domingo, 17 de novembro de 2024

O lugar da Proclamação da República na História

novembro 17, 2024

“Proclamação da República”, 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853-1927)

A República no Brasil não se reduz ao seu ato inaugural: o golpe militar de 15 de novembro de 1889. O episódio foi resultado de conflitos de um conjunto de forças político-sociais que responderam às exigências de mudanças estruturais da formação social brasileira e da luta de classes.

No dia 3 de dezembro de 1870, assinado por cinquenta e oito pessoas, entre elas Aristides Lobo, Saldanha Marinho, Ferreira Viana e Quintino Bocaiúva, apareceu o primeiro manifesto republicano no jornal "A República". Dois anos depois, o primeiro recenseamento oficial registrou uma população de 8.419.672 de seres humanos livres e 1.510.860 de trabalhadores escravizados. E, duas décadas depois, ocorreu a Abolição da Escravidão, a destruição do Estado monárquico escravista e a estruturação do Estado burguês brasileiro.

O modo de produção escravista colonial hegemônico, com mais de trezentos anos de existência, era garantido pela superestrutura jurídico-política do Estado monárquico brasileiro, que se encontrava em crise permanente e crescente desde a segunda metade do século XIX. A destruição das relações de produção escravistas, nesse sentido, era inseparável da substituição do Estado imperial brasileiro.

Por isso, é importante situar o 15 de novembro, como faz Saes (2023), num processo específico de transformação política: a revolução antiescravista e antimonárquica que se desenrolou, fundamentalmente entre 1888 e 1891, por meio dos momentos sucessivos da Abolição da Escravatura (1888), da Proclamação da República (1889) e da Assembleia Constituinte (1891). Esses episódios, muitas vezes vistos de forma isolada, representam elos de uma corrente histórica de superação do Estado escravista moderno, fundado na primazia do ser humano livre sobre o trabalhador escravizado, por um Estado burguês baseado na concessão formal de cidadania a todos os indivíduos (Estado republicano).

Em 1888, por uma pressão de massas ruiu as relações escravistas de produção, minando a base estrutural do Estado imperial. Era a distinção entre ser humano livre e ser humano escravizado que coordenava e organizava todas as instituições políticas monárquicas brasileiras (Executivo, Poder Moderador, Senado, burocracia, Guarda Nacional, estrutura judiciária, por exemplo). A Proclamação da República, independente da forma que adotou,  completou a obra destruidora da revolução abolicionista (que destruiu o escravismo), quebrando não só o regime monárquico como todas as instituições políticas sustentadas pelas relações escravistas. Tal processo foi consumado pela Assembleia Constituinte que estabeleceu novas instituições políticas formalmente universais que conformaram um novo Estado de classe, não mais escravocrata, mas burguês.

É óbvio que o Estado e o regime republicano não foram resultados de um processo democrático de massas que levantasse a necessidade de reivindicações democráticas em torno dos direitos dos trabalhadores que foram escravizados, de reforma agrária, de direitos sociais (saúde, educação, regime de trabalho), de igualdade jurídica das mulheres, de independência nacional real, de reconhecimento das populações indígenas de sua autonomia e de soberania popular. O Estado burguês nasceu como uma república oligárquica, expressando as contradições do desenvolvimento desigual e combinado da formação econômico-social brasileira.

Hoje, nesses 135 de República brasileira, com o devido distanciamento histórico, pode-se afirmar que o 15 de novembro expressou um movimento progressivo diante do Estado monárquico escravista.

Hoje, a luta é outra. É pela instauração da República dos trabalhadores e das trabalhadoras no Brasil com base na superação das relações capitalistas de produção.


Referências

SAES, Décio. República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2023.



Frederico Costa, Professor da UECE

domingo, 10 de novembro de 2024

Bloco de Notas: estrutura social alienada e processo de aprendizagem emancipador

novembro 10, 2024



A afirmação de que o ser condiciona a consciência é uma das coordenadas fundamentais do materialismo histórico. Isso significa que a consciência é produto das relações sociais predominantes, que são históricas e contraditórias. A consciência é produto do ser social e, simultaneamente, é produtora da sociedade em seu processo de reprodução de relações sociais e instituições, pois os indivíduos são seres conscientemente ativos.


As relações de produção capitalistas estabelecem formas de existência, de subjetividade, de sensibilidade e de posturas sociais dos indivíduos, que são reificadas (coisificadas) sob a forma de ter, de consumir e de se apropriar como propriedade privada. Assim, determinando maneiras de pensar, de agir e de sentir alienadas e fetichizadas.


