Em 2020, a editora Bazar do tempo publicou traduções de Tatiana Nascimento e Valéria Lima para poemas de Audre Lorde, publicados de 1973 a 1982 nos livros De uma terra onde outro povo vive, Entre nós mesmas e Poemas escolhidos – velhos e novos. Quero crer que esse intervalo de praticamente dez anos permita ao leitor ter uma segura impressão da travessia poética da genial autora afro-americana (de ascendência caribenha). O fato de o livro ser bilingue, auxilia na tarefa de mergulhar nas sutilezas do estilo de Audre Lorde, o que, nesse caso, implica um domínio regular da língua inglesa.
De imediato, na esteira de De uma terra onde outro vive, o leitor e a leitora hão de notar o arrebatamento de uma poesia antirracista, apaixonada e eivada de um timbre estético-social, em que o tratamento da linguagem mistura fúria e domínio do ofício. No poema Para cada uma de nós, ela pede: “respeitem qualquer dor que venha/dos seus sonhos/mas não procurem deuses novos/no mar” (p. 15). Nessa passagem, observa-se a prevalência de um tom iconoclasta que, amiúde, há de marcar o caráter de sua poética transgressora.
O realismo “infrator” de Audre Lorde não é interdito a um pacto dela com a sensibilidade mais comezinha, a exemplo de mulheres que “aprendem/ a amar/crianças/construindo castelos de areia/na maré cheia” (O sétimo sentido, p. 43). A sua captura do mundo é realista, mas a sua capacidade de sentir afunda os pés em uma terra em que os sismos brincam de correr com os sentimentos humanos. Decorre dessa contradição geo-humana, provavelmente, a natureza explosiva de seus versos.
Lorde era uma mulher negra comprometida com a luta de afro-americanos(as) em torno às bandeiras dos direitos civis, daí sua reverência à cantora negra gospel Mahalia Jackson, recuperada em um poema em que o sofrimento letal de “seis crianças negras/(..) queimadas numa creche”, com efeito, ganham um relevo trágico: “bombeiros acharam seus corpos/feito pedaços amontoados de carvão/com bocas mudas e olhos bem abertos/Pequenas e sem canção nenhuma/seis crianças negras acharam uma voz nas chamas/no dia em que a cidade fez uma elegia a Mahalia” (O dia em que fizeram uma elegia a Mahalia, p. 19).
Esse compromisso da autora em relação à luta pelos direitos civis nos Estados Unidos não é retórica, conforme é atestado em sua participação na grande marcha sobre Washington, em 1963: “No ano em que minha filha nasceu/DuBois morreu em Acra enquanto eu/caminhava rumo a Washington” (Equinócio, p. 23). A sua solidariedade às pessoas negras que enfrentam o Leviatã americano é suficientemente sensível e enfática: “e que nós temos que ser muito fortes/e amar-vos uns aos outros/para seguir vivendo” (Equinócio, p. 27). Às vezes, Lorde apela para imagens poderosas. Nesses casos, ela parece querer mais do que tão só preservar o moral ato de negros(as): “É uma perda de tempo odiar um espelho/ou seu reflexo/ao invés de parar a mão/que cria vidro com distorções” (Espelhos bons não são baratos, p. 33). Em última análise, o que talvez ela queira é precisamente “parar a mão/ que cria vidro com distorções”. Audre Lorde sabe que se a mão não for parada, ela seguirá distorcendo ... e matando. Portanto, é preciso parar a mão da América branca, anglo-saxônica e protestante (WASP), a mão do grande capital, até porque, para ela, a luta tem classe, raça, sexo e até idade.
É preciso buscar no “amor pesado”, “no centro das fúrias”, no “templo escuro” e no espírito “duro como castanha”, conforme Lorde destaca em Mulher negra mãe (p.37), as formas de reforçar as posições dos que lutam contra opressores que são infatigáveis em sua arte de dominar e explorar. Ela sabe que “as portas (...) não se abrem facilmente” (Enquanto cresço de novo, p. 41).
