Para Schopenhauer, aquilo que denominamos realidade (o mundo externo a nós percebido por nossos sentidos) é idêntico à representação que temos dessa mesma realidade, à nossa apreensão subjetiva dela; e tal representação é sempre determinada por nossa vontade. Para ele, toda coisa, todo ser externo ao indivíduo, somente existe enquanto ser percebido por cada indivíduo, ou seja, depende da percepção subjetivo-individual para existir. Por isso Lukács conclui que “para Schopenhauer – assim como, depois, para Mach, Avenarius, Poincaré etc. - o mundo externo não é, de modo algum, uma objetividade independente da consciência individual.” [1]
Na verdade, Schopenhauer não nega de modo absoluto a existência da realidade externa a cada indivíduo, mas ele a interpreta como sendo um produto da vontade humana inflada de modo místico-irracional: é a vontade individual que dá origem ao objeto externo ao indivíduo, é ela que gera a objetividade e consequente visibilidade das coisas que compõem o mundo em que vivemos. E esta objetividade, esta visibilidade das coisas, Schopenhauer chama de “Representação”, que compreende portanto o mundo dos fenômenos que nós percebemos e tentamos explicar a partir das formas racionais do conhecimento, a saber, as ciências particulares e a filosofia baseada na razão. Mas, para Schopenhauer, as formas racionais do conhecimento, que só conseguem explicar esse mundo da Representação, não são capazes de explicar a essência das coisas justamente pelo fato de que tal essência é interna ao homem, tem caráter subjetivo, pertence e se identifica com o reino da Vontade humana. Tal essência interna ao homem (subjetiva) não possui espacialidade e temporalidade, sendo, portanto, a-histórica. E é justamente essa essência a-histórica que dá origem e que fundamenta todo o mundo exterior ao homem: Schopenhauer defende que, para explicar tal essência que, repita-se, não existe no espaço e no tempo, seria absurdo e contraproducente valer-se da razão que, segundo ele, só serve como instrumento de descoberta e elucidação dos fenômenos superficiais e inessenciais do mundo objetivo da Representação. Para ele, a razão somente serve como instrumento a serviço das ciências particulares para fins de investigação e descoberta de leis que, a rigor, nada explicam acerca da verdadeira essência do mundo, já que esta, por ser interna ao homem (subjetiva), somente pode ser elucidada através de um instrumento subjetivo: a intuição pura e simples (veja-se aqui que fica desde já excluída a possibilidade, no sistema de Schopenhauer, de verificação da validade de suas descobertas no mundo real das coisas realmente existentes, verificação esta que não pode prescindir da natureza espaço-temporal das coisas, ou seja, de sua historicidade).
De fato, para Schopenhauer, o conhecimento racional serve apenas como um instrumento, um meio para se atingir o conhecimento de fenômenos superficiais e inessenciais cuja elucidação, no entanto, ele entende indispensável para a conservação do indivíduo e da espécie humana. Exemplificando: a descoberta pelo homem da lei da natureza que explique como o guano atua na fertilização do solo serve apenas para incrementar a produção agrícola e de nenhuma forma contribui para o esclarecimento da essência deste fenômeno natural, pois tal fato da natureza tem como fundamento último, como tudo no mundo, a Vontade humana que, como vimos acima, só pode ser explicitada mediante o uso da intuição (e não pela razão). Aqui se revela de forma nítida o caráter irracional do pensamento de Schopenhauer.