Essa totalidade influi, no contexto da educação, no processo de aprendizagem. 


Sob a pressão das relações sociais capitalistas, por exemplo, discentes assistirão a uma aula, ouvindo palavras e buscando compreender seus significados e estrutura lógica da melhor maneira possível. Inclusive produzindo anotações para melhor memorizar o conteúdo e, assim, tirar boas notas nas avaliações. 


O interessante, nessa postura é que o conteúdo se torna estranho ao sujeito do processo de aprendizagem porque não se converte em um momento do sistema subjetivo de ideias do discente, enriquecendo-o e ampliando-o na sua prática de intervenção no mundo. Pelo contrário, conceitos e palavras se tornam núcleos fixos e congelados, ou seja, tornam-se coisas armazenadas em teorias abstratas sem contato com a vida social e histórica.

 

Estudantes e conteúdos ministrados nas aulas e atividades pedagógicas apresentam-se estranhos (alheios) uns aos outros. Dessa maneira, cada discente se constitui como proprietário de uma coisa (objeto cultural) produzido por alguém (estranho). Então, nesse modo de aprendizagem, estudantes não precisam criar ou produzir algo novo como síntese do conteúdo apreendido e suas necessidades sociais, favorecendo estruturas de poder dominantes que não estimula novas ideias e novos pensamentos sobre determinados assuntos. Do ponto de vista dos estudantes, sua subjetividade é condicionada, pela ideologia dominante, a temer mudanças e questionamentos ao acervo fixo adquirido.


À situação exposta acima há uma alternativa. Noutras palavras, há uma postura emancipadora de aprendizagem. Nela, discentes não frequentam as aulas como seres sem história, sem saber. Anteriormente, como indivíduos em processo de construção de autonomia, necessitam pensar os problemas e questões próprias. Nesse sentido, eles não são simples receptáculos vazios. 


A aprendizagem emancipadora exige que os discentes não sejam passivos. Não basta ouvir ou prestar atenção. É preciso uma relação dialética de apropriação e reação ativa ao conteúdo de maneira produtiva, pois esse processo estimula o pensar crítico de alunos e alunas. Geram-se novas ideias, novas questões, novas respostas e novas perspectivas na subjetividade dos sujeitos do processo de aprendizagem. 


Nesse movimento, até a atenção necessária é algo vivo. Há interesse. Estudantes ouvem e anotam numa atitude espontânea de vinculação com sua ação na vida social. Na aprendizagem emancipadora (não alienada), quando discentes se apropriam de um conhecimento produzido historicamente, eles e elas se transformam e se desenvolvem como seres autônomos e críticos para intervir socialmente, inclusive no próprio processo de ensino-aprendizagem. 


 Frederico Costa, Professor da UECE


Foto: Getty Images

domingo, 3 de novembro de 2024

Estudar “O capital” de Marx para quê?

novembro 03, 2024




Vamos iniciar um grupo de estudos de “O capital”. O que buscamos com essa atividade? Não somos os primeiros nem seremos os últimos a mergulhar na crítica mais fundamentada e radical do capitalismo.

 

Aqui pretendo apresentar alguns elementos norteadores para nosso estudo coletivo. Sem adiantar ou suprimir previamente a leitura e as reflexões necessárias sobre o texto que iremos realizar. Apenas procurarei indicar algumas coordenadas reconhecidas e aceitas por inúmeros estudiosos que já se debruçaram sobre essa obra seminal. Nesse sentido, eis algumas questões que buscaremos identificar a partir de nosso estudo:


1 – a estrutura do modo de produção capitalista e suas características universais como forma de entender o capitalismo contemporâneo e a situação de países periféricos como o Brasil;

2 – a diferença fundamental entre processos sociais aparentes e processos sociais essenciais, no geral e na sociedade brasileira em particular;

3 – a forma como no modo de produção capitalista se realizam os processos sociais e históricos de produção e reprodução da vida real;

4 – os fenômenos da exploração e da luta de classes imanentes ao modo de produção capitalista;

5 – o caráter próprio das relações sociais e ideológicas (culturais) na dinâmica do modo de produção capitalista;

6 – por último, os caminhos críticos e revolucionários que a crítica da economia política, realizada por Marx, vão abrindo no sentido de produzir uma compreensão da realidade no processo de transformação dela mesma.