Mas nas pelejas que precisam ser dadas, há um lugar ao ser e a sua subjetividade, e o eu-lírico é consciente dessa demanda: “ (...) os sinos estão tocando/em cidades que nunca visitei/e meu nome está escrito em soleiras/que nunca vi” (Dia de ano novo, p. 45). Essa lógica segue acompanhando o poema: “eu me esqueci/do toque do sol/devassando manhãs frouxas/a noite é cheia de recados/que não sei ler” (Dia de ano novo, p. 45). Mais adiante, a poeta continua se colocando no seu texto, e declara: “A chuva cai feito breu na minha pele” (Dia de ano novo, p. 45). Tudo isso para, ao fim e ao cabo, afirmar: “Eu estou pronta/e não temo/nada”. Anos depois, Milton Nascimento e outros cantarão: “Nada a temer senão o correr da luta”. É disso que Lorde está falando em sua poesia de paredes sem cal nem tinta.
A situação de mulher negra e trabalhadora precisa ser compartilhada por aqueles(as) que virão depois a enfrentar às tormentas do que Tocqueville nomeou de “democracia americana”. Nesse meio tempo, é necessário contar as histórias que outros(as) contaram e carecem de ser contadas para que se entenda por que é preciso mudar o que vem de longe que nem o vento, que nem as folhas. Então, a poeta desfolha a bandeira: “Faço promessas às minhas crianças em tardes de inverno/como histórias à hora do almoço/quando meus pés doem de tanto falar” (Mestra, p. 49). E segue recitando o rosário, incansavelmente: “estou presa/às intensidades de minha (nossa) própria situação” (Mestra, p. 49). Nota-se aí como a autora conjuga o eu e o outro(a) em uma poética em que o eu-lírico é mais do que isso: é lírico-social. Como não nos lembrarmos de Carlos Drummond de Andrade, quando o vate mineiro dizia estar preso a sua classe. Lorde está também presa a sua classe, mas ela sabe que essa classe tem cor, principalmente quando a autora se situa no emblemático território norte-americano.
Audre Lorde conhece a situação de seus pares: “Quem ouvirá/o sino da liberdade murchar/no retinir dos portões das cadeias/onde homens de neve derretem rumo à escuridão/sem perdão e dessa forma lembrados/enquanto o calor do meio-dia fala com sua voz de fogo?” (Mestra, p. 51). Nesse sentido, sua poesia é plasmada num realismo furioso, mas jamais naturalista. Não acidentalmente, apesar de sentir na pele às inumeráveis asperezas do “outono castanho”, nessa terra onde outro povo vive, ela abre uma pequena janela na qual teimosos ventos amorosos ameaçam quebrar a monotonia de um mundo pejado de insensibilidade. Assim chegam os amores em Lorde, quase uma brisa no outono tórrido. Encontrá-lo-emos em diversos momentos de seu percurso poético: “Sempre/entre as nossas/batalhas mais sangrentas/você deita suas armas/como minas florescendo/pra me cativar” (Amor, talvez, p. 75). Em seu realismo quase incrédulo, o eu-lírico não fala categoricamente de amor, mas de “amor, talvez”. Os tempos são difíceis, as batalhas, sangrentas, e, apesar de tudo isso, o vento entra pela janela.
Não é aleatório ouvir o eu-lírico brandir: “Sempre me esqueço de como o ano começou/quando o verão chega em mim/(...)/devo te chamar amanhã com o nome de hoje/ou esquecer que você existe?” (Canção de nomes e rostos, p. 89). A poeta sabe que nada é definitivo, que tudo é provisório, fluido. Ela aparece despida de toda torpe ilusão. A poeta do Harlem tem ciência do seu lugar (de fala?): “eu nasci Preta e sem ilusões” (Conclusão, p. 83).
