segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Dialética e ciência: questões de método em Lukács


O método constitui um elemento central na produção do conhecimento científico. Ele é a base para a fundamentação dos pressupostos e procedimentos que garantem legitimidade epistemológica para a inteligibilidade dos fenômenos que ocorrem no mundo natural e social. Nesse sentido, a dialética enquanto método científico tem como premissa básica, desvelar as contradições da coisa em si, isto é, evidenciar a essência que há por trás da aparência.

Em Lukács (referência maior do chamado marxismo ocidental), a dialética adquire um estatuto ontológico, ou seja, ela é uma expressão das contradições reais, dos processos, relações, movimentos e conexões intrínsecas da objetividade do mundo social enquanto uma totalidade histórico-concreta.

Como podemos depreender da Ontologia de Lukács, a divisão social do trabalho incumbe o indivíduo de múltiplas tarefas, ricamente heterogêneas entre si, cuja realização correta desperta nele uma síntese das suas habilidades e capacidades diversas. Assim, o desenvolvimento das capacidades humanas possibilitadas pela complexificação da divisão social do trabalho constitui um processo decisivo na reprodução social como fator preponderante da história.

Quando Lukács pensa as questões do método, ele compreende que a realidade social é um produto das ações concretas dos indivíduos em seus diferentes âmbitos de relações. Mas é sobretudo no que diz respeito aos fundamentos do trabalho, que podemos entender, de forma ontológica, a gênese e desenvolvimento do mundo dos homens. Dessa maneira, afirma Lukács: “[…] todo ato prático de trabalho deve ser precedido de um espelhamento ideal – que corresponda o mais precisamente possível à verdade – do processo teleológico e do seu mundo objetal” (2013, p. 614).

A compreensão ontológica da realidade material do mundo tem no processo de trabalho seu ponto de partida. A “reprodução verídica da realidade” constitui um fato que está diretamente ligado, fundamentalmente, à certeza indubitável de que a realidade existe concretamente em si; independentemente das vontades, desejos e valores do sujeito cognoscente. Este postulado ontológico está relacionado a afirmação de Marx de que não é a consciência que determina o ser social, mas o ser social que determina a consciência. Ou seja, a materialidade objetiva do mundo real é uma dimensão ontológica primária determinante.

Com efeito, aqui podemos assinalar um momento importante da constituição do método dialético: o pôr teleológico conscientemente realizado engendra um distanciamento no espelhamento da realidade. Assim, a partir desse distanciamento surge a relação sujeito-objeto na acepção plena do termo. Esses dois momentos implicam concomitantemente o surgimento da apreensão conceitual dos fenômenos da realidade e sua apreensão correta por meio do pensamento e da linguagem. Nesse sentido, o método dialético repousa no fato de que “as categorias são modos de ser da realidade; são determinações da existência”.

A ciência enquanto um espelhamento desantropomorfizador da realidade põe no seu centro a generalização das conexões constitutivas da realidade concreta do mundo material e social. Por isso,  ela tem como objetivo principal apreender a verdade em si dos fenômenos e processos e, por conseguinte, postular a verdade das coisas. Sendo assim, como diz Hegel, o verdadeiro aparece como sujeito e como devir, isto é, como movimento e contraditoriedade reais.

Para Lukács, com o ato de pôr a consciência dá início a um processo real de transformação da materialidade existente em si. Nesse aspecto, o pensamento cientificamente orientado se originou a partir da preparação e execução do processo de trabalho. Na busca pela realização do pôr do fim, o homem desenvolve suas capacidades cognitivas, tais como, o ato de pensar, escolher, observar, generalizar. O trabalho realiza, materializa e objetiva os fins estabelecidos na consciência do indivíduo.

