens.


As evidências que a autora apresenta nos mostram que em muitas sociedades antigas algumas mulheres exerciam funções ou estavam em posições mais privilegiadas do que outras, como as concubinas e as sacerdotisas etc. Esse livro é fundamental exatamente para uma das tarefas a que se propõe: contar a história das mulheres omitida da grande História e desconhecida pelas mulheres.

Outro aspecto interessante dessa obra é a argumentação, com base em evidências, de que, no momento em que se instala, a opressão é patriarcal. A autora, então, aponta para a instalação, por exemplo, do escravismo e de como a troca entre tribos, depois a escravização de mulheres, pode ter contribuído para a instauração desse novo modo de produção. A partir daí a autora desdobra como a opressão das mulheres sempre esteve intrinsecamente ligada ao escravismo.

Em diferentes sociedades a opressão das mulheres vigorou, mas isso não significa que as mulheres sempre foram passivas ou que não produziam conhecimento. 

Na Antiguidade, desde muito tempo, foi negado às mulheres acesso à educação formal. Na Grécia Antiga, berço da filosofia, só podiam ser considerados filósofos, homens sábios, como o nome indica, os homens, que também eram os que poderiam exercer a democracia. O lugar da mulher era como a cuidadora do lar. Aqui os filósofos já desenvolveram um ponto de vista centrado na dualidade homem-mulher.

Mulheres na Grécia


Pitágoras expressou esse ponto de vista, no século V a.C., afirmando que a existência de um bom princípio que criaria a ordem, luz e homem; e um mal princípio que criou caos: sombra e mulher. Aristoteles afirmava que o sangue menstrual era o material para o crescimento da semente do homem, que seria o carpinteiro e a mulher, a madeira. Esse pensamento dualista, Zeus/Hera, tem grande influência no desenvolvimento da ciência e perdura até hoje.

Ainda assim, há aqui registros de mulheres importantes para a história do desenvolvimento do pensamento humano. Sócrates cita Aspasia, chamando-a de “minha professora”; e sabe-se que Theano e suas filhas continuaram os estudos de Pitágoras. Talvez, o caso mais emblemático seja o de Hypatia de Alexandria que, em Roma, escapou da socialização das mulheres graças ao pai que a iniciou nas artes, ciência, filosofia, matemática. Considerada pelo cristianismo como herege, foi acusada de promover práticas pagãs, morreu linchada por uma multidão. Hypatia escreveu três livros, inventou um astrolábio e um planisfério, aparato para destilar água, mediar a gravidade dos líquidos.

Hipatia ou Hipácia - Filósofa Grega Neoplatônica do Egito Romano


Na Idade Média, a Igreja Católica monopolizava a educação, por isso os conventos eram praticamente os únicos lugares onde mulheres podiam se educar. Muitas mulheres produziram conhecimento: a abadessa Hildegarde of Bingen, que vivei 30 anos num convento, escreveu extensamente sobre natureza, astronomia, elaborou o sol no meio do firmamento, fez estudos de medicina, mas, quando henrique VIII fechou os conventos na Inglaterra, os trabalhos dela foram doados à Oxford e Cambridge, instituições masculinas.

Não posso esquecer de falar sobre a caça às bruxas ocorrida na Idade Média nem deixar de indicar o livro "Calibã e a bruxa", de Silvia Federici, no qual ela argumenta que a caça às bruxas foi um evento fundamental para a consolidação do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva. Mulheres, na Idade Média, também não estavam passivas às condições em que viviam. Federici expõe como elas estavam organizadas nas lutas antifeudais, nos movimentos milenaristas e que muitos movimentos heréticos eram organizados por mulheres que se opunham à ordem. A luta pela terra era uma das pautas dessas mulheres.

A caça às bruxas foi um empreendimento para domesticar as mulheres e limitá-las à esfera privado. Por quê? Porque, ao exercer as tarefas domésticas no lar, as mulheres assumem a manutenção da força de trabalho a ser vendida ao capital e da qual o capitalista extrai a mais valia.