Mas ela acredita que “Essa terra não será sempre estrangeira” (Os ventos de Orixá, p. 95). E no dia que ela deixar de ser estrangeira para pobres, mulheres negras e lésbicas, negros e negras (em geral), indígenas, latinos e asiáticos, quem sabe a hipótese de um amor sem talvez possa enfim frutificar - do Alaska à fronteira com o México. Os ventos de Orixá sopram. Pelo menos, Lorde o escuta, e “Quando os ventos de Orixá sopram/até as raízes da grama/se apressam” (Os ventos de Orixá, p. 99).
De acordo com isso, Audre Lorde não deixa por menos: “Vejo causas na cor/assim como vejo no sexo” (Quem disse que seria simples(?), p. 101). Essas indicações deixam nítido ao leitor (e leitora) que ele (ela) não se encontra perante uma poesia anódina, descompromissada, refém de “um lirismo à sombra do poder”, segundo a antológica expressão de Thomas Mann. Trata-se de uma poesia engajada, o que não significa o menosprezo pelo cuidadoso trato da linguagem, algo comum a toda boa literatura. Calçar a linguagem com o sapato da fúria não faz a primeira estancar sua caminhada, mas, inversamente, acelera o seu passo. Audre (com o perdão da intimidade) é pura aceleração, seja para falar de amor e sexo, em sua projeção serenamente lésbica (“atada ao meu espelho/assim como à minha cama”, Quem disse que era simples(?), p. 101), seja para alentar o bom combate ao vil e histórico racismo estadunidense (“e através de meus lábios vêm as vozes/dos fantasmas de nossos ancestrais”, Prólogo, p. 111).
Eis um pouco de Uma terra onde outro povo vive, uma reunião de poemas inquietos, fumegantes e outros adjetivos que tornariam essas notas pesadas, o que não é a pretensão de seu autor. Essas primeiras impressões de leitura ganharam algumas páginas, mas intencionalmente, uma vez que a ideia era passar um pouco mais de Audre Lorde, já de partida, apresentando-a ao leitor (e leitora) que não necessariamente conhece essa poeta de ascendência caribenha. Quero crer que a partir de agora as notas tendem a ser mais sucintas. A ideia é seguir privilegiando, sempre que possível, a própria fala poética de Lorde, trazendo-a ao primeiro plano, sem, no entanto, renunciar ao esforço de tecer alguns comentários, não só num sentido pretensamente explicativo, mas socializando um pouco as peculiaridades de leitura de uma poeta ao mesmo tempo complexa e fecunda, o que sempre dificulta o trabalho de apreciações concisas, quase telegráficas, que, de certa maneira, caracteriza quaisquer notas de leitura dignas desse nome.
O segundo trabalho de Audre Lorde recuperado é razoavelmente conhecido entre os apreciadores da literatura contemporânea: Entre nós mesmas. O número de poemas, comparado com o do primeiro livro recolhido nessa antologia (25) é bastante pequeno: sete. Passaremos, portanto, em revista a esses sete poemas, mas de uma forma bastante sucinta. Evitando, contudo, ser superficial.
Entre nós mesmas é uma obra de 1976, quando Lorde já é uma escritora madura, plasmada nos seus 42 anos. A tessitura de sua linguagem se mostra carregada de uma crueza, que é menos de seu caráter do que da rusticidade de um mundo pretensamente civilizado. Por isso, ela declara: “Estou emboscada num deserto de cruas feridas de metralhadoras/e uma criança morta arrastando sua quebrada negra (en)/cara (a) beira do meu sono afora” (Poder, p. 121). À beira desse mundo que se contorce em horrores, diz a autora: “minha boca se parte em lábios secos” (p, 121). E como não se partir?
A violência policial contra os afro-americanos, incluindo crianças, é tema de sua obra. Em Poder (p.123), ela descreve o caso de “Um policial que executou um menino de dez anos de idade/ no Queens/postou-se sobre o garoto com suas botas de gambé em sangue infantil”. Na sequência, o desenlace previsível: “Hoje esse homem branco de 37 anos/com 13 anos de serviço policial/foi inocentado/por onze homens brancos ...” (p. 123).