Assim, para este filósofo, a essência das coisas é sempre interna a cada indivíduo, tem uma natureza subjetiva. O mundo exterior aos indivíduos tem a característica da superficialidade, da inessencialidade; o mundo exterior é o mundo da forma, não do conteúdo. Isto fica bem claro quando Schopenhauer afirma que “só os processos internos, enquanto concernem à vontade, possuem verdadeira realidade e são eventos reais, pois a vontade é a única coisa-em-si. Em todo microcosmo se encontra o macrocosmo inteiro, e este não contém nada mais que aquele. A multiplicidade é fenômeno, e os processos externos são meras configurações do mundo fenomênico, e por isso não têm, imediatamente, nem realidade nem significado, mas só os possuem de modo mediado, em sua relação com a vontade dos indivíduos”[2]
Ora, se para Schopenhauer, como vimos na transcrição acima, os nexos e as leis do mundo exterior a cada indivíduo só têm existência real em sua relação com a vontade e, portanto, com a subjetividade de cada indivíduo, é certo que Schopenhauer destrói, assim, a objetividade das coisas que existem independentemente da consciência humana, assim como nega que as leis que regem tais coisas sejam igualmente objetivas, já que ele torna a existência do mundo externo das coisas reais totalmente dependente da pura vontade humana. Aqui se pode verificar a natureza retrógrada e reacionária da filosofia schopenhaueriana, pois ela vai no sentido contrário ao longo caminho percorrido pelo homem em sua busca pelo conhecimento real do mundo: em sua investigação, o cientista não pode ser guiado por seus preconceitos ou anseios, por exemplo, pela vontade de que suas descobertas científicas confirmem a sua crença religiosa. Para Schopenhauer, o conhecimento real do mundo depende essencialmente da vontade humana, ou, antes, essa vontade é a própria essência do mundo.
E é por isso que Schopenhauer nega que o conhecimento científico tenha qualquer repercussão ou influência na filosofia. E é, também, por isso que as dimensões da realidade objetiva, tais como espaço, tempo e causalidade (trabalhadas e utilizadas na ciência), tampouco tenham uma influência real em sua filosofia. Dessa forma a filosofia de Schopenhauer constitui um fundamento de toda espécie de superstição: anota Lukács que Schopenhauer afirma que a premonição perde “ao menos o seu caráter de absoluta incompreensibilidade, se considerarmos que, o que eu já disse tantas vezes, o mundo objetivo é um simples fenômeno cerebral: porque a ordem e a legalidade fundada sobre espaço, tempo e causalidade (enquanto função cerebral) é, em certo sentido, colocada de lado na premonição sonâmbula”[3] e que “como o tempo não é uma determinação da verdadeira essência das coisas, então, em relação a estas, o antes e o depois não têm qualquer importância, sendo que um evento deve ser conhecido mesmo antes de acontecer, não só depois”[4], de forma que ele justifica, por exemplo, a possibilidade de se exercer a arte da adivinhação e de se fazer profecias através do sonho, da premonição sonâmbula ou de outro modo qualquer, como forma ou caminho “para liberar o conhecimento da condição do tempo”, sendo que “se deve necessariamente admitir como possível também uma ação real dos mortos sobre o mundo dos viventes”. Schopenhauer, assim, antecipa uma tendência que só seria amplamente difundida na segunda metade do século XIX, qual seja, a de se desprezar o conhecimento científico dos fenômenos reais da natureza em benefício da credulidade nos juízos feitos através de meios místicos e dos “fenômenos ocultos”.
Deve ser também salientado que a subjetivação do tempo, do espaço e da causalidade operada por Schopenhauer, que os considera existentes apenas “enquanto função cerebral”, conforme visto no parágrafo anterior, serve-lhe para negar a historicidade da natureza e do mundo dos homens. Salienta Lukács que “Schopenhauer esboça uma imagem do mundo na qual nem o cosmos dos fenômenos nem o cosmos das coisas-em-si conhece um transformar-se, um desenvolvimento, uma história. É verdade que o primeiro consiste em uma mudança ininterrupta, em um aparente devir e perecer… Mas esse devir e perecer é, pela sua essência, algo estático: um caleidoscópio no qual as combinações sempre cambiantes dos mesmos componentes produzem, para o observador imediato, desavisado, a ilusão de uma mudança permanente. E aquele que possui uma verdadeira consciência filosófica deve necessariamente perceber que, atrás desse véu colorido de fenômenos superficiais em permanente alternância, está oculto um mundo sem espaço, tempo e causalidade, em relação ao qual seria sem sentido falar de história, desenvolvimento ou até de progresso. Esse iniciado, diz Schopenhauer, ‘não mais acreditará, como a maioria das pessoas, que o tempo cria algo efetivamente novo e significativo; que, através do tempo, ou nele, algo absolutamente real alcança a existência[...]”.[5]
