A acumulação do capital, como afirma Marx no capítulo 24 de sua obra maior, pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, esta por sua vez, pressupõe a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho controladas pelos produtores de mercadoria. No plano da história real essa acumulação tem como base um processo cuja principal característica repousa na conquista, na subjugação, no assassínio para roubar, espoliar, explorar, de modo geral, para perpetrar a violência. A assim chamada acumulação primitiva não é mais do que a separação entre os produtores e os meios de produção. Essa é a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.
A expropriação da terra que antes estava nas mãos dos produtores rurais, constitui o fundamento de todo esse processo. As grandes massas humanas são despojadas de seus meios de subsistência e lançadas de forma abrupta e violenta no mercado de trabalho enquanto “proletários absolutamente livres”. A partir desse momento só restaria ao trabalhador moderno sua própria força de trabalho para sobreviver num mundo cada vez mais marcado pela discrepância entre a concentração de riqueza e o excesso de pobreza e miséria social.
No Brasil, a acumulação primitiva do capital ocorreu no contexto do escravismo colonial. “Com a independência”, no dizer de Mário Maestri (numa importante apresentação do livro de Jacob Gorender), “o escravismo colonial dominante expandiu-se, ensejando acumulação originária que apoiou, mais tarde, a expansão capitalista” no país.
Do ponto de vista histórico, a economia brasileira modernizou-se tardiamente. Seus “ciclos”, “crises”, “fluxos “e “refluxos” concorreram para impulsionar só a partir da segunda metade do século XX sua efetiva entrada no mundo industrializado. Somente depois de séculos de “economia primária de exportadora, de exportação de produtos tropicais, o Brasil ingressa na industrialização substitutiva de importações” (Ianni, 2004).
Com as crises da economia primária de exportação ocorreram alguns surtos de “industrialização reflexa”, o que demandou um conjunto de políticas deliberadas, combinando investimentos públicos e privados, nacionais e estrangeiros. Com isso, o campo e a cidade, as regiões e nação foram industrializados, porém de forma desigual e contraditória. Nesse sentido, todas as atividades produtivas passaram a se submeter aos imperativos dos movimentos do capital nacional e internacional.
É nessa esteira que se desenvolveram a produção de bens de consumo correntes e duráveis e se desenvolveram largamente a de bens de produção. Com efeito, o poder público e o planejamento governamental nas atividades produtivas possibilitaram a dinamização da reprodução ampliada do capital. Paulatinamente ai se formando uma poderosa aliança entre capital nacional e capital estrangeiro com o poder do Estado nacional. Mas o pleno êxito da modernização da economia brasileira não se refletiu na sociedade. Esta contraditoriamente se modernizou pouco. “As relações sociais e políticas desenvolvem-se com dificuldade, deparando-se com obstáculos diversos. Além das heranças oligárquicas e patrimoniais, emergem os interesses dominantes aglutinados em diretrizes governamentais. Os movimentos sociais, as organizações sindicais, os partidos políticos e outros espaços de atividades sociais, políticas culturais sofrem contínuas injunções de interesses identificados com a moderna sociedade industrial” (Ianni, 2004, p. 120, itálico nosso).
Não houve (e não há) redução das desigualdades sociais, do contrário elas acumularam-se e agravaram-se. A modernização tardia, combinada, desigual e contraditória do Brasil produziu uma sociedade profundamente injusta, violenta, preconceituosa, individualista, patrimonialista, autoritária e mandonista. A modernização pelo alto com rearranjo de poder entre as classes dominantes conservou o atraso, o privilégio de castas, a mentalidade escravocrata, o ódio aos pobres, a subserviência ao imperialismo, o antinacionalismo, a abdicação da soberania em favor de interesses corporativistas.
Esse processo histórico é uma expressão da nossa peculiaridade enquanto nação que mistura o atraso com o avanço, o novo com o velho, o cordial com o insulto de classe, o autoritarismo com uma democracia de fachada. “Uma história que revela a escassa ‘modernização’ alcançada em determinadas esferas da sociedade, enquanto nas principais esferas da economia tudo parece muito próspero, diversificado e moderno. A mesma fábrica do progresso fabrica a questão social” (Ianni, 2004, p. 120).
A princípio, o proletariado e o camponês no Brasil padecem de uma dupla exploração. São expropriados de maneira a garantir os interesses dos segmentos dominantes da sociedade nacional. E expropriados também de modo a legitimar os interesses dos setores estrangeiros, com os quais a classe dominante do país está articulada de formar subserviente. Todo esse processo é garantido, no dizer de Octavio Ianni (2004), por um aparato bastante sofisticado e altamente repressivo, “no qual as forças policiais e militares são essenciais para garantir” a estabilidade da lei e da ordem.