Em nossos encontros, procuraremos desenvolver de maneira coordenada as seguintes posturas metodológicas: a) apresentar a temática referente ao livro, volume, seção e capítulo estudados para orientar os leitores; b) seleção ordenada de textos de apoio quando for necessário; c) dinâmica pedagógica para o trabalho coletivo de leitura, estudo e interpretação dos textos;  d) dimensionamento do tema principal tratados pelos textos lidos; e) levantamento de conceitos básicos; f) conexões possíveis dos temas básicos com outros momentos da obra de Marx; g) apresentação de problemáticas da realidade de países periféricos e do Brasil, em particular, refletindo sobre suas contradições estruturais, econômicas, políticas e ideológicas.


Essa proposta é uma dentre várias que serão desenvolvidas pelo caminhar de nossas reflexões.



Frederico Costa, Professor da UECE

 

 

 

sábado, 2 de novembro de 2024

BLOCO DE NOTAS: relação entre história e educação

novembro 02, 2024

Foto: radio.ufpa.br

 Frederico Costa, Professor da UECE


Nos estudos sobre educação, em particular no curso de pedagogia, uma pergunta se põe e impõe: qual a natureza da História da Educação?

Penso que o primeiro passo é analisarmos abstratamente (de forma separada) o que seria história e o que seria educação. Nessa ação analítica, temos como referencial teórico a dialética materialista, que procura compreender o mundo em sua totalidade como um conjunto de relações contraditórias e históricas.

A noção de História tem a ver com movimento, transformação e mudança constantes. Se observarmos bem, tudo muda. Os seres humanos, como qualquer ser vivo, nasce, se desenvolve e morre. Também, surgem, crescem e perecem cidades, reinos e civilizações, mas essa permanente mudança do mundo humano faz parte de um movimento muito mais amplo e belo que abarca o conjunto da realidade.

O Universo, de acordo com pesquisas científicas, tem provavelmente 13,7 bilhões de anos. Nosso planeta Terra possui 4,5 bilhões de anos e a vida originou-se há aproximadamente 3,7 bilhões anos. Já nossa espécie (Homo sapiens) emergiu em torno de 200 mil anos, na África, por meio de um processo de evolução biológica (mutações aleatórias e seleção natural). Noutras palavras, tudo o que conhecemos é histórico e mutável. Como disse o antigo filósofo grego Heráclito: “só a mudança permanece”. 

Agora, onde se localiza o processo social chamado de Educação?

Toda comunidade humana, seja na “Idade da Pedra” ou atualmente, precisa se manter e continuar no tempo, ou seja, precisa se reproduzir. Nesse sentido, necessita reproduzir suas relações sociais e instituições, como também, precisa reproduzir indivíduos aptos para viver na forma social historicamente determinada. 

Então, a reprodução social é composta de uma dualidade integrada: reprodução das relações sociais e reprodução dos indivíduos. Nesse movimento, são reproduzidas as classes sociais (nas sociedades classistas), as instituições, as ideias, os costumes, os conhecimentos, a divisão social do trabalho e os indivíduos que exercerão diversas funções sociais para a preservação e desenvolvimento de cada estrutura social específica.

No processo constante da reprodução social, a educação ocupa um lugar especial, exercendo a função de gerar (formar) indivíduos conforme as necessidades, valores e conhecimentos de cada sociedade particular. Tal processo não é simples, principalmente em sociedades centradas no conflito entre classes sociais antagônicas.

Agora, o importante é destacar que a História da Educação trata de mudanças ocorridas  no processo de formação de indivíduos em sociedades concretas. No entanto, a História da Educação não é apenas uma disciplina descritiva, porque busca tornar inteligível as razões e os sentidos do processo educativo nas inúmeras sociedades humanas. Isso possibilita intervenções no presente com o objetivo de orientar  mudanças educacionais que favoreçam a maioria do povo brasileiro e uma estratégia de desenvolvimento nacional. 

 

 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

BLOCO DE NOTAS: uma leitura histórica (cronológica) do Novo Testamento

outubro 23, 2024


Quais as vantagens de estudar a Bíblia? – Blog Gospel Goods


Frederico Costa, Professor da UECE


A ordem de leitura dos vinte e sete textos do cânon do Novo Testamento da Bíblia cristã   obedeceu a critérios ideológicos-teológicos. O objetivo foi consolidar ideias e práticas impostas pela autoproclamada ortodoxia dos primeiros cinco séculos do cristianismo (a chamada patrística) como, por exemplo: 1) a ideia de que Jesus morreu, foi sepultado e no terceiro dia ressuscitou; 2) a tentativa de harmonizar as diferentes percepções entre os próprios autores neotestamentários sobre quem teria sido Jesus; 3) identificar qual era a verdadeira mensagem de Jesus; 4) a visão de que Jesus foi amplamente citado pelos autores da Bíblia judaica (Antigo Testamento).

