terça-feira, 8 de junho de 2021

A dialética do tempo: história, ideologia e consciência em Antonio Gramsci


        Gramsci (1891-1937) concebe a história como o processo pelo qual o homem torna-se homem, isto é, nada do que exista no plano da vida humana é desprovido de processualidade, gênese, dinâmica, contradição e movimento. Tudo que existe no âmbito da sociedade, é produto do desenvolvimento da capacidade criadora dos indivíduos; capacidade pensar, intuir, sentir, idealizar, construir, inovar e expressar isso tudo numa linguagem carregada de conceitos, símbolos e visões de mundo. Os homens ao expressarem o que pensam e sentem, fazem história. 

        Para o pensador marxista italiano todos os homens são “filósofos”, no sentido de serem capazes de manifestar esta “filosofia espontânea” própria a “todo mundo”, a partir de seus limites e características, e ela está presente: 1) na própria linguagem, que consiste num conjunto de noções e conceitos específicos e, não somente, um aglomerado de palavras destituídas  de conteúdo; 2) no senso comum e no bom-senso; 3) na religião popular e, portanto, em todo o sistema de representações das opiniões, crenças, superstições e modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se convencionou chamar de folclore. 

        Historicamente falando, os homens sempre expressaram determinadas concepções de mundo, bem como, pertenceram a um determinado grupo. Essas qualidades propriamente sociais, explicam como os indivíduos partilham um mesmo modo de pensar e agir. “Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos” (Gramsci, 1991, p. 12). Existe para Gramsci duas maneiras específicas dos homens elaborarem suas visões de mundo, a primeira, diz respeito a uma perspectiva crítica e consciente de pensar e agir programaticamente para tornar possível as mudanças no mundo, a segunda, trata do pensar sem necessariamente ter consciência crítica disso, ou melhor, é uma maneira ocasional e desgregada de participar de uma concepção de mundo imposta arbitrariamente pelo “ambiente exterior”. 

        Nos explica Gramsci: “Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontra elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado” (Gramsci, 1991, p. 12, itálicos nosso).

        Segundo o filósofo marxista, criticar a própria concepção de mundo, significa, portanto, conferir-lhe unidade e coerência e, nesse sentido, elevá-la ao ponto máximo do pensamento universal mais desenvolvido. Com efeito, isso vale também para toda a filosofia existente até o momento, diz Gramsci. Pois a crítica dela significa, evidenciar em que medida ela deixou “estratificações consolidadas” na filosofia popular. 

        O começo da elaboração crítica do pensamento é o ponto de partida daquilo que somos realmente. De acordo com Gramsci, tal pressuposto configura “um conhece-te a ti mesmo” enquanto um produto do processo histórico até hoje explicitado. A historicidade dos processos sociais constitui a chave de explicação para o sentido do ser das coisas, ideias, noções, processos e relações do mundo. 

        Por exemplo, a filosofia não pode estar separada da História da Filosofia, tampouco a cultura pode estar separada da História da Cultura. Por isso, no que diz respeito ao “sentido mais imediato e determinado, não podemos ser filósofos – isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente – sem a consciência da nossa historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções” (Gramsci, 1991, p. 13). 

        Do ponto de vista histórico, a criação de uma nova cultura não significa somente fazer individualmente uma descoberta original, mas significa também, reproduzir criticamente verdades já estabelecidas; difundi-las, socializá-las. Conforme os postulados de Gramsci, o fato de que uma coletividade humana seja orientada a pensar coerentemente e de modo unitário a realidade social do presente, constitui um fato “filosófico” bem mais significativo e “original” do que a descoberta ou inovação por parte de uma mente filosófica brilhante acerca “de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais”. 

        Nesse sentido, é que podemos pensar, por exemplo, na ideologia enquanto uma concepção do mundo, que se manifesta de maneira implícita na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as esferas da vida social, coletiva ou individual. Assim, a ideologia está diretamente ligada ao problema da conservação da unidade ideológica da totalidade do bloco social, que está assentada e unificada precisamente por aquela ideologia específica. 

        Aqui Gramsci nos fala, precisamente, do problema da ideologia religiosa, especificamente a da Igreja Católica, quando afirma: “A força das religiões […], consistiu e consiste no seguinte fato: que elas sentem intensamente a necessidade de união doutrinal de toda a massa ‘religiosa’ e lutam para que os estratos intelectualmente superiores não se destaquem dos inferiores. A Igreja romana foi sempre a mais tenaz na luta para impedir que se formassem ‘oficialmente’ duas religiões, a dos ‘intelectuais’ e das ‘almas simples’” (Gramsci, 1991, p. 16). 

        Esta luta, decerto, foi travada com grandes inconvenientes para a própria Igreja Católica. Contudo, esses inconvenientes estão relacionados ao processo histórico que produziu uma mudança profunda na totalidade da sociedade civil e que estabeleceu, em bloco, uma ferrenha crítica da ideologia religiosa. 

        Isso demonstra a exímia habilidade do clero em organizar a esfera da cultura, bem como a racionalidade da Igreja, no sentido de diferenciar as capacidades e alçadas entre os “intelectuais” e os “simplórios”. Foram os jesuítas, “[…] indubitavelmente, os maiores artífices dêste equilíbrio e, para conservá-lo, eles imprimiram à Igreja um movimento progressivo que tende a satisfazer parcialmente as exigências da ciência e da filosofia, mas com um ritmo tão lento e metódico que as modoficações não são percebidas pela massa dos simplórios, se bem que elas apareçam como ‘revolucionárias’ e demagógicas aos olhos dos ‘integristas’” (Gramsci, 1991, p. 17). 

        Em Gramsci uma filosofia da práxis tem que residir na crítica do senso comum popular bem como do senso comum dos estratos mais eruditos da sociedade, e em face deles, nutrir uma polêmica que seja capaz de estabelecer as bases de um processo que busque, conscientemente, superar as alienações do pensamento, no que se refere os problemas sociais oriundos das contradições socioeconômicas. 

        Por isso, que o revolucionário comunista italiano, defende que a posição da filosofia da práxis é antitética às posições do pensamento católico. Porque a filosofia da práxis, não visa manter os “simplórios” na sua “filosofia espontânea” do seno comum, mas procura, verdadeiramente, o contrário, ou seja, orientá-los para o despertar e desenvolvimento de uma concepção de vida superior e emancipada das ilusões da sociedade burguesa. 

        Para Gramsci, o homem comum; o homem do povo pode ter uma atuação prática consequente na sua vida cotidiana, contudo, ele precisa ser dotado de uma concepção teórica do mundo que lhe permita engendrar as possibilidades subjetivas e objetivas de transformação da realidade social da qual ele é parte integrante. Uma consciência teórica que lhe possibilite ter uma noção clara das contradições do processo histórico. Assim, toda ação prática precisa de uma clarificação e fundamentação teórica para um agir consciente em virtude de um projeto revolucionário de emancipação humana. 

        A compreensão crítica de si mesmo no interior da totalidade social é haurida, dessa forma, através de uma luta de “hegemonias” políticas, de “direções contrastantes”, inicialmente no plano da ética, depois no da política, chegando enfim, numa formulação superior da própria concepção do real. “A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual e teoria e prática finalmente se unificam” (Gramsci, 1991, p. 21). 

        Mais do que ninguém, Antonio Gramsci sabia que a unidade entre teoria e prática não consiste num fator mecânico, mas do contrário, constitui um autêntico devenir histórico.

 

Antonio Marcondes

GPOSSHE/UECE/GEM/UFC

________________

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA           

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991.

________________

[1] Foto de Cristina Gottardi