segunda-feira, 7 de junho de 2021

Notas sobre a conjuntura política brasileira

 



(I) As lições da M29

 

1. A manifestação do dia 29 de maio (2021) aconteceu em 213 cidades brasileiras e em 14 cidades do exterior. Foi quase meio milhão de pessoas que saíram às ruas, segundo os organizadores do evento, mesmo em período de pandemia. Se levarmos em conta os que ficaram em casa, mas fizeram seu protesto nas redes sociais e nas janelas de suas residências, esse número pode ser multiplicado muitas vezes.

2. A primeira lição a tirar dessa magnífica manifestação se dirige aos pessimistas profissionais e aos impacientes de plantão. O povo brasileiro começou seu movimento público de protesto contra o bolsonarismo. Desmentiu, com essa primeira manifestação, os pessimistas que falaram ou escreveram que o brasileiro é passivo, agüenta tudo e fica calado. Desmentiu também os impacientes que proclamaram que as massas não têm energia suficiente para se levantar contra o arbítrio e a exploração.

A manifestação de 29 de maio foi um movimento marcado pela espontaneidade. Os organizadores do protesto, pequenas entidades da chamada sociedade civil organizada, naturalmente não tinham como alcançar centenas de milhares de pessoas. Foi a ação espontânea das pessoas – o convite pelas redes sociais, a conversa direta entre os indignados com o tragédia de meio milhão de mortes, o desemprego de 14 milhões e a fome intermitente de mais de 100 milhões – que moveu essa enorme massa humana para caminhar pelas ruas em mais de duas centenas de cidades no país e no exterior.

Isso mostra que há sentimento fértil no nosso povo para a luta de massas nas ruas, nas redes sociais e nas janelas do Brasil. Que os pessimistas e impacientes redirecionem, agora, suas energias subjetivas para ajudar a organizar a nova manifestação marcada para o dia 19 de junho.

2. A segunda grande lição a ser tirada da manifestação de 29 de maio (M29) tem um claro sentido político: a RUA tornou-se um divisor de águas da política brasileira. As operações dos dirigentes partidários nos gabinetes parlamentares de Brasília, os jantares de São Paulo e as tratativas das cúpulas políticas visando congregar forças para a eleição presidencial de 2022 passam, agora, ao segundo plano para dar lugar à DISPUTA PÚBLICA PELAS RUAS.

O dilema FRENTE ÚNICA ou FRENTE AMPLA, que envolveu até então as direções partidárias de esquerda, foi resolvido pela RUA: a frente se faz nas lutas de massa pelo espaço público. Quem vier para as ruas, quem convocar para as ruas pelo “fora Bolsonaro”, pelo auxílio emergencial suficiente para combater a fome do povo e pela vacinação imediata para todos cria e faz parte da FRENTE DE MASSAS. E a verdadeira frente de massas é a FRENTE ÚNICA OPERÁRIA ou, como denomina alguns, a Frente de Esquerda. Sua tarefa é impedir a vitória do fascismo no Brasil e lutar por um Governo de Esquerda, isto é,  que vá além do capitalismo.

3. A terceira grande lição a ser tirada da M29 traz à baila um fenômeno político preocupante: os nossos chamados líderes políticos, aquelas personalidades que aparecem nas pesquisas de opinião disputando as preferências do eleitorado para a próxima eleição presidencial, ESTIVERAM AUSENTES da convocação e da participação no protesto de 29 de maio. O povo em marcha caminha numa direção, esses nossos líderes políticos caminham na direção oposta.

Esse conflito tem que resolvido agora. Disso depende o resultado final das lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores. E, em conseqüência, o futuro político do nosso país. Disso depende nossa vitória contra o bolsonarismo e o imperialismo que o sustenta ou nossa derrota para um regime fascista que, implantado com o apoio do grande capital, das forças armadas e das polícias milicianas, destruirá as liberdades civis, econômicas, sociais, políticas e culturais do povo brasileiro. Para as vanguardas da esquerda brasileira o dilema é ainda mais trágico: ou vitória nas ruas ou prisão e fuzilamento.