Em casa, as mulheres produzem e reproduzem a força de trabalho a ser explorada nas fábricas, nos postos de trabalho e ainda, ao ingressarem no mercado, passam a ser duas vezes exploradas, já que acumulam as funções fora e dentro do lar. É claro, como sabemos, que todo o sistema de exploração, para se manter, precisa de um sistema ideológico que lhe dê suporte e que se reproduza quase autonomamente incutindo as ideias e os ideais que mantem o sistema de exploração de pé, aqui podemos inserir a cultura, a educação, a religião.

Finalmente, chegamos ao feminismo.

É no Renascimento que a chamada “Quereles das femmes” marca o início das reivindicações das mulheres por igualdade. Essas mulheres passam a exigir educação, contrapondo-se à ideia da inferioridade natural da mulher sustentada na ciência, desde a Antiguidade. A mulher era vista como um ser inferior e naturalmente irracional, histérica. O discurso científico não foi usado apenas para justificar a opressão das mulheres, mas discursos pseudocientíficos da antropologia e do darwinismo social afirmavam a inferioridade de raças.


Ilustração de A cidade das Damas de Cristina Pisano


As mulheres que passaram a reivindicar direitos eram, naturalmente, as que tinham algum acesso à riqueza e à cultura, de modo geral, pois tinham se educado minimamente para debater, nos círculos sociais aristocratas e burgueses, os direitos das mulheres sem que isso lhes custasse a vida; mesmo assim, muitas sofreram as consequências de sua reivindicação, afinal nunca se tratou apenas dos direitos das mulheres, mas esse levava naturalmente ao questionamento da ordem social estabelecida.

O feminismo se introduz no Brasil também ligado à reivindicação por educação. No Brasil colônia e império, a educação de mulheres era inexistente e voltava-se para as prendas domésticas. As mulheres que ainda acessavam essa educação eram as da classe média e alta da sociedade.

A partir daqui, quero discutir dois pontos: a mulher como objeto da ciência e a mulher como cientista. Claro que o debate é superficial, mas espero que ele sirva para colocar questões a serem aprofundadas.


Podemos definir, de modo bastante geral, o feminismo como uma tomada de consciência do coletivo de mulheres acerca da opressão, dominação e exploração que sofremos, no seio da sociedade capitalista, bem como das sociedades que o antecederam. O feminismo se impõe à diversos setores sociais, com a ciência não foi diferente, mesmo que tenhamos sido excluídas desse campo da práxis humana.


Quanto a sermos consideradas em nossa singularidade, vale destacar que mulheres eram excluídas de estudos clínicos de diversos medicamentos, pois o corpo feminino era visto como reflexo do masculino, feminismo e lesbianismo eram consideradas doenças já nos séculos XIX e XX, a sexualidade das mulheres era considerada e tratada como uma doença através de procedimentos como o de remoção do clitóris e dos ovários. Charles Darwin, por exemplo, considerava as mulheres como inferiores.

No Brasil, estudos sobre as mulheres passam a surgir, em meados de 1970-1980. Período também em que se dá a entrada das mulheres nas universidades, por mais que ainda tenhamos que reivindicar a legitimidade diante dos saberes acadêmicos, mas surgem linhas, núcleos, programas de pesquisa, grupos de estudo, de trabalho, congressos que trazem a temática das mulheres.

É claro que esse movimento vai transformando, questionando as instituições e as estruturas da prática científica. O feminismo critica e aponta que a pretensa neutralidade científica é falsa. A ciência é política. Quando questiona que o privado é público, ou seja, questões que antes não eram compreendidas nem reconhecidas, pois ocorriam na privacidade do lar, passam a evidenciar as relações de poder nas quais às quais as mulheres estão subjugadas, inclusive no que diz respeito à produção de saberes. Esse questionamento da neutralidade da ciência evidenciou como ela foi usada para justificar opressões: práticas sexistas, racistas e xenófobas, por exemplo.


A luta concreta das mulheres obrigou a ciência a pensar sobre nós.