A sua sensibilidade vem à flor da pele: “Eu não consegui tocar a destruição/dentro de mim/Mas a não ser que eu aprenda a usar/a diferença entre poesia e retórica/meu poder também vai jorrar corrupto feito mofo envenenado” (Poder, p. 123). Ela tem consciência do que é peculiar na obra de arte. Sabe a diferença entre retórica e poesia. Entende o quanto é imprescindível confrontar o odioso racismo que brinca com a vida negra como o vento forte brinca com a pena. Esse poder carece ser defrontado. Nesse caso, a poesia pode ser uma arma contra esse estado de destruição. O engajamento nasce de uma situação específica que exige mais do que burilar a linguagem; a tarefa é usá-la socialmente e não apenas poeticamente. Mas é necessário não se deixar dominar pelo “mofo envenenado”.
Em Nota escolar, essa acepção singular do métier poético é retomada: “Minhas crias brincam com caveiras/na escola/elas já aprenderam/a sonhar com a morte” (p. 127). Essa passagem aprofunda a primeira e prepara a última, pois estamos frente a frente com um poema curto, porém não menos contundente, até por que “para quem luta/não há lugar/que não possa ser/lar/nem que seja” (Nota escolar, p. 129). A ambiguidade da posição afro-americana na sociedade estadunidense não elide, mas exige a luta. A poeta é também arauta.
Declínio e beleza se mesclam nas descrições lordeanas: “ ... nossa terra é árida”, “Os telhados de nossas casas apodrecem da chuva do inverno passado”, “Nossas peles estão vazias” (Solstício, p. 131). Simultaneamente, ela enfatiza o seu lugar (“que eu nunca me esqueça/os avisos da minha carne de mulher/chorando na lua nova”, Solstício, p. 133) e o lugar da luta e a bruteza que rege o seu necessário encanto: “que eu nunca perca/aquele terror/que me mantém brava/que eu nunca deva/o que eu não possa devolver” (Solstício, p. 133).
O que a anima coletivamente, e incendeia os seus poemas, é ressaltado - doce e fortemente - em Cicatriz: “Esse é um poema simples./Para as mães irmãs filhas/garotas que eu nunca fui/para a mulher que limpa o ferry de Staten Island/para as bruxas lustrosas que me/ardem à meia-noite/em efígie/porque eu como em suas mesas/e durmo com seus fantasmas” (p. 135). Ao mirar profundamente o poema em tela, dir-se-ia que a retórica feminista alcança o seu cume em um poema que não se exime de retratar a história, o legado e o cotidiano de mulheres envoltas em uma atmosfera sórdida. Aí estão coxas “como pilares”, há alguém que “rodopia gargalhante” , mas há a “maciez crespa preta cabeleira” (Cicatriz, p. 147).
Em Audre Lorde, há muitas mulheres, ecos de múltiplos tempos, de incontáveis aflições, mas para além dos fantasmas que “ardem à meia-noite”, está ali o corpo de mulher negra, a sua “crespa negra cabeleira”, a sua localização como inseparável da poética lordeana.
O poema Entre nós mesmas amplia e aprofunda essa lógica que orienta o percurso literário de Lorde. O poema que dá título a essa segunda parte da antologia, remete-nos a “salas cheias de caras pretas” (p. 143), fala de uma figura feminina “armada com cicatrizes/curada (p. 147). Ali está a “filha de Exu”, dolorosamente atenta a “toda essa gente que busca a própria morte/saltando do chão/e pousando sobre suas cabeças” (p. 149).
Mas ali está a “cidade dura e espectral”, de que ela nos fala em “Lá fora”. É o encontro com o racismo (“e ninguém me xingou de preta/até meus treze”, p. 157). Recordei da cena final de Mississipi em Chamas, na qual uma personagem destaca que ninguém nasce racista; torna-se. Vem daí as “fúrias muito íntimas”, realidade que a autora nos faz conhecer, embora ela pareça não perdoar o “amor cego e terrível” de pai e mãe. Eles entregaram a ela um rosto quebrado. O desafio agora é “fazer inteiros/nossos rostos quebrados” (p. 155).