4. A quarta grande lição da M29 diz respeito à comunicação. O vergonhoso boicote que a grande imprensa burguesa, as redes de rádio de rádio e televisão do país fizeram à manifestação vai aumentar ainda mais à proporção que o movimento de massa cresça e radicalize suas reivindicações: fim das privatizações, fim do teto de gastos, fim das contrarreformas trabalhista,  previdência, administrativa e tributária, fim da tutela militar do Estado, entre outras. Precisamos criar uma alternativa de comunicação que seja capaz de levar a nossa mensagem de luta e esperança para milhões de pessoas, tanto nas cidades como nos campos, tanto nas grandes como nas médias e pequenas cidades.

5. Uma quinta, mas não a última, grande lição da manifestação de M29 aponta para o problema da repressão política e da violência policial aos protestos políticos do nosso povo contra o bolsonarismo. A violência da PM em Recife é um sinal do que está sendo gestado pelo processo de milicianização das polícias militares brasileiras. Aprendamos com o exemplo do golpe de Estado miliciano da Bolívia! Devemos começar, de imediato, uma grande campanha pela desmilitarização das PMs e contra a dominação bolsonarista dessa corporação, denunciando as tentativas legislativas em curso no Congresso Nacional para tirar o controle das PMs dos governadores e passá-lo para o presidente da República. Mas é preciso ir além: devemos pôr um fim à famigerada Lei de Segurança Nacional, feita ainda pela ditadura militar, mas vigente mesmo depois da aprovação da Constituição nacional de 1988. Do mesmo modo é preciso retirar das forças armadas (marinha, exército e aeronáutica) o seu caráter de força pretoriana da burguesia, estatuto que lhe foi concedido pela própria Constituição, e exigindo o afastamento dos mais de 10 mil militares que ocupam cargos civis no aparelho de Estado. Essas exigências visam dificultar o papel político repressivo que o bolsonarismo pretende destinar à corporação militar, transformando-a numa força miliciana a seu serviço.


(II) O passo seguinte

 

É preciso formular uma estratégia de luta que contemple o desdobramento político das lições tiradas da manifestação de 29 de maio.

Alinhei alguns pontos que, embora não esgote o horizonte dos possíveis, pode atender a essa exigência;

1. O movimento sindical precisa se engajar de forma mais decisiva nas manifestações de rua. Ainda há centrais sindicatos e muitos sindicatos profissionais que ficaram de fora da manifestação do dia 29 de maio. Temos que fazer um trabalho permanente de persuasão e até mesmo de disputa política para trazer o conjunto do movimento sindical brasileiro para o campo das lutas de rua. O papel protagonista do sindicalismo será decisivo para a convocação, no devido tempo, de uma GREVE GERAL POLÍTICA contra o bolsonarismo.

2. Os partidos políticos de esquerda têm que “retificar sua linha política”, como gostavam de dizer os velhos militantes comunistas. Ficou evidenciado na manifestação de 29 de maio que psicologia social do povo brasileiro sofreu uma alteração significativa: há energia, há clima para a criação de um grande movimento de massas contra o bolsonarismo. Mas sem a adesão dos partidos políticos, há também o risco dessa energia se dissipar e, então, o bolsonarismo readquirir fôlego. Por isso, a responsabilidade dos partidos políticos de esquerda, neste momento, é um fato decisivo, talvez o mais decisivo para a ampliação e a consolidação da luta de massas.

Para cumprir esse papel, os partidos políticos de esquerda precisam redefinir suas prioridades. O calendário eleitoral deve ceder lugar à LUTA EXTRAPARLAMENTAR. Em vez de pôr na ordem do dia a discussão de candidaturas presidenciais, o PT, o PSOL, o PCdoB e os demais partidos deveriam concentrar seus esforços nas mobilizações de rua. A própria luta eleitoral, a ser feita no próximo ano, ganharia mais força e consistência se resultasse das vitórias obtidas na luta extraparlamentar.

2. Nessa perspectiva, as principais lideranças desses partidos, aquelas personalidades que têm grande audiência pública, deveriam se engajar PESSOALMENTE na convocação da próxima manifestação, marcada para 19 de junho. Nesse sentido, não tem justificativa o SILÊNCIO DE LULA. Já não teve na manifestação anterior.  Outras personalidades, como Haddad, Manuela, Dino, Freixo e outras precisam romper o silêncio, pois a continuar, será um SILÊNCIO CÚMPLICE!

