Na segunda metade do século XIX, época do surgimento do pensamento de Nietzsche, a burguesia adotou uma nova política de alianças com a monarquia e a nobreza da Europa, renunciando assim às suas próprias bandeiras democráticas e republicanas, com o objetivo de pôr fim à grande onda revolucionária européia ocorrida em 1848 que chegou a ameaçar os fundamentos de sua posição de classe. Essa transição política da burguesia para o reacionarismo teve como resultado necessário um novo sentimento de decadência cultural no qual, principalmente no meio da intelectualidade, houve a perda da crença no progresso social da humanidade, o que se traduzia subjetivamente “num relativismo, pessimismo e nihilismo etc autocomplacente, nascisista e frívolo, mas que muitas vezes se converte – em intelectuais honestos – em um sincero estado de desespero e, como consequência, numa atmosfera de rebeldia (messianismo etc.)”[1]
Neste contexto histórico, Nietzsche surge “como psicólogo da cultura, como esteta e moralista, como o mais genial e completo expoente desse autoconhecimento da decadência (da cultura de sua época). Mas a sua importância vai ainda muito além disso: reconhecendo a decadência como fenômeno fundamental do desenvolvimento burguês de seu tempo, ele assume a tarefa de apontar o caminho de sua autossuplantação, pois entre os mais vivazes e atentos intelectuais que se encontram sob a influência da visão decadente de mundo surge, necessariamente, também o desejo de sua suplantação.” [2]
Nietzsche percebeu que este desejo de suplantação desta decadência do mundo burguês poderia levar os intelectuais de seu tempo a aderirem ao ascendente movimento socialista liderado pelos trabalhadores que, em sua luta por mais democracia formal (sufrágio universal) e substantiva (redução da jornada de trabalho), manifestavam uma moral elevada que podia ser interpretada como um germe de uma possível regeneração da humanidade. E de fato nesta época houve a adesão de parte da intelectualidade a lutas progressistas como as que buscavam a revogação da lei contra os socialistas na Alemanha, as que se opunham à deflagração da Primeira Guerra Mundial (imperialista) e as que denunciavam o antissemitismo manifestado no farsesco julgamento do capitão francês Alfred Dreyfus, judeu injustamente condenado por espionagem e traição no final do século XIX.
Para Lukács, neste contexto histórico, “a missão social que compete à filosofia de Nietzche consiste em ‘salvar’ esse tipo de intelectual burguês, em ‘redimi-lo’, indicando-lhe um caminho que torna desnecessária toda e qualquer ruptura, e até mesmo toda e qualquer tensão maior com a burguesia; um caminho no qual o agradável sentimento moral de ser um rebelde pode continuar existindo, tornando-se até mais acentuado, na medida em que se contrapõe, sedutoramente, uma revolução ‘mais profunda’, ‘cósmico-biológica’ (defendida por Nietzsche) à ‘superficial’ e ‘exterior’ revolução social”. A “revolução” proposta por Nietzsche, portanto, mantém intactos os alicerces da sociedade burguesa e dirige o sentimento de rebeldia de sua intelectualidade contra o desejo de emancipação social dos trabalhadores, ou seja, contra o socialismo, na medida mesma em que seu pensamento despreza e repele a revolução social proposta pelos socialistas.