Aqui é preciso colocar uma questão de classe: o mesmo tratamento foi dado às mulheres negras? Quando as mulheres começam a reivindicar e a ocupar os espaços na ciência, quem são essas mulheres. Na resposta, precisa ficar explícito que só poderiam ser mulheres que tinham a possibilidade de acessar um conjunto de conhecimentos e bens materiais que tornaram esse acesso possível. O feminismo, até hoje, questiona a visão do senso comum sobre o cientista, que é uma imagem marcada por um gênero, uma classe e uma raça, determinada pelas relações de exploração e opressão das quais falei antes.

A história está recheada de casos que recentemente vieram à tona de apropriação dos trabalhos de mulheres, de relatos pessoais de abuso, machismo, sexismo vivenciados por mulheres nos locais de atuação. Por mais que possa parecer, não há uma igualdade de condições no acesso à produção científica por mulheres nem pelas classes subalternas.

Com a pandemia do novo coronavírus (SARS-COV-2), algumas notícias evidenciaram essa desigualdade: redução da produção científica feita por mulheres, mulheres gastam mais tempo com as tarefas domésticas, mulheres que abandonaram os cursos de graduação e pós-graduação. Infelizmente não tenho mais as referencias desses dados, mas uma breve pesquisa  na internet trará à tona essas informações.

Para além desse machismo mais superficial que se expressa no comportamento individual, é preciso destacar o machismo institucional que, por mais que as instituições acadêmicas queiram se valer de políticas inclusivas, que se manifesta nas práticas e na cultura organizacional: concursos públicos que não diferenciam a produção de homens e de mulheres, seleções que não consideram as condições femininas como a maternidade e, por isso, não criam condições reais de permanência para as mulheres. Segundo dados do ScholarOne, a queda de artigos com mulheres primeiras autoras caiu 25% entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020.

Se uma mulher deseja fazer ciência, ela certamente vai acumular as tarefas domésticas com as tarefas da atividade acadêmica ou de pesquisa; se ela não tiver financiamento e precisar sustentar a si mesma e à família, deve somar as tarefas do trabalho remunerado. Se essa mulher for preta, some-se a todas as dificuldades àquelas próprias que uma mulher negra enfrenta. Nessas condições, como podemos disputar o espaço restrito dos meios científicos em pé de igualdade com os homens? 

A resposta para a pergunta acima é quase uma pegadinha, afinal a sociedade capitalista não deseja que mulheres exerçam essas atividades, pelo menos não se ela precisar abandonar as tarefas de cuidado do lar, pois esse é o papel que o capitalismo espera que exerçamos. Ele até tolera que acumulemos as tarefas ou que paguemos outra mulher para assumir aquelas que não conseguirmos dar conta, mas não podemos questionar qual é o nosso lugar nessa sociedade.

Por tudo isso, um alerta é fundamental: o sexismo e o machismo não é apenas um problema de alguns homens nem de algumas instituições, mas uma característica intrínseca à sociedade capitalista que se desdobra em diversas esferas: individuais, institucionais e estruturais. São muito importantes movimentos de denuncias de casos singulares de assédio moral, sexual, machismo, mas sempre precisamos conectá-los com a lógica perversa do capitalismo porque é ele quem produz e reproduz a opressão.

Se é preciso apontar alguma perspectiva de pensar o papel do questionamento que o feminismo traz para o campo científico, penso que é este: atuar no que é aparente e chegar na estrutura para destruí-la. Não apenas a perspectiva de gênero, mas também a de raça e da luta de classes como a articulação de todas as lutas para revolucionar o discurso e a produção científica, afinal é preciso mudar o olhar sim, questionar com a exigência de uma tomada de posição para a construção de uma nova práxis.

É daqui para frente; não vamos recuar.


Bibliografia usada como base para esse texto

GERDA, Lerner. A criação do patriarcado: a história da opressão das mulheres pelos homens. Tradução Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Editora Alameda, 2017.

*Falta um título que eu não consegui encontrar, mas continuarei procurando e atualizo assim que o achar.