O Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus teve o lançamento de sua primeira edição no ano de 1960. Essa referida obra tem por gênero textual prevalente o gênero narrativo, em qual Carolina utiliza-se do seu cotidiano em forma de diário pessoal. Além disso, no respectivo livro a linguagem prevalente é a coloquial, no qual Carolina Maria de Jesus escreve tal qual fala, e isso foi mantido na obra, para que ela não perdesse sua essência e se apropriando da licença poética.
Carolina Maria de Jesus nasceu no estado de Minas Gerais, e acabou se mudando para a cidade de São Paulo em 1947, período em que o processo de favelização estava em um crescimento desordenado. Como resultado de sua escrita, que tinha e tem o poder de aproximação com o público, Carolina foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil, e uma das mais lidas nesse país. A autora trouxe fortemente em seu livro a favela como um todo, e todas as especificidades e singularidades que permeavam o meio em que vivia. Carolina, morou com os três filhos durante a sua vida em uma das metrópoles mais industrializadas e com desigualdade do Brasil, em São Paulo na favela de Canindé, relatada por ela ao longo de sua escrita destacando a sua miserabilidade e sua marginalização.
A estrutura do livro, como já mencionado aqui, deu-se por uma estrutura de tipo textual de Diário, o qual foi dividido por dias do mês, cada dia tinha sua característica própria, nunca trazendo informações repetitivas, a não ser pelo fato dela se referir da sua ocupação como catadora de papéis. Todo esse estilo presente no decorrer da obra traz uma singularidade pouco vista em outras obras renomadas da nossa literatura. Ademais, essa questão talvez seja uma das que mais me chamaram atenção durante toda a leitura, senti uma aproximação durante várias linhas com a Carolina, por conta da sua escrita mantida verdadeiramente como ela era, informal e coloquial, porém esplendorosa. Essa proximidade faz com que estejamos cada vez mais imersos no mundo dela, muitas vezes nos perdendo do nosso.
Quarto de Despejo, também chamado por muitas vezes de: “Diário de uma Favelada”, tornou-se ao longo dos anos uma obra atemporal, na qual resguarda em seu seio expressões da questão social brasileira, ainda mais escancarada durante a Pandemia da Covid- 19. Além, da fome, que é por muitos a questão mais destacada durante a obra, Carolina relata várias situações cotidianas, do que acontece dentro e fora da favela. Porém, de formas tão convergentes e divergentes ao mesmo tempo. Talvez, por causa disso seu exemplar tenha sido considerado atemporal e sua leitura necessária para que se entenda as mudanças das expressões sociais, políticas, econômicas, raciais, culturais vigentes hodiernamente.
Por conseguinte, as discussões trazidas por ela durante todo o desenvolvimento de sua escrita são, entre tantas outras: questões raciais e de gênero, violência contra a mulher, a fome, as desigualdades, as falhas do sistema capitalista, a política fraudulenta do Brasil, o consumo excessivo de álcool, a branquitude e sua hegemonia, como também a questão da favelização desmedida na grande metrópole São Paulina e o desemprego. Evidencia-se ao desenrolar da leitura, que a expressão social da fome, embora seja uma das mais citadas após o encontro e estudo desse livro, ela não é a única expressão presente nas entrelinhas da redação de Carolina Maria de Jesus. Outros assuntos trazidos por ela, são de extrema relevância, concomitante à fome. Aliás, um dos pontos pertinentes expostos é a politicagem, na qual ela se refere durante muitas vezes que os “tais políticos” só lembram do povo da favela em época de eleição, e as promessas são sempre as mesmas, após o período eleitoral todas as promessas se evaporam, se esvaindo com o mandato do(a) candidato(a).
Outra discussão recepcionada por Carolina, trata-se da violência contra a mulher e a sua naturalização. Ela discorre sobre muitos atos de violências, inclusive a violência contra a mulher intrafamiliar e extrafamiliar. A exposição desses fatos é narrada por ela de maneira descritiva, tanto do ambiente, como na ação e omissão das pessoas que habitam ali naquele entorno da favela. A naturalização da violência de gênero contra a mulher é notória nos diálogos presentes na obra, quando ela insere a fala de algum morador ou moradora, trazendo justificativas tidas como consideráveis para a explicação daquela determinada conduta. Além dessas duas já citadas, pode-se trazer as desigualdades generalizadas e tão aparentes do desemprego, da fome e da marginalização, que estão presentes concomitantemente na obra e na contemporaneidade.
Referindo-se a um dos pontos discutidos no exemplar, quando ela trata da fome, infere-se que é um ponto central trazido por Carolina. É algo que além de atingi-la fisicamente lhe atingia também moralmente e psicologicamente. Em muitos trechos do escrito, ela relatava a fome como uma das expressões sociais mais agressivas e desumanas. A necessidade de se apropriar do que tinha no lixo para se alimentar e alimentar seus filhos quando não conseguia catar materiais recicláveis necessários para seu sustento e dos seus, buscando algo menos fétido e apodrecido para que de alguma forma enganasse a fome. Em um desses trechos que têm a fome como personagem principal, pode-se citar:
Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver. (...) A mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo. (...) Pobre mulher! Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: - Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome! (p.56)
A fome tem “cor amarela”, Carolina diz isso: "Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito". Amarela da cor da bile que se vomita quando o estômago está vazio, amarela como o seu mundo embaçado pela tontura. Só sabe o desespero da fome, quem passa. Essa discussão é trazida pontualmente e expressivamente por Carolina, do começo ao fim de sua obra, apesar de ser uma das expressões da questão social mais mencionada, ela não era única, mas era a que mais doía, nela, e possivelmente no leitor também.
Em síntese, o Quarto de Despejo é uma das obras excepcionalmente necessárias para a concepção e construção de uma criticidade referente a todas as desigualdades presentes em nossa sociedade, que perduram por décadas. O paralelo da década de 60 em qual a obra foi escrita com a contemporaneidade assusta e ao mesmo tempo instiga questionamentos e discussões pertinentes desse sistema capitalista vigente, e de todas as expressões que advêm dele. Tornando por si só, a naturalização de todas as desigualdades, sejam elas sociais, culturais, políticas, econômicas, raciais e de gênero. Carolina, evidencia com uma linguagem acessível e direta o que se passa dentro e fora da favela, fazendo com que se pense em situações de subalternidades. Há um fato narrado com grande repercussão que ela retrata que se o problema não é seu, e não é você que o sente ou o vê, ele não te atinge, ele não te toca e você fica indiferente a ele.
Dessa maneira, ela expressa com maestria o que é a fome e a marginalização das favelas, porque ela sabe como ninguém as dores e as chagas que isso acarreta para as vidas dos favelados, pois ela, assim como tantos outros faz parte desse mundo, chamado favela.
Referências
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 2004.
Thaís Queiroz Castro