Lukács mostra, assim, que Schopenhauer nega a existência da história tanto da natureza quanto do homem. Negando o desenvolvimento histórico do mundo dos homens ele nega igualmente a possibilidade e a utilidade de se investigar as direções possíveis desse desenvolvimento no futuro com vistas a uma atuação humana consciente que melhore as condições de existência da humanidade. Por isso, para Schopenhauer, não há diferença entre o pequeno (o indivíduo) e o grande (o gênero humano, a humanidade), entre fatos sem maior relevância histórica e aqueles decisivos para o destino da humanidade. Para ele, conforme salienta Lukács, “real é apenas o indivíduo, o gênero humano é apenas uma abstração vazia”[6]. Na falta de um desenvolvimento do mundo dos homens, de uma história da humanidade, resta apenas o indivíduo isolado num mundo sem sentido. Para Schopenhauer, portanto, esse indivíduo que resta é a única essência realmente existente no mundo e é, por conseguinte, a essência do próprio mundo. Para ele, nada existe para além do indivíduo ou, para ser mais específico, nada existe além da vontade individual. Como essa Vontade inflada de forma mística tem uma natureza subjetiva e existe independentemente dos condicionamentos de tempo, espaço e causalidade, tal essência é, na verdade, o nada, já que, no mundo real, nada existe fora do tempo e do espaço. Lukács anota que esta é a razão pela qual a obra fundamental de Schopenhauer termina com as seguintes palavras: “Antes, reconhecemos: para todos aqueles que ainda estão cheios de vontade, o que resta após a completa supressão da vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real como todos os seus sóis e vias lácteas é – nada.”[7]
Assim, Lukács observa, corretamente, que a filosofia de Schopenhauer recusa a vida e lhe contrapõe, como perspectiva filosófica, o nada. Mas teria algum sentido viver a vida humana dessa forma, é possível ao indivíduo viver a sua vida confrontando-se dia após dia com o nada? (Lukács anota que o próprio Shopenhauer rejeita o suicídio como solução para a ausência de sentido da existência). Na verdade, Lukács esclarece que, para Schopenhauer, o nada, a falta de sentido da vida, acaba por fundamentar toda a sua ética, pois é essa ausência de sentido da vida que permite “a libertação do indivíduo de todas as obrigações sociais, principalmente, da responsabilidade diante do desenvolvimento da humanidade que, aos olhos de Schopenhauer, sequer existe. E o nada, como perspectiva do pessimismo, como horizonte de vida, de modo nenhum é capaz, segundo a já referida ética shopenhaueriana, de impedir o indivíduo, ou mesmo de inibi-lo, de conduzir a vida de maneira prazerosa e contemplativa. Pelo contrário. O abismo do nada, o fundo obscuro da ausência de sentido da existência, confere a esse gozo da vida apenas um fascínio picante. Esse fascínio cresce ainda mais na medida em que o aristocratismo fortemente incisivo da filosofia schopenhaueriana eleve os seus sequazes – em seu convencimento – muito acima daquele povo miserável, que se encontra um tanto obtuso par lutar e sofrer por melhores condições sociais. Assim, o sistema de Schopenhauer erige-se como um elegante e moderno hotel, equipado com todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo. E a visão cotidiana do abismo, entre refeições ou criações artísticas confortavelmente saboreadas, só pode aumentar a alegria desse sofisticado conforto. Com isso o irracionalismo schopenhaueriano cumpre a sua tarefa: impedir que certo setor descontente da intelectualidade dirija concretamente o seu descontentamento com o ‘existente’, leia-se, com a ordem social vigente, contra o sistema capitalista dominante. Com isso o irracionalismo cumpre a sua meta central – e não importa até que ponto o próprio Schopenhauer tivesse consciência disso: fornecer uma apologia indireta da ordem social capitalista.”[8]
Sávio Bastos
[1]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 199.
[2]Schopenhauer: O Mundo como Vontade e Representação, t. II, p. 520 (ed. bras: O Mundo como Vontade e Representação. Tradução de Jair Barbosa. São Paulo: Ed. UNESP, 2005, p. modif.)
[3]Schopenhauer: op. cit.,tit. IV, p. 299 s.
[4]Schopenhauer: op. cit.,tit. IV, p. 348.
[5]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 216. a citação de Schopenhauer está em O Mundo como Vontade e Representação, título I, p. 249 (ed. bras.: op. cit., p. 251)
[6]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 217.
[7]Schopenhauer: op. cit.,tit. IV, p. 527 (ed. bras.: op. cit., p. 519, modif.).
[8]Lukács: A destruição da Razão, Editora do Instituto Lukács, 2020, p. 218/219.