3. Na mesma linha, os governadores de oposição ao bolsonarismo terão que deixar a “CONFORTÁVEL” situação de eqüidistância para se envolver mais com as manifestações de rua. Já ajudaria muito se controlassem as forças policiais para não praticarem violência contra os manifestantes!

4. Ciro Gomes terá seu “teste de fogo” agora. Se realmente é contra Bolsonaro e quer vê-lo fora do governo, não pode se limitar àquele tipo de declaração paternalista que fez antes da mobilização de 29 de maio. Ciro e seu partido têm força política para organizar a maior manifestação pública da história do Ceará. Tem inclusive estrutura partidária para organizar manifestações em praticamente todas as cidades do Ceará. Também tem que talvez não tenham participado da manifestação de 29 de maio. Nossa esperança é que ele assuma alguma forma concreta e não só retórica de protagonismo, ajudando a organizar a manifestação de 19 de junho.

5. Para criar uma potente força política no país, o movimento de massas não pode ficar limitado às Capitais e algumas grandes cidades das Regiões Metropolitanas. É preciso interiorizar o movimento num duplo sentido: levá-lo às pequenas cidades e levá-lo dos trabalhadores urbanos para os trabalhadores rurais. O MST e os sindicatos de trabalhadores rurais, bem como os diretórios municipais dos partidos de esquerda devem dar prioridade a esta ação nas convocações para a manifestação de 19 de junho.

6. Outro elemento que surgiu espontaneamente na manifestação de 29 de maio foi a participação ativa das pessoas que ficaram em casa. Além do uso das redes sociais na transmissão das imagens e nas falas de apoio aos manifestantes, muitas delas fizeram faixas e cartazes para exposição nas janelas dos apartamentos e casas. Os organizadores da manifestação de 19 de junho devem promover um incentivo especial para que esse tipo de iniciativa seja ampliado.

7. De igual modo deve ser repetida, nas redes sociais, a pressão feita sobre o boicote da imprensa burguesa à cobertura das manifestações. Graças a isso, o sistema Globo foi obrigado a falar do evento, 24 horas depois, é verdade, mas falou. Se fizermos essa cobrança antecipada, talvez os jornais e emissoras de rádio e televisão da burguesia se vejam constrangidos a fazer uma cobertura em tempo real.

8. É preciso continuar enfatizando com toda força o crime praticado pelo governo Bolsonaro contra o povo brasileiro. 500 mil mortos é um CRIME CONTRA A HUMANIDADE. Nossa solidariedade às famílias dos mortos deve ser destacada. A melhor faixa – uma grande faixa – que deveria ser levantada na próxima manifestação de 19 de junho me foi enviada pelo professor e camarada João Emiliano Fortaleza: PELOS NOSSOS MORTOS, LUTAREMOS!

9. Temos que começar a mirar no Congresso Nacional. Lá se realiza permanentemente CRIMES contra os interesses, as aspirações e os direitos do povo brasileiro. Privatizações vergonhosas, contrarreformas perversas das políticas públicas e recusa de abertura do processo de cassação de Bolsonaro são as principais ações criminosas, mas não as únicas. No decorrer do processo de crescimento das mobilizações vai chegar o momento em que deveremos marchar sobre Brasília para “cobrar com juros” todo esse sofrimento causado ao nosso povo.

10. Na linha lógica da criação da FRENTE ÚNICA deveremos também, no decorrer do processo de crescimento das mobilizações, introduzir REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS, tais como a do programa de um GOVERNO DE ESQUERDA e não de coalizão com a burguesia.

DIAS MELHORES VIRÃO, A SOLUÇÃO ESTÁ NAS RUAS!


Auto Filho

Professor aposentado de filosofia e economia política da Universidade Estadual do Ceará e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores

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Este texto foi lido e discutido no blog Emancipação do Trabalho, programa Conjuntura da luta de classe, do blog Emancipação do Trabalho, em 04/06/2021, disponível no YouTube.