Durante e após a Revolução Francesa, a filosofia romântica que combateu o Iluminismo idealizava uma suposta era dourada da sociedade feudal a que a humanidade deveria retornar, como forma de eliminar as mazelas provocadas pelo capitalismo em ascensão (desagregação da família, expulsão do homem do campo, superexploração do trabalho fabril, inclusive de mulheres e crianças, miséria crescente nas cidades, etc.) Era, assim, uma filosofia reacionária que em vão desejava que a história andasse para trás. De sua negação do irreversível progresso histórico das sociedades humanas resultava o seu caráter irracional que, por seu turno, condicionava a crença na impossibilidade de cognição da realidade objetiva, de apreensão da essência das coisas que existem independentemente da consciência humana. O romantismo, portanto, foi uma arma ideológica da nobreza contra a burguesia que buscava a conquista do poder político para pôr fim aos privilégios dos nobres e assim se emancipar socialmente.
A burguesia, no entanto, cuja ascensão social e econômica foi o principal motor do surgimento do pensamento iluminista dos grandes filósofos dos séculos XVII e XVIII, daqueles que utilizaram a razão para conformar uma visão de mundo progressista e dialética, também produziria ela própria uma filosofia irracionalista. Vejamos como isso se deu.
Em 1848 estouraram revoluções democráticas em vários países europeus que almejavam acabar com as monarquias que se fortaleceram após a derrota de Napoleão no começo do século XIX. A luta revolucionária, porém, não se verificou apenas entre a burguesia e a nobreza, pois surgiram tendências socialistas no seio das massas proletárias que assim se colocaram pela primeira vez na história moderna com demandas próprias independentes e, portanto, antagônicas às da burguesia.
Por temor às aspirações populares por melhores condições de vida, a burguesia resolveu conciliar com as monarquias européias, selando assim a derrota dessa onda revolucionária democrática que ficou conhecida como a Primavera dos Povos. As monarquias mantiveram assim o poder político em troca de lentas e mesquinhas reformas na legislação que garantiriam a emancipação social da burguesia, que deste modo renunciou a um poder político próprio. Assim, anota Lukács que na Prússia - por essa época o estado alemão mais industrializado - a produção era capitalista, a forma de vida era burguesa, mas o poder político continuou nas mãos da dinastia dos Hohenzollern e dos nobres proprietários de terra (junkers). Na França, a burguesia capitulou diante do imperador Napoleão III, na Áustria-Hungria houve um processo de aburguesamento da monarquia, na Itália a unificação do país foi feita “por cima”, sendo coroado rei Vitor Emanuel II, soberano da região da Sardenha, e na Inglaterra também houve uma onda conservadora (Era Vitoriana) com a derrota do movimento dos trabalhadores conhecido como “cartismo”[1].
Este acontecimento histórico não podia deixar de ter consequências na ideologia alemã da segunda metade do século XIX: de fato, os filósofos que haviam representado no plano das idéias a luta da burguesia pela vitória da revolução democrática e, por conseguinte, pelo fim dos privilégios da nobreza, a saber, Hegel e Feuerbach, vão perder espaço para aquele que vai se firmar como o novo ideólogo da burguesia não só alemã, mas de toda a Europa: o filósofo alemão Schopenhauer.
Assim, enquanto a liderança da filosofia alemã durante e logo após a Revolução Francesa representou uma onda de pensamento progressista que influenciou toda a Europa continental (notadamente através de Hegel), depois da Primavera dos Povos de 1848 a filosofia alemã irá novamente exercer a liderança ideológica na Europa, desta feita para garantir o pensamento reacionário necessário ao combate a este novo fato político europeu consistente na luta independente do proletariado e das massas miseráveis que o capitalismo havia produzido. Lukács conclui que a influência internacional da filosofia de Schopenhauer tem assim uma base social determinada: o ser social da burguesia[2]. E tal pensamento reacionário, por negar o fato do progresso das sociedades humanas até então ali ocorrente, sempre prenhe de contradições - no capitalismo industrial nascente, por exemplo, o aumento da produção num ritmo antes nunca visto, o intenso e irrefreável desenvolvimento da técnica e da ciência, lado a lado com a extrema miséria do povo trabalhador -, necessariamente descambaria para o irracionalismo resultante do seu inevitável caráter idealista, anti-dialético e a-histórico.
Schopenhauer escreveu a sua obra mais importante, “O Mundo como Vontade e Representação”, no ano de 1819, e praticamente foi um desconhecido na primeira metade do século XIX. Sua obra passará a ter uma influência predominante na intelectualidade burguesa apenas na segunda metade do século XIX porque nela “se manifestam tendências que, em consequência da situação histórico-social que acabamos de esboçar, irão se tornar dominantes após o fracasso da Revolução de 1848. Desse modo, com Schopenhauer, inicia-se o papel funesto da filosofia alemã: o de ser o guia ideológico da reação mais extrema.”[3] Sobre ele Lukács também escreveu o seguinte:
Se definirmos Schopenhauer como o primeiro irracionalista que surge sobre uma base puramente burguesa, então não é tão difícil identificar os traços pessoais correspondentes em seu ser social. O curso de sua vida distingue-o de modo preciso de todos os seus predecessores e contemporâneos alemães. Ele é um grande burguês, em oposição aos outros, de condição pequeno-burguesa, ou como Fichte, quase proletária. Neste sentido, Schopenhauer não participa da via-crúcis comum da intelectualidade pequeno-burguesa alemã (como preceptor etc.), mas passa boa parte da sua juventude viajando por toda a Europa. Após um curto período como aprendiz de comerciantes, ele leva uma vida tranquila de quem vive de rendas, na qual também a sua relação com a universidade – a docência em Berlim – desempenha um papel apenas episódico. Schopenhauer é, portanto, na Alemanha, o primeiro grande exemplo de um escritor rentista, um tipo que há muito já havia se tornado importante para a literatura burguesa dos países capitalistas desenvolvidos. (…) Essa falta de qualquer preocupação material na vida constitui a base da independência de Schopenhauer não só em relação às condições semifeudais de vida determinadas pelo Estado (carreira universitária etc.), mas também em relação às correntes espirituais a elas ligadas. Nesse sentido, é-lhe possível, em todas as questões, assumir, sem sacrifício, uma posição pessoal livremente escolhida.[4]
Tentaremos num próximo texto esclarecer algumas dessas tendências irracionalistas de Schopenhauer, sempre com base nos valiosos ensinamentos de Lukács.
Sávio Bastos
[1]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 174/175.
[2]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 175.
[3]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 176/177.
[4]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, 2020, p. 177/178.
Foto: Gabriella Clare Marino