Por fim, no poema Uma mulher/Lamento para crianças perdidas, sobrevêm a “língua faminta”, “o fogo ocre”, a “bendição da fúria”, a “deusa do trovão abrindo as dobras da terra com um dedo minucioso” (p. 157), até alcançar “Séculos de crianças perdidas/guerreadas e prostituidas e massacradas” (p. 157). As vítimas da “mineração cintilante” (p. 159) reclamam uma “guardiã da vida” (p. 157), que agora “curvada para sempre”, limpa “o sangue que devia ser você” (p. 159).
As vítimas do capital e de sua catedral racista são da mais tenra idade, ou simplesmente desprovidas de idade, e sua cor é quase sempre a mesma. Audre Lorde recolhe seus corpos, espalha eles pelas páginas do livro, expõe a dor de um povo, exprime essa dolência sob a forma de palavras que incendeiam o mundo usando como combustível o sangue infante derramado por algozes com cara de taumaturgos.
Lorde pronuncia “calçadas assassinas” (p. 159), mas poderia pronunciar simplesmente mãos que assassinam. O “ar matutino é traiçoeiro” (p. 159). O poema não o redime, apenas o revela como se fosse a condição de isentar a respiração humana de um contínuo sufocamento.
No contexto imerso nessa visão, ela retrata mulheres negras, em particular, no último trabalho que serve de arrimo à antologia: Poemas escolhidos – velhos e novos. Desse modo, são poemas de distintos anos que se misturam e nos oferecem diferentes rostos da autora.
De maneira significativa, o primeiro poema – intitulado O jornal da noite – faz o leitor ou leitora viajar até as ruas de Soweto, onde as crianças que cantam são encarceradas. A sua expressão é concisa e cortante: “a luta em Soweto está furiosa” (p. 163). Diante disso, Lorde nos oferece um paralelo entre as ruas de Soweto e do Brooklyn. O poema traz duas regras, que ela denomina de “regras da estrada”. Uma está no começo da escritura (“atenda as vítimas quietas primeiro”, p.163) e a outra se encontra ao final: “qualquer ferida vai parar de sangrar se/você pressionar forte o bastante” (p. 165). Entre uma regra e outra, ela deixa uma dessas perguntas que latejam: “o que significa/nossas guerras/sendo lutadas por nossas crianças?” (p. 163).
Nessa linha, em Za Ki Tan Ke parlay Lot, Audre Lorde nos oferece um detalhe de sua poética poderosa: “... não tem metáfora pro sangue/escorrendo de crianças” (p. 167). Mais do que isso: “tuas trancas não te protegem/o ódio chispa teus portais feito faíscas” (p. 167). No mesmo sentido, “sonhos fenecem feito folhas velhas/raiva isenta de promessa/tu te afoga no sangue das minhas crianças/sem metáfora” (p. 167). Nota-se aí como as iras se juntam e cobram mais fúria da linguagem, que atordoa, comove, mas, igualmente, alerta.
O mundo de Lorde é composto de formas complexas de unidades humanas, mas as frações de pobres e negros parecem ocupar os lugares de alvos prioritários de sua atenção social e literária. Não aleatoriamente, ela fustiga: “aprendendo a viver/onde não há comida/meus olhos estão sempre famintos” (Pós-imagem, p. 169). Mas a poeta não se contenta. Muito para ela é pouco. Por isso afirma, peremptoriamente (diriam os antigos): “... fotos de carne negra rasgada/largadas no meio da recusa da calçada/feito o rosto duma mulher estuprada” (Pós-imagem, p. 175). Indo mais longe, remete-nos ao menino negro sacrificado - “arrancaram seus olhos seu sexo sua língua” (p. 175) - no sagrado altar dos brancos, “em nome da feminilidade branca” e para a celebração “num prostíbulo (...) da fraternidade branca” (p. 175). O remate é eloquente: “Uma mulher mensura o dano em sua vida/meus olhos são cavernas, lascas de rocha entalhada/amarrada ao fantasma de um garoto negro” (Pós-imagens, p. 177).
