Michel Löwy, importante marxista brasileiro, em certa ocasião se referiu a Daniel Bensaïd (1946-2010) como um “comunista herético”[1], tal designação é absolutamente oportuna, sobretudo porque se trata de um autêntico pensador marxista-trotskista não dogmático; lúcido, combativo e revolucionário no pleno sentido da palavra, foi um dos mais representativos militantes de uma geração que não sucumbiu aos imperativos do derrotismo político pós 68. Nesse sentido, podemos afirmar que seu pensamento crítico é uma “arma quente” para os combates do tempo presente.
Daniel Bensaïd foi um dos fundadores da Juventude Comunista Revolucionária (JCR) na França em 1966, agrupamento de jovens revolucionários inspirados no pensamento de Trotsky e Che Guevara. Se tornou uma figura expoente nas revoltas do movimento de Maio de 68. Neste mesmo ano, ele organizou com amigos e estudantes radicalizados o Movimento 22 de Março. E um ano depois, organizou junto com Alain e Hubert Krivine, Janete Habel Catherine Samary e outros, a Liga Comunista Revolucionária (LCR), seção francesa da 4ª Internacional.
Publicou inúmeros livros na melhor tradição da polêmica marxista, sempre dirigindo seu arsenal teórico inesgotável contra um alvo certo: a sociedade burguesa e suas engrenagens produtoras de misérias e infâmias. Nessa fortuna literária de combate encontramos (no original): Les Dépossédés: Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres; Marx, L’intempestif; Penser Agir; La Politique Comme Art Stratégique; Moi La Révolution; La Revolution Et Le Pouvoir; La Discordance Des Temps, Le Pari Melancolique.
O furor dos escritos de Bensaïd é destilado com a pena da poesia, ironia e crítica política espicaçante. Seu pensamento nunca se vergou aos ditames da ordem estabelecida, fui um verdadeiro insurrecto contra os simulacros da sociedade da mercadoria e seus espetáculos de ignomínia. Sua inclemente navalha teórica abriu profundas fissuras na consciência comum, mostrando a necessidade imperiosa de nunca ficarmos desatentos ao jogo de cartas marcadas da democracia burguesa e seus artifícios de conformismo coletivo.
Para Bensaïd a dignidade de um revolucionário socialista não pode se dobrar ao arbítrio das classes dominantes. Sua sede de luta era insaciável. Sua moral revolucionária, baseada nos próprios princípios de vida de Marx, Trotsky, e tantos outros camaradas de luta, era “não se resignar, não se reconciliar com os vencedores”. Uma de suas principais refregas no campo teórico e ideológico foi não deixar os preceitos do comunismo autêntico se dissolverem no totalitarismo stalinista. Tinha plena consciência da necessidade de rever criticamente os avanços, limites e, sobretudo os erros que debilitaram a Revolução Bolchevique do ponto de vista histórico.
Sua lúcida e percuciente análise crítica dos desdobramentos históricos nos ajudam a desvelar as obscuridades que envolvem o debate sobre “Partido” e “Estado”, a ameaça do burocratismo, a indispensável democracia socialista, o pluralismo das posições e a autonomia do conjunto dos movimentos sociais face ao Estado. Questões já suscitas, a propósito, por Rosa Luxemburgo em 1918 (LÖWY, 2013).
O pensamento filosófico de Daniel Bensaïd não se baseia em modelos acadêmicos. Seu inconformismo político e feroz indignação social atravessam as fronteiras do conhecimento, desaguando numa prática absolutamente consequente que toma a reflexão teórica como uma ferramenta para iluminar os caminhos sinuosos que devem ser sobrepujados para deflagrar a aurora da Revolução.
A crítica à sociedade do “espetáculo” não é uma mera apresentação de ideias sofisticas e grandiloquentes, nas palavras de Bensaïd:
Esta sociedade que consome durante um presente eterno se torna propícia a uma violência que não é mais propriamente histórica, sagrada, ritual, ideológica, mas que explode de maneira esporádica ‘no seio do nosso universo de quietude consumada’ e ‘vem reassumir, aos olhos de todos, uma parte da função simbólica perdida, muito brevemente, antes de desaparecer ela mesma enquanto objeto de consumo’. Desprovida de toda visão estratégica, esta violência urbana […], colocada em imagens televisuais, são ofertadas como espetáculo. Após o espetáculo, estágio supremo do fetichismo da mercadoria, soa a hora do simulacro como estágio supremo do espetáculo (BENSAÏD, 2013, p. 30, itálico nosso).
A negação da historicidade dos processos sociais é igualmente uma possibilidade estratégica de negação da política; de negação das perspectivas históricas de organização das estratégias e ações de mobilização da lutas de classe no seio do capitalismo organizado do pós-guerra.
A “questão foucaultiana”, por exemplo, estaria ligada ao “novo espírito da contrarreforma liberal” e, por uma malícia da razão,
[…] do qual tem o segredo, a invenção conceitual de Deleuze e Fouccault, radicalmente subversiva em relação ao capitalismo estatista […] dos ‘trinta gloriosos’ [30 anos de crescimento capitalista 1945-1975], acabaria assim por perder a hora. Ela entraria em ressonância com o discurso da desregulamentação liberal, da ‘sociedade líquida’, da história em migalhas. Ao isomorfismo entre um capitalismo nacional, centralizado e organizado, se sucederia um novo isomorfismo entre um capitalismo mundializado e desterritorializado e um movimento social reticular ou rizomático. Uma vez mais, o sistema demonstra sua capacidade de se nutrir da crítica e de digeri-la (BENSAÏD, 2013, p. 32, itálico nosso).
