Conforme já referido no meu último texto, Lukács revela que o abandono das ilusões “democráticas” por parte de Nietzche fica bem nítido na sua obra A Gaia Ciencia, de 1882, que contém uma passagem que é “muitas vezes citada pelos fascistas com entusiasmo compreensível”, pois nessa obra Nietzche “toma posição a favor do princípio da hierarquia e da subordinação militar entre oficiais e soldados e o contrapõe à falta de distinção e de caráter aristocrático da exploração capitalista. De fato, ele (Nietzche) enxerga nessa ausência da forma aristocrática exatamente a razão do surgimento dos socialistas”[1], ao afirmar que
“Se eles (os capitalistas) tivessem, em seu olhar e em seus gestos, a distinção dos aristocratas de nascimento, talvez não existisse o socialismo de massas.”[2]
Lukács explica que Nietzche vai ficando cada vez mais áspero e passional em seus escritos - inclinando-se cada vez mais contra os valores democráticos -, pelo fato dele “considerar com um ceticismo cada vez maior a possibilidade de vencer os trabalhadores com os métodos até agora empregados, e por temer fortemente – ao menos naquele dado momento – uma vitória por parte dos trabalhadores. Assim escreve Nietzche em Genealogia da Moral (1887):
‘Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu – ou ‘os escravos’, ou ‘a plebe’, ou ‘o rebanho’, ou como quiser chamá-lo… ‘Os senhores’ foram abolidos; a moral do homem comum venceu… A ‘redenção’ do gênero humano (do jugo dos ‘senhores’) está bem encaminhada; tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente (que importam as palavras!) A marcha desse envenenamento através do corpo inteiro da humanidade parece irresistível...”[3]
Lukács aponta também que “no decorrer da crescente e cada vez mais vitoriosa resistência dos trabalhadores” na Alemanha de sua época Nietzche “amplia até o paroxismo o seu ódio contra o socialismo e estabelece a forma definitiva de sua antecipação mítica da barbárie imperialista.”[4] De fato, isso fica bem patente na seguinte passagem de sua obra O Anticristo:
“A quem mais odeio”, “A quem odeio mais da gentalha de hoje? A gentalha socialista, os apóstolos chandalas, que solapam o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com seu pequeno ser – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança… A injustiça não está mais nos direitos desiguais, está na reivindicação de direitos iguais.”[5]
E, por fim, Lukács explicita que “é algo característico para a mudança do pensamento de Nietzche que ele, no seu último período, em ‘Crepúsculo dos Ídolos, retorne, de maneira explícita, à afirmação segundo a qual a democracia é a forma da decadência do Estado; agora, porém, num sentido decididamente condenatório” e não mais no sentido do pensamento anterior de Nietzche de que a democracia seria algo positivo porque tenderia a realizar a necessária contenção da luta dos trabalhadores. Portanto, Nietzche passa a ver a democracia como uma forma “fraca” de Estado porque no seu entender ela tenderia a permitir a vitória política dos partidos socialistas.
O caráter antidemocrático e reacionário do Nietzche maduro também se revela na seguinte passagem de sua obra Crepúsculo dos Ídolos:
“A estupidez – no fundo, a degeneração de instinto, que é hoje a causa de toda estupidez – está em haver uma questão dos trabalhadores. Sobre determinadas coisas não se colocam questões: primeiro imperativo do instinto. - Não consigo ver o que se pretende fazer com o trabalhador europeu depois de tê-lo transformado numa questão. Ele se acha bem demais para não pedir cada vez mais, de maneira cada vez mais imodesta. Ele tem, afinal, o grande número a seu favor. Foi-se totalmente a esperança de aí se formar como classe uma espécie modesta e satisfeita do homem, um tipo chinês: haveria racionalidade nisso, seria mesmo uma necessidade. O que se fez? - Tudo para já destruir em gérmen o pressuposto para isso – liquidou-se completamente, com a mais irresponsável leviandade, os instintos mediante os quais o trabalhador se torna possível como classe, possível para si mesmo. Tornaram-no apto para o serviço militar, deram-lhe o direito de associação, o direito ao voto político: como admirar que hoje ele já sinta sua existência como calamidade (expresso moralmente, como injustiça -)? Mas que querem?, pergunto mais uma vez. Querendo-se um fim, é preciso querer também os meios: querendo-se escravos, é uma tolice educá-los para senhores.”[6]
Vê-se nessa citação, de forma bem clara, como Nietzche avalia positivamente o trabalhador servil, submisso, passivo, perfeitamente conformado com as suas duras condições de vida, afirmando ainda que esse era, no seu entender, o perfil do trabalhador chinês de sua época. Além da nítida serventia de tal valoração positiva para o domínio de classe da burguesia, a assertiva sobre o “tipo chinês” de trabalhador possui uma conotação racista de existência de raças/povos supostamente inferiores que, por não conseguirem conduzir-se por si mesmos em direção ao progresso, devem ser “guiados” pelas raças/povos supostamente superiores. Essa ideia foi muito utilizada pelos apologistas do imperialismo dos países avançados como justificativa ideológica para a exploração dos países atrasados coloniais ou semi-coloniais. Lembremos que Nietzche apoiou o imperialismo alemão de sua época. Com base, portanto, na obra de Lukács A Destruição da Razão, ora comentada, pode-se verificar que Nietzche justifica a exploração que uma elite ociosa exerce sobre a classe trabalhadora, no plano interno de cada país, da mesma forma que ele justifica a dominação das raças/povos que ele considera inferiores pelas raças/povos que ele considera superiores, no plano das relações entre povos diversos, o que fica claro por seu apoio ao imperialismo alemão de fins do século XIX. Não deixa de ser irônico que justamente a China, com seu espetacular desenvolvimento industrial e tecnológico das últimas décadas, veio a se constituir em importante exemplo histórico de que não existem raças inferiores e superiores que justifiquem o imperialismo dos países capitalistas economicamente avançados.
Domingos Sávio
Membro do GPOSSHE
[1] Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 293-294
[2] Nietzche, Werke, Tomo V, p. 77, obra citada por Lukács em A Destruição da Razão, Ed. Institulo Lukacs, p. 293-294.
[3] Nietzche, Genealogia da Moral, Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 28
[4] Lukács, A Destruição da Razão, Ed. Instituto Lukács, p. 294
[5] Nietzche, O Anticristo. Cia das Letras: p. 72
[6] Nietzche, Werke, Tomo VIII, p. 153 (ed. bras.: Crepúsculo dos Ídolos, p. 91)