O aparelho estatal e a economia modernizam-se, ao mesmo tempo que os problemas sociais e as conquistas democráticas mostram-se defasadas. A nação industrializada, moderna, é atravessada por situações de miséria social, atraso tecnológico, precarização das relações de trabalho e desmonte da educação. Em outro sentido, a mesma sociedade que produz a prosperidade econômica engendra as desigualdades que configuram a problemática social brasileira.
Na história da formação social do Brasil, o problema do racismo sempre foi uma questão sumamente importante para compreendermos a nossa formação enquanto povo. Não dá para entender profundamente as nossas particularidades sem levar em conta essa problemática. A presença do negro na história da sociedade brasileira tem um peso enorme, tanto do ponto de vista do trabalho como da herança cultural; da religiosidade e dos movimentos sociais. Em cada momento da história do Brasil, desde a Independência em 1822, a Abolição da Escravatura em 1888, a Proclamação da República em 1889 e a Revolução de 30 se colocou problemas como raça, mestiçagem, população, povo, nacionalidade, cidadania, racismo, discriminação de classe, pobreza, riqueza, corrupção, autoritarismo, mandonismo, oligarquias, poder e desigualdade social.
Com o fim do regime de trabalho escravo e a Proclamação da República, o poder do estado passou para as mãos da oligarquia cafeeira, que já se encontrava apoiada no “colonato” de imigrantes vindos da Europa. Para essa oligarquia, os negros eram relegados a segundo plano, ou no plano do opróbrio social. A valorização do imigrante europeu se constituiu numa política de branqueamento da sociedade brasileira, com vistas a apagar o estigma da escravidão. Isso redefiniu amplamente a organização do trabalho, as relações sociais e culturais. O negro passou a ser uma categoria de cidadão absolutamente destituída de direitos, dignidade e bem-estar social.
O negro foi integrado à sociedade brasileira enquanto uma força escrava de trabalho. Mais de quatro séculos de regime escravocrata concorreram também para “uma vasta diáspora”, seguida de holocausto, barbárie e humilhação social. Essa estrutura de poder escravista produziu traumas, rupturas, segregações e vilipêndios. “Desenvolveram-se os traumas da condição escrava, propriedade alheia, subordinação física e social, objeto de transações entre mercadores, senhores e seus funcionários” (Ianni, 2004, p. 144).
Com a escravidão do povo negro no Brasil, organiza-se no país estruturas, relações e processos baseados em divisões e exclusões; hierarquias são “acentuadas”, “reiteradas”, “administradas”, “preservadas” e “aperfeiçoadas”, tanto do ponto de vista “jurídico-político” como pelas chamadas “teorias científicas” fundamentadas em conceitos como “evolucionismo”, “darwinismo social”, “arianismo” etc. Essa formação social escravocrata resultará num gigantesca máquina de preconceitos, discriminações e opressões.
Nesse sentido, a realidade mais evidente é o racismo, que tem origem nos séculos de escravidão, recriando-se e desenvolvendo-se no decurso de nossa história e atravessando as instituições republicanas, perpassando o “agrarismo”, o “industrialismo”, a “ruralidade”, a “urbanidade”, os “espaços públicos e privados”, as instituições religiosas, as estruturas governamentais e empresariais, em suma, a sociedade de modo geral.
Mesmo no regime de trabalho livre produzem-se desigualdades, hierarquias, antagonismos, tensões e lutas, bem como intolerâncias, preconceitos e discriminações em virtude da cor da pele. Dessa forma, o preconceito racial constitui uma poderosa técnica de dominação, “por meio da qual se subordinam amplos setores da sociedade, enquanto homens e mulheres, crianças, adultos e velhos, trabalhadores assalariados da cidade e do campo, na agricultura, indústria e serviços” (Ianni, 2004, p. 147). O preconceito racial e o preconceito de classe fundem-se em intolerâncias de vários matizes, manifestam-se em várias linguagens. Raça e classe são determinadas reciprocamente na contradição das relações sociais, nas disputas de poder e nas manifestações culturais e ideológicas.
A democracia racial é uma falácia produzida pela classe dominante e seus representantes acadêmicos para justificar opressões camufladas de sufrágio universal, direitos humanos, igualdade de oportunidade e o engodo do Brasil enquanto um país de todos. No capitalismo brasileiro capenga e esdrúxulo, cimentado pela democracia neoliberal dos ricos, com sua herança escravista arraigada nas instituições sociais como um todo, prevalece portanto o autoritarismo, a intolerância, exclusão e a barbárie contra a população negra. Isso define a constituição das subjetividades, o modo de sentir e pensar, falar e agir das pessoas na vida cotidiana. Nossas relações sociais estão amplamente impregnadas de valores, ideias e visões de mundo que ainda legitimam os interesses de uma classe dominante que existe tão somente para reproduzir o lucro em detrimento da vida das pessoas, sobretudo das pessoas negras. O Brasil é um país que ainda não deu certo.
Antonio Marcondes
GPOSSHE/UECE/GEM/UFC
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Referências bibliográficas
IANNI, Octavio. O pensamento social no Brasil. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
Foto de William Santos