 

A leitura teológica da Bíblia é um fenômeno social ideológico porque visa apresentar uma visão da realidade e, com base nisso, induzir a certas formas de comportamento e de pensamento de indivíduos e comunidades. Essa perspectiva ideológica procura uniformizar as interpretações, alinhar as expectativas e as narrativas da experiência religiosa cristã com o objetivo de oferecer esperança e sentido de vida aos fiéis. Hoje há inúmeras leituras teológicas conforme a doutrina de cada corrente cristã, seja católica (modernista, conservadora, tradicional ou da libertação), seja protestante (luterana, calvinista, arminiana, pentecostal, adventista ou neopetencostal).

 

A ciência e a história, em particular, procuram compreender como e porque os processos reais que formaram o Novo Testamento ocorreram. Por isso, trabalham noutra perspectiva e utilizam uma leitura cronológica. Conforme  Chevitarese (2022),  a leitura cronológica do Novo Testamento:

 

1) Estabelece uma ordem cronológica dos textos, definindo quais seriam aqueles mais próximos e aqueles mais distantes de Jesus.

2) Reconhece que nenhum autor cristão do Novo Testamento foi testemunha ocular de Jesus.

3) Admite que entre a morte de Jesus, ocorrida na primeira metade dos anos 30 da Era Comum (EC), e o início da redação dos primeiros textos, que se deu nos anos 50 do século I, o Movimento de Jesus sem Jesus conheceu duas fases de produção de dados, que apesar de serem distintas, coexistiram entre si: a) as memórias de uma geração inteira de indivíduos que conheceram Jesus, e b) as tradições orais, que incluíam essas memórias, mas que englobavam também memórias de pessoas que nunca tiveram contato com Jesus;

4) Quanto mais antigo for um texto cristão, maiores serão as chances dele trazer narrativas que possam conter dados relacionados à vida de Jesus.

 

Essa postura científica de leitura dos textos do Novo Testamento em ordem cronológica possibilita o rompimento com as leituras teológicas, que distorcem a realidade dos fatos.

 

Eis o quadro de leitura cronológica do Novo Testamento publicado pela professora Juliana Cavalcanti.



Boa leitura.


Referências

CHEVITARESE, André Leonardo. Planejamento de leitura cronológica do Novo Testamento. Rio de Janeiro: Menocchio, 2022.

 https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=uyFew9vGZ5Y, Canal de Juliana Cavalcanti no YOUTUBE

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Bloco de Notas: educação e revoluções burguesas

outubro 22, 2024



Da revolução francesa ao Império de Napoleão


Frederico Costa, Professor da UECE


A educação escolar foi um dos resultados do processo de transição do feudalismo ao capitalismo. As contradições entre as relações de produção feudais, que travavam o desenvolvimento das forças produtivas, abriram uma época de crise, inovações, novas ideias e revoluções. A Reforma Protestante, o Renascimento, as Grandes Navegações, a generalização das relações mercantis, o humanismo, o mercantilismo, o absolutismo, a revolução científica, o iluminismo, conformam o período de ascensão e conquista do poder político pela burguesia. 