Contrapondo-se assim à luta democrática e socialista dos trabalhadores europeus, Nietzsche evidentemente recusa-se a ver nela os germes de uma renovação positiva da sociedade, pelo contrário, vê no movimento político da plebe um sinal de degradação social e cultural da Europa. Isto o faz desprezar os existentes sinais indicativos de um possível progresso social (como a elevada moral individual dos trabalhadores em luta) e o conduz inelutavelmente a basear a sua “revolução” em elementos de decadência existentes no mundo burguês, pois para ele “é exatamente na decadência onde residem os germes autênticos destinados a produzir uma efetiva e profunda renovação da humanidade.”[3] E é justamente por isso que ele utiliza a forma mítica para elaborar o seu pensamento, pois para se postular um progresso humano que contraditoriamente tenha como base de apoio a valoração positiva de elementos de decadência e de degeneração de uma sociedade dada, é absolutamente necessário se afastar dos dados da realidade objetiva. O afastamento da realidade objetiva, por sua vez, condiciona a sua rejeição a qualquer tipo de pensamento sistemático, a qualquer abordagem filosófica que encare a realidade como uma totalidade:
“O próprio Nietzsche manifesta-se de modo muito decidido contra qualquer tipo de sistema: ‘Desconfio de todos os sistematizadores e os evito. A vontade de sistema é uma falta de retidão’ (máxima número 26 de ‘Máximas e Flechas’, in Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo. Companhia das Letras, p. 11). Esta é uma tendência que já pudemos observar em Kierkegaard, e que não tem nada de casual. A crise filosófica da burguesia, que se manifestou na dissolução do hegelianismo, foi muito mais que o reconhecimento da insuficiência de um sistema determinado; ela foi a crise do pensamento sistêmico milenar que predominou. Junto com o sistema hegeliano ruiu também a aspiração de ordenar e compreender de modo unitário – a partir de princípios idealistas, portanto, dos elementos da consciência humana – a totalidade do mundo, as leis do seu devir. (…) E também sabemos que esse esgotamento do sistema no interior do pensamento burguês fez nascer um relativismo e agnosticismo infundados, como se a necessária renúncia à sistematização idealista significasse, ao mesmo tempo, a renúncia à objetividade do conhecimento, às conexões reais dentro da realidade e à sua cognoscibilidade. Mas sabemos também que o desaparecimento definitivo do sistema idealista trouxe consigo, simultaneamente, a descoberta das conexões reais da realidade objetiva: o materialismo dialético. Engels, e uma polêmica com o contemporâneo de Nietzsche, Eugen Dühring, formula a nova situação filosófica da seguinte maneira: ‘A unidade real do mundo consiste em sua materialidade’ (Anti-Dühring, São Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p. 74). As ciências particulares procuram refletir – e compreender conceitualmente – essa unidade (com aproximação cada vez maior); a filosofia reúne os princípios e as leis desse conhecimento. A conexão sistemática, portanto, não desapareceu. Mas ela não aparece mais na forma de ‘essencialidades’ idealistas, mas sempre como reflexo aproximado daquela unidade, daquela conexão, daquela legalidade, que estão presentes e atuantes, objetivamente – independentemente da nossa consciência -, na própria realidade.”[4] grifo nosso
Lukács nos explica ainda que sendo a função social do pensamento de Nietzsche a de evitar a adesão da intelectualidade ao movimento socialista, a sua filosofia acabou por ser dirigida fundamentalmente aos intelectuais, razão por que a sua obra “ocupa-se, sobretudo, dos problemas da cultura e, entre estes, principalmente, da arte e da ética individual. A política manifesta-se sempre como horizonte abstrato mítico, e, em matéria de economia, a ignorância de Nietzsche é comparável àquela de um intelectual mediano de seu tempo. Mehring aponta, com toda razão, para o fato de que os argumentos de Nietzsche contra o socialismo nunca superaram o nível de um Leo, de um Treitschke etc. Mas é precisamente essa combinação de um antissocialismo brutal e ordinário com uma crítica da cultura e da arte refinada, engenhosa e, às vezes, até acertada (lembremos da crítica a Wagner, ao Naturalismo etc.), que torna os seus conteúdos e modos de representação tão sedutores para a intelectualidade imperialista.”[5]
Nos próximos textos buscaremos descrever alguns dos traços mais importantes da filosofia de Nietzche, inclusive aqueles que revelam a dita valorização dos elementos de decadência da sociedade burguesa.
Sávio Bastos
[1]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 276.
[2]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 276.
[3]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 277.
[4]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 281/282.
[5]Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 277.