Para Foucault, a revolução não seria mais uma necessidade, mas tão somente uma mera desejabilidade subjetiva. Nesse sentido, de acordo com Bensaïd, é todo um paradigma político que é colocado em questionamento, paradigma no qual se articulava uma “concepção de Estado, uma representação das classes e de suas lutas e um pensamento estratégico acerca da revolução. Em Foucault, o poder do Estado se torna substancialmente diluído nas relações de poder, as classes na plebe hirsuta e a revolução nos caprichos de uma subjetividade desejante” (BENSAÏD, 2013, p. 32-33). Tal proposta tem de tudo, menos engajamento consciente e consequente. O postulado segundo o qual é no plano do desejo de revolução que residiria hoje o principal problema contemporâneo emerge, de fato, como uma capitulação frente as injunções autoritárias e reacionárias da sociedade burguesa; uma conformação passiva às estruturas da ordem vigente. Foucault via na revolução iraniana “uma nova semática dos tempos históricos”, um fator revelador da nova dinâmica da sociedade pós-guerra. Essa visão equivocada e distorcida das possibilidades históricas concretas de uma revolução autêntica em Foucault, tem uma razão de ser:
Ao invés de buscar superar a crise pela extensão no tempo e no espaço da revolução em permanência, Foucault se consola das ilusões perdidas pensando-a ‘não simplesmente como um projeto político, mas como um estilo, um modo de existência, com sua estética, seu ascetismo e formas particulares de relação consigo mesmo e com os outros’. Ou seja, uma revolução reduzida a um estilo e a uma estética sem ambição política. O caminho está aberto às revoltas em miniatura a aos prazeres pós-modernos”(BENSAÏD, 2013, p. 34, itálico nosso).
Sob muitos aspectos, o debate contemporâneo acerca das possibilidades históricas da Revolução Socialista ganha contornos de urgência. Trata-se de pensar como superar concretamente o modelo de sociedade capitalista via insurreição das massas organizadas. Com efeito, Daniel Bensaïd (2008, p. 9) faz uma constatação imprescindível sobre o “esgotamento do debate estratégico na esquerda em geral e na esquerda radical em particular”, pois, a socialdemocracia (no Brasil PT e PSOL) aliada a uma perspectiva liberal moderada reproduz apenas “banalidades apologéticas”. Por outro lado, os partidos de inspiração stalinista deformaram a perspectiva histórica da revolução permanente. Nesse sentido, ficaram reduzidos à incapacidade teórica e a uma debilidade moral e política enormes. Sucumbiram a uma agonia lancinante; sem estratégias revolucionárias, não passam de organizações de cunho reacionário e meramente eleitoreiras.
Não podemos correr o risco de se contentar com um programa meramente eleitoral. A burguesia e sua sanha de dominação imperialista não nos oferece outra estratégia senão a Revolução Socialista. As estruturas hegemônicas da sociedade capitalista não cederão nem um palmo de dignidade, muito menos de universalização das riquezas por ela extraída mediante a exploração do trabalho. A agenda neoliberal de destruição dos direitos sociais e conquistas históricas da classe trabalhadora, está a todo vapor, sobretudo no Brasil governado pelo neofascista Bolsonaro, representante da fração mais reacionária e autoritária do exército, apoiado pela extrema direita e o imperialismo estadunidense. Nosso capitalismo dependente é um indisfarçável opróbrio.
No contexto atual de terra arrasada pela pandemia da Covid-19 e pela crise econômica em curso que atinge de forma avassaladora o conjunto da classe trabalhadora, não resta outra alternativa mais viável para caminharmos rumo a uma sociedade emancipada, senão a Revolução Socialista. O comunismo é uma possibilidade histórica que urge realizar. E aqui duas últimas questões candentes levantadas por Bensaïd (2008, p. 9) para refletirmos sobre o “novo tempo do mundo”:
O que pensar da luta de classes, na época do aumento da força de um individualismo sem individualidade, da desfiliação social e nacional, de seres sociais cujas identidades plurais ameaçam fragmentar-se?
A idéia de um futuro comunista da humanidade morreu com o aniquilamento de suas caricaturas burocráticas e com o encerramento do que alguns historiadores definem como o ‘curto século XX?
Questões para os combates do tempo presente.
REFERÊNCIAS
BENSAÏD, Daniel. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2208.
_______________. Espetáculo, fetichismo, ideologia (um livro inacabado). Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura /Expressão Gráfica e Editora, 2013.
[1] Löwy explica que: “Auguste Blanqui, comunista herético é o título de um artigo que escrevemos juntos em 2006, publicado depois na revista Margem Esquerda. Este conceito se aplica perfeitamente a seu próprio pensamento, teimosamente fiel à causa dos oprimidos, mas alérgico às ortodoxias” (LÖWY, 2013, p. 10, itálico no original).