Godechot (1969) indica a natureza revolucionária do período entre 1770 e 1850, que trouxe grandes aportes para a educação na modernidade. De 1770 a 1783: Revolução Americana, formação da República dos Estados Unidos com um governo constitucional, liberal e o mais democrático dos conhecidos, até aquele momento. 1780-1783: levantes revolucionários na Irlanda e Inglaterra, cujos objetivos eram, por um lado a autonomia da Irlanda, por outro lado a reforma parlamentar na Inglaterra. 1783-1787: revolução nas Províncias Unidas para impedir que o estatúder (cargo político com funções executivas) se convertesse num rei hereditário e para implementar medidas democráticas nas instituições do país. Somente a intervenção armada da Inglaterra e da Prússia impediram que o movimento revolucionário triunfasse. 1787-1790: revolução nos Países Baixos Austríacos. A vitória desse movimento, que, num primeiro momento, esteve dirigido contra as reformas ilustradas de José II, deu origem a um verdadeiro partido democrático. 1768 e 1782: revoluções democráticas em Genebra que fracassaram devido à intervenção armada estrangeira. 1781: movimento revolucionário em Friburgo, Suíça. 1772 e 1789: o rei da Suécia se aliou aos burgueses e camponeses contra a nobreza e transformou o regime numa forma mais democrática. 1787-1815: Revolução Francesa. 1788-1794: Revolução Polaca. 1792-1801: Revolução Belga com a ajuda da França. 1792-1801: revolução na Renânia com ajuda da França. 1795: entrada de tropas francesas na Holanda, que concluiu a criação da República Bávara. 1796-1799: revolução nos diversos Estados italianos. 1798-1799: revolução na Suíça e formação da República Hevéltica. 1797-1801: o exército francês leva consigo os grandes princípios da Revolução Francesa às Ilhas Jônicas e, desse lugar, aos Balcans, Malta, Egito e Síria. 1805-1815: os grandes princípios da Revolução Francesa alcançam, por meio do exército francês, Europa Central, Polônia e Rússia. 1807-1814: a invasão da Espanha traz como consequência a revolução nas colônias espanholas da América, entre 1810 e 1820. Apesar da derrota de Napoleão, em 1815, o processo revolucionário é retomado na Itália e Espanha, em 1820; na Grécia, em 1821; na França, na Bélgica e na Polônia, em 1830; e, em toda a Europa Ocidental e Central, em 1848, na chamada Primavera dos Povos.


No processo histórico e contraditório que acompanha a emergência do capitalismo como modo de produção hegemônico e a ascensão da burguesia como classe dominante, a educação, em seu caráter de ação sistemática, e as reflexões sobre ela não ficaram imunes à luta de classes que envolvia a nobreza, os burgueses, o campesinato e outras camadas populares. A crise da educação cavaleiresca, os problemas da aprendizagem nas corporações, o surgimento da pedagogia humanística, as academias, as propostas da Reforma Protestante para as escolas, a reação católica da Contrarreforma para as escolas e o desenvolvimento da escola estatal colocaram questões sobre a organização escolar, o conteúdo curricular, a amplitude do sistema educacional, as formas de ensino, os objetivos da escola estatal, a formação de professores, o financiamento e relação entre escola e sociedade. Essas questões são respondidas de várias maneiras a partir de interesses de classes e frações de classes diferentes.


REFERÊNCIAS

 

GODECHOT, Jacques. Las revoluciones (1770-1799). Barcelona: Editorial Labor, 1969.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Diálogo com um companheiro sobre o "pobre de direita"

outubro 18, 2024


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Querido companheiro,


Por que o "pobre" (categoria mais mercadológica do que social, já que não se refere ao lugar das classes na produção) deveria ser naturalmente de esquerda? Sim, porque só faz sentido falar de "pobre de direita" como um ponto fora da curva se você achar que o "pobre" foi "normalmente"/"naturalmente",  ao longo da história, de esquerda.


É uma confusão entre a condição subalterna, explorada, eventualmente excluída do consumo e da produção, com o grau de consciência desta camada como classe. Num velho jargão hegeliano, adotado por Marx, uma confusão entre "classe em si" e "classe para si", isto é, entre sua existência objetiva no mundo e seu reconhecimento desta existência oprimida, que é obviamente sentida, mas não necessariamente entendida.


Este entendimento está sempre em disputa entre as camadas mais conscientes da classe trabalhadora (a classe dos "pobres") e a classe dominante. Aquela buscando explicar a origem da condição de explorado, e esta vendendo a ideia de que a competência, o afinco e, hoje, o empreendedorismo (infelizmente adotado pelos setores majoritários de esquerda) podem leva-lo à ascensão social, sem necessidade de luta nem de reivindicações. 


As classes dominantes detêm os meios materiais e políticos, o Estado, para fazer esta disputa, e as camadas mais conscientes dos "pobres" contam tão somente com sua organização. 


Ora, se a condição de pobre  e a consciência de classe dos pobres fossem a mesma coisa, pra que partido? Pra que Sindicato? A posse do Estado pelas classes proprietárias consiste, em boa parte, na função de tornar aparentemente universal, "de todos", justamente os valores desta classe dominante. 


O que há de novo, desde o final dos anos 70, é a renúncia da direção de nossas organizações, especialmente do PT e da CUT a travar esta disputa, ou de travar a disputa nos mesmos termos da classe dominante, o que no fim dá no mesmo. 