Entendemos aqui que a realidade objetiva (socialmente produzida) apreendida pelo método, é resultado da práxis humana, que tem no trabalho seu modelo originário. Lukács desenvolve plenamente, em sua obra de maturidade, o método dialético de Marx a partir dos pressupostos de uma ontologia materialista. De acordo com o filósofo húngaro, o método de Marx consiste em desenvolver uma análise histórico-sistemática e abstrativo-teórico da realidade objetiva. Essa perspectiva metodológica coloca o pesquisador diante da tarefa científica de reconstituir no plano do pensamento o movimento histórico-concreto e imanente dos fenômenos da realidade material em suas determinações essenciais.

Exemplificando o estudo da realidade social, “Marx, após ter analisado sistematicamente  o mundo do capitalismo em sua necessidade e compacticidade econômica rigidamente determinada por leis, expõe num capítulo particular a sua gênese histórica (ontológica), a chamada acumulação originária, uma cadeia secular de atos de violência extraeconômicos mediante os quais foi possível a criação das condições históricas que fizeram da força de trabalho a mercadoria específica que constitui a base das leis teóricas da economia do capitalismo” (Lukács, 2012, p. 311).

Com base nessa reflexão de Lukács, entende-se, que a gênese histórica da “renda da terra”, do “capital comercial” e do “capital monetário”, constituem o pressuposto para a se compreender teoricamente os fundamentos que articulam o funcionamento do modo de produção capitalista atualmente.

Quando se afirma que é a partir do objeto que começa o processo de pesquisa da realidade, isso significa dizer que o mundo exterior, no qual o pesquisador também está inserido, é a referência principal para a produção do conhecimento. A consciência nesse caso tem um papel de elaborar, de forma categorial/conceitual, as características constitutivas do movimento inerente da realidade. Metodologicamente falando, a consciência que espelha a realidade assume um caráter de possibilidade. O espelhamento é o oposto do ser, mas ao mesmo tempo ele constitui o veículo através do qual surgem novas objetividades no ser social.

Por isso, diferentemente do positivismo que procura conhecer os fatos sociais apenas em suas manifestações empiricamente observáveis, a dialética marxista busca apreender o movimento, as contradições e as legalidades internas próprias da essência em si da realidade.

A historicidade dos processos sociais é uma determinação ontológica do real. Gênese, desenvolvimento, movimento e finitude, compõem as dimensões específicas da forma de ser dos fenômenos da existência humana. Tudo que existe no mundo social é uma determinação do processo de autocriação dos homens em suas atividades econômicas, elaboração da cultura e instituição da sociedade política.

Portanto, o objetivo do método dialético-materialista é chegar a verdade dos fatos. A dialética não é apenas um “princípio cognitivo”, mas sobretudo “constitui a legalidade de toda realidade” materialmente existente em suas formas concretas e simbólicas. A dialética concebida em termos ontológicos só tem sentido se for universal, ou seja, um processo dinâmico e contraditório do movimento da história da humanidade.

Como destaca Lukács, não basta se orientar para o real, mas para a sua totalidade. Totalidade que consiste na própria objetividade do mundo real em suas conexões e processos de interação mutuamente determinados. Contudo, um outro elemento fundamental do método dialético em Lukács é a questão da abstração. Esta que é uma forma de espelhamento da realidade, mediante a qual podem ser apreendidos e compreendidos os processos globais, que obrigatoriamente permanecem ininteligíveis em sua complexidade imediata.

 O método dialético na concepção de Lukács, seguindo os ensinamentos de Marx, visa se apropriar das determinações imanentes da cosia em si; das conexões internas dos fenômenos, suas relações e formas de desenvolvimento. O objetivo da dialética marxista é apreender idealmente o movimento efetivo da realidade; a apropriação mental do conteúdo concreto do real e de sua transformação.

Assim, por meio de sucessivas aproximações ao objeto (concreção real), o método dialético vai compondo um todo articulado; do dado caótico imediato de um todo ao “concreto pensado” rico de determinações e relações diversas. “O concreto é concreto porque é uma síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008, p.258-259).


Antonio Marcondes

GPOSSHE/UECE/GEM/UFC


Referências

 

LUKÁCS, GPara uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

 

__________. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

 

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.


Foto de Alex Block