Estamos perante uma mulher cujas palavras são iluminadas pelos archotes de sua classe e de seu povo e nelas o enfoque de gênero não se separa do de raça. Isso é assim, mesmo quando é preciso se unir às mulheres brancas em torno de uma pauta comum. Nem o amor está isento de desconfianças: “Na terra da morte a voz da minha amante fenece/como o rugido de um trem descarrilhado/do outro lado do rio/o rosto de uma mulher branca que eu amo/e desconfio paira/ comendo uvas verdes de um saco de papel” (Um poema com mulheres com raiva, 183).
A raiva e a suspeita não subtraem a força dos versos que resumem um estilo em que aos temas cotidianos se alia uma linguagem ao mesmo tempo coloquial e permeada de uma beleza, à primeira vista, estranha, embora essa estranheza, provavelmente, seja quase uma manifestação de uma realidade atônita. Essa beleza de que falamos, e que, a nosso ver, é uma marca da poesia de Audre Lorde pode ser pressentida nas sutilezas do poema Outubro: “não me deixa morrer/antes que eu tenha um nome/para essa árvore/sob a qual me deito” (p. 189).
Um tipo de estudo dos poemas que compõem o livro em exame pode perfeitamente se eximir do caminho que aqui adotamos, e, adotando outra direção, voltar-se à análise das figurações que definem o arcabouço, ao tempo vulcânico e sutil, da linguagem poética lordeana. As cintilações da linguagem peculiar de Lorde estão aí “largadas feito lápides ao longo da estrada” (Irmã, a manhã é tempo de milagres, p.191). É preciso crer na possibilidade de entre as lápides descobrir as centelhas e os múltiplos significados que rondam a estrada percorrida pela poesia da autora.
Captar essas difíceis situações de leveza literária não implica ignorar a poeticidade que caracteriza a escrita de Audre Lorde, ainda que ela invoque asperezas de certas situações e palavras: “Eu nunca tive a intenção de te deixar escorrer por meus dedos/nem de comprar teu interesse de novo/feito o desejo duma puta/que boceja nas costas da mão/fingindo um gemido de prazer/e eu também já passei por isso” (Irmã, a manhã é tempo de milagres, p. 193). Ninguém deveria ter qualquer dúvida sobre a possibilidade de que “o sol pudesse iluminar nossos diferentes desejos” (p. 193); então, por que deveria ter dúvida quanto às possibilidades iluminadoras presentes na escritura de Lorde?
Há outras probabilidades, particularmente aos que estudam as contradições inerentes às masculinidades e feminilidades. Há muitas pistas. Por exemplo, em Precisar: um coro para vozes de mulheres negras, Lorde não só adentra esse cenário de sonoras complexidades, mas articula temáticas raciais e de gênero em um feixe bastante instigante. Há pistas impecáveis: “E sua masculinidade fincou-se em meu crânio/como um peixe enredado” (p. 205); “você me toca/e eu morro nos becos de Boston/com o estômago pisoteado me saindo pelas costas/um crânio martelado em Detroit/uma faca cerimonial atravessando a vagina usada da minha vó” (p. 205). Depois de invocar muitas e diferentes circunstâncias à volta da temática central, ao final do poema ela deixa uma indagação provocativa: “Quanto dessa verdade eu posso suportar ver/e ainda viver/sem me cegar?” (p. 209).
São muitas as chaves de leitura. Paramos por aqui. Certamente, há muitas outras coisas por dizer. Mas aí já não seriam notas, mas um tratado. À guisa de desfecho, diríamos ao leitor e à leitora, que essas notas constituem uma inequívoca provocação: leiam Audre Lorde e descubram o quanto vocês suportam de sua verdade.
Fábio Queiróz
Professor do departamento de históriada Universidade Regional do Cariri - URCA