Resta o que, então? Botar a culpa de nossa derrota nos "pobres". Daí a invenção desta figura do "pobre de direita" que, se é "de direita", não é uma consciência a ser conquistada, mas um inimigo nosso. Isso se estende aos chamados crentes, em sua maioria pobres cuja consciência não disputamos aos pastores e padres, estes sim, conscientemente de direita. A esquerda prefere "lacrar", "sambar na cara do crente" com a nefasta "pauta dos costumes" que reforça a retórica dos pastores, esquecendo que o crente é gente como a gente, com carências e necessidades que, sem organização de classe, eles não conseguem transformar em bandeiras de luta e, portanto, acham guarida na igreja. 


Se intelectuais como Jessé de Souza voltassem por um momento a textos como a Ideologia Alemã, de Marx e Engels, tivessem um pingo de perspectiva materialista da história, evitariam passar essa vergonha de apontar o dedo para o "pobre de direita".


Com apreço,


Eudes Baima, Professor da UECE

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

outubro 17, 2024


A Moral Dele e a Nossa


Professor Eudes Baiman, Professor da UECE


O dito fenômeno Marçal  chama ainda mais atenção porque desafia inclusive o tradicional moralismo brasileiro. 


Durante décadas, apelar à retidão moral (ou à falta dela no adversário) foi um recurso certeiro para desqualificar os concorrentes. O moralismo colocava o confronto fora do alcance da política e era instrumento da desqualificação prévia, antes mesmo dos embates de ideias e propostas. Você já derrubava o adversário liminarmente porque cultivamos ao longo de séculos esta mentalidade julgadora (e condenadora) do caráter moral das pessoas. 


Marçal, depois de Bolsonaro, parece imune à desqualificação moral.


Ainda mais curioso é que determinações neste âmbito parecem não icomodar o núcleo essencial do público do qual ele parte, o público evangélico, tão distinto quanto à chamada "pauta moral". 


No caso, antes de Bolsonaro e, hoje, de Marçal, a boa e velha acusação de ladrão (no caso deste último, comprovada e com condenação na Justiça) parece não incomodar ao puritano evangélico ou ao cidadão de classe média aspirante à rico, sempre tão dispostos a apontar o crime do semelhante.


Muito menos efeito faz o desmascaramento, ainda que cabal e contundente, da mentira, do estelionato e da falsificação. 


Marçal, ainda mais que Bolsonaro, parece assumir abertamente o uso de meios ilegais como instrumento para derrotar o Inimigo, com "I" maiusculo (à moda dos evangélicos quando se referem ao Diabo), inclusive usando positivamente o fato de ser o único a fazê-lo e a reclamar o ato como legitimo, ao invés de tentar refutar as evidências de que comete ilícito. 


Mentir, enganar, roubar sem constrangimento e reivindicando isso como atestado de audácia e destemor no combate ao Inimigo, ao contrário, parece uma qualidade frente ao seu público: o cara que irá até o fim, sem constrangimentos legais ou de consciência para nos livrar do perigo do comunismo, da esquerda ou, como dizem alguns segmentos católicos, do modernismo.


Entender esta falta de escrúpulos sagrada, e até santificada, arma de um guerreiro fiel e destemido, exige estudar mais, contudo, a atitude de Marçal que seu eleitor médio espera e valoriza, está ligada à recusa do atual estado de coisas, da ordem vigente, o "sistema", da qual Lula e o PT parecem ser os principais defensores (o chamado Estado democrático de direito), do qual os mais pobres e as classes médias apavoradas e desalentadas em sua esperança de ascensão não tiram nenhum proveito, e, antes, surge como um obstáculo a suas demandas que parecem acessíveis apenas se retiradas as barreiras (direitos civis e trabalhistas, garantias do trabalho, etc.) à selvagem livre iniciativa e ao empreendedorismo individual. Não é casual que o porta-voz desta causa desregulamentadora seja um coach. 


Não surpreende ainda que o aspecto de interseção entre esta nova extrema-direita e a velha direita resida justo nesta repulsa comum aos limites legais à exploração do capital.


Mas o fato é que a ordem atual, as instituições vigentes tampouco asseguram o bem estar, a manutenção das conquistas e os direitos do povo trabalhador, especialmente de suas frações mais jovens, de modo que o discurso de Lula e da esquerda em geral de defesa das instituições como sinônimo de defesa da democracia soa a estes setores como uma defesa da merda de vida que ai está, deixando ampla avenida para Marçal passar com seu cortejo de horrores. 


