Quem conhece o Vale do São Francisco, rio que atravessa os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, já deve ter visto na proa de barcos as famosas carrancas. São próprias da cultura popular da região, sendo usadas para repelir maus espíritos e seres malignos para a proteção das embarcações.
A carranca, como produto social, é um fetiche, um objeto inanimado resultante do trabalho humano e sem nenhum poder em si, no entanto, lhe são atribuídos poderes naturais (afugentar animais) e sobrenaturais (afastar seres maléficos). Assim, um simples objeto material torna-se algo mágico com poderes sobre-humanos. Dessa maneira, um produto da atividade humana passa a dominar os seres humanos. A carranca é um exemplo de fetichismo, um fenômeno social que atribui poderes a entes materiais ou não, tornando os seres humanos dependentes ou submissos a eles.
Nas pós-graduações, em especial na área de humanas, há muitos fetichismos. Destacando-se o fetichismo do método e dos seus poderes mágicos. O método muitas vezes é entendido como algo sem história, encontrando-se desencarnado da práxis humana de intervenção no mundo. O método reina acima de tudo, do objeto e do próprio processo de pesquisa. Então a aplicação abstrata do método em si passa a ser a única garantia de alcance da verdade: puro fetichismo metodológico. O método vira uma carranca.
O pior que tal postura atinge o próprio marxismo, que pagou um preço alto ao entrar nas universidades. Até parece que Marx desenvolveu o método apenas para as pesquisas de mestrado e doutorado. Esse extremo é favorecido por posturas que separam o método no marxismo da luta de classes e da perspectiva socialista. Isso, de fato, é uma projeção da prática academicista que pode ser sintetizada no lema “estudar para transformar”. Nesse sentido, bastaria repetir algumas frases ritualísticas para a pesquisa e o texto afastar os maus espíritos do positivismo ou da especulação idealista. Nada mais distante da postura de Marx/Engels e dos marxistas revolucionários.
Dito isso, podemos afirmar algumas hipóteses de trabalho sobre o marxismo e seu método.
Primeiro, as elaborações de Marx e Engels são inseparáveis do movimento operário e socialista. O marxismo está vinculado à luta do proletariado por sua emancipação social. Marx levou anos construindo seu método, pois seus estudos nunca foram separados de uma intervenção concreta nas lutas sociais do seu tempo.
Segundo, há um método em Marx que foi nomeado: “método dialético[1]”. Tal método, no entanto, não é uma receita de bolo, não é algo aprioristicamente posto. O método em Marx é plasmado pela intervenção do sujeito no objeto, que indica possibilidades e limites de conhecimento. O fundamento filosófico do marxismo, e da ciência, é o materialismo (explicar o mundo pelo mundo) e o “ideal não é mais que o material, transposto e traduzido na cabeça dos homens[2]”. Para Marx, “o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta[3]”.
Terceiro, o sujeito que conhece transformando o mundo e transforma o munto conhecendo-o é um ser ativo, nunca passivo. Daí ser uma estultice afirmar que a relação de conhecimento é “objeto-sujeito” ou que o pesquisador deve “ouvir” o objeto para manifestá-lo. Isso não é ciência, nem de má qualidade, é um tipo decaído de espiritismo. O sujeito cognoscente deve ser formado e educado para conhecer/intervir na realidade. A práxis científica deve ser necessariamente desantropomorfizadora para transpor e traduzir o movimento do real na subjetividade humana por meio de leis, nexos, categorias e conceitos. O marxismo não despreza a teoria do conhecimento porque a ontologia, a gnosiologia e a lógica são partes de uma mesma totalidade.
Por último, o marxismo tem muito a contribuir com as pesquisas científicas nas ciências sociais, contanto que não se esqueça de sua natureza imanentemente revolucionária e vinculada à superação radical do presente capitalista.
Frederico Costa
Professor da UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO
Esse texto refere-se a questões surgidas na disciplina “Materialismo histórico/ontologia do ser social: a questão do método” do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará PPGE-UECE
[1] MARX, Karl. O capital: crítica da economia, o processo de produção do capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 90.
[2] Idem.
[3] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 259.