A renúncia à transformação do que aí está por parte da direção do PT, em nome da democracia, dá passo ao discurso transformista reacionário da extrema-direita, com o qual os inventores da Ponte para o Futuro da Faria Lima se compõem com grande facilidade. 


A adesão das direções majoritárias da esquerda à defesa do sistema é a chave para entender o êxito do discurso antissistema da extrema-direita. 


As parcelas mais desesperadas do povo parecem seduzidas por aqueles que não têm medo de apelar ao crime, à mentira e ao estelionato para derrubar o sistema.

 

Lembrei de uma passagem de Trotsky, em um dos seus escritos sobre a ascensão do fascismo e do nazismo, em que ele diz que nos momentos de crise extrema (a hoje chamada polarização), a pequena-burguesia arruinada, as classes médias desesperadas e os desclassizados famintos seguem os que lhes parecem mais audazes e decididos. A moderação do PT e da esquerda se volta contra eles mesmos, enquanto a ausência de limites da extrema-direita se mostra como sua arma mais eficaz.

outubro 17, 2024



Manifestações anti-imigração e antifascista a 350 metros de distância no Porto


Saudações, camaradas.

Me chamo Marcondes, professor e representante do Sindiute na EMTI Aldemir Martins, Barra do Ceará e pesquisador (GPOSSHE-UECE/GEM-UFC).


Enquanto educador e comunista, tenho consciência de que a luta de classes constitui uma condição inescapável de existência na sociedade capitalista, nesse sentido, nossa tarefa imediata é construir uma unidade ampla com todos os educador@s de Fortaleza, cuja finalidade maior é a mobilização constante pela disputa de votos em favor de nosso candidato do PT.


Com efeito, não podemos nos eximir, tampouco hesitarmos em agir, a partir de agora, em nossos locais de trabalho, família, instituições, ruas e praças da capital alencarina na defesa irrestrita da candidatura do companheiro Evandro Leitão nessa empreitada histórica pra debelar a ameaça fascista da extrema-direita representada pelo inepto e inconsequente André Fernandes, mais um rebento monstruoso do energúmeno e genocida...


Como dizia nossa saudosa Rosa Luxemburgo: "quem não faz política, sofre com a política dos outros". E o pior que existe na política brasileira atualmente, é o fenômeno do bolsonarissmo. Sendo assim, o fortalecimento da campanha e, por conseguinte, a luta pela vitória de Evandro, representará, sem sombra de dúvidas, mais uma conquista história na defesa dos valores democráticos e civilizatórios na nossa cidade.


Cumpre assinalar, dessa forma, que defender o voto no segundo turno em EVANDRO LEITÃO 13, é defender a democracia, a justiça social distributiva, o respeito às mulheres,  negros, pobres, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, trabalhadores como um todo, ou seja, é uma luta renhida contra a barbárie.


Uni-vos camaradas. Só a luta transforma a vida!!!

domingo, 29 de setembro de 2024

A carta de rompimento de Natália Sedova com a IV Internacional

setembro 29, 2024


DailyRadical History on X: "Jan 23 1962 – Death of Natalia Sedova. An  lifelong revolutionary, forced into exile by Stalin alongside Trotsky,  maintained her revolutionary internationalism until her death  https://t.co/KcyWXC3H7s https://t.co/Z64xL2EF2Q" /

Natalia Sedova Trotsky (1882-1962)


Eudes Baiman, professor da UECE


É uma peça curiosa, tendo em vista que Natália adere às posições contra as quais Trotsky travou seu último combate de monta. Com efeito, de fins de 1939 até sua morte, em agosto de 1940, Trotsky desenvolveu uma luta ríspida com a fração Max Schatman/James Burnham no SWP norte-americano justamente em torno do problema da natureza da URSS. 


Depois da guerra, grosso modo, Natalia Sedova se alinhou justamente às posições de Schatman/Burnham, que não mais existia como grupo de esquerda, pois seus líderes derivaram nos anos 40 para a direita e para o anticomunismo.


Contudo, na base da negação da URSS, e dos Estados surgidos da derrota da ocupação nazista no Leste da Europa, como estados operários, quer dizer, baseados na expropriação do capital, ainda que degenerados por regimes stalinistas, ela manteve relações com antigos militantes que haviam rompido com Trotsky ainda antes da guerra, e brevemente com o agrupamento intitulado Fomento Obrero Revolucionário, de Grandizo Munis, que saiu da IV Internacional em 1948.


De passagem, Natasha tinha algumas intuições certeiras, como a crítica à visão de dirigentes da Internacional acerca do Marechal Tito e de seu regime na Iuguslávia, que tomaria depois uma imensa dimensão e levaria à dissolução  da IV como organização entre 1951 e 1953.Não deixa de chamar a atenção que perto de sua morte, depois da suposta "desestalinização" proclamada no XX° Congresso do PC da URSS, em 1956, Natália tenha pedido a reabilitação de Trotsky aos chefes do regime stalinista, uma atitude com que dificilmente Lev Davidovitch teria acordo.


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Camaradas:

Sabem muito bem que não estou de acordo com vocês durante os últimos cinco ou seis anos, desde o final da guerra e até mesmo antes. A posição assumida por vocês sobre os importantes acontecimentos dos últimos tempos, me demonstra que, em vez de corrigirem os seus anteriores erros, persistem neles e os aprofundam. No caminho que assumiram, chegou-se ao ponto em que já não me é possível permanecer calada ou a me limitar a protestos privados. Agora devo exprimir as minhas opiniões publicamente. 

O passo que me sinto forçada a dar, é-me difícil e doloroso, e só posso deplorar sinceramente por isso. Mas não há outro modo. Depois de muitas meditações e dúvidas sobre um problema que me afligiu profundamente, dei na conclusão de que não há outra maneira senão dizer-lhes francamente que as nossas discordâncias tornam impossível a minha permanência nas suas fileiras.

As razões para esta minha postura final são conhecidas pola maioria de vocês. Eu brevemente as repito unicamente para aqueles que não estão familiarizados com as mesmas, referindo apenas as nossas diferenças fundamentais e não as que estimo sobre questões de política cotidiana que estão relacionadas a elas ou que delas derivam. 

Obcecados por velhas e ultrapassadas fórmulas, continuam considerando o Estado stalinista como um Estado operário. Eu não posso e não acompanharei vocês nisto. Depois do começo da luta contra a burocracia stalinista usurpadora, L. D. Trotsky  repetia praticamente todos os anos, que o regime se deslocava para a direita, sob as condições de uma revolução mundial delongada e a conquista de todas as posições políticas pola burocracia na Rússia. Repetidas vezes sublinhou como a consolidação do stalinismo na Rússia conduzia a uma deterioração das posições econômicas, políticas e sociais da classe operária, e ao triunfo de uma aristocracia tirânica e privilegiada. Se esta tendência continuar, disse, a revolução esgotar-se-á e a restauração do capitalismo será atingida. Infelizmente, isso foi o que aconteceu, mesmo se em formas novas e inesperadas. Não há nenhum país no mundo onde as autênticas ideias e os autênticos defensores do socialismo sejam perseguidos tão barbaramente [como na Rússia]. Deveria ficar claro para todo o mundo que a revolução foi completamente arruinada polo stalinismo. Todavia, vocês continuam dizendo ainda que sob este regime inominável, a Rússia é um Estado operário ou com algo de socialismo. Acho isto como um ataque ao socialismo. O stalinismo e o Estado stalinista não tem parecido  nada com um Estado operário e com o socialismo. Eles são os mais perigosos inimigos do socialismo e da classe operária.

Agora tomam de conta vocês que os Estados da Europa Oriental, sobre os quais o stalinismo instituiu o seu domínio durante e após a guerra, são igualmente Estados operários. Isto é equivalente a dizer que o stalinismo cumpriu um papel socialista revolucionário. Eu não posso e não quero segui-los nisto. 

Após a guerra e antes mesmo do seu término, houve um movimento revolucionário das massas nestes países. Mas não foram estas massas que conquistaram o poder e não foram Estados operários que foram fundados pelas suas lutas. Foi a contrarrevolução stalinista que conquistou o poder, reduzindo estes países a uma condição de escravos do Kremlin, esganando as massas trabalhadoras, as suas lutas e as suas aspirações revolucionárias. Ao considerar que a burocracia stalinista estabeleceu Estados operários nesses países, atribuem-lhe um papel progressivo e até mesmo revolucionário. Ao propagarem esta monstruosa falsidade à vanguarda dos trabalhadores vocês negam à IV Internacional toda a razão básica para a sua existência, enquanto um partido mundial da revolução socialista. No passado, sempre estimamos o stalinismo como uma força contrarrevolucionária no sentido pleno do termo. Vocês já não o consideram assim. Mas eu continuo apreciando-o como tal. 

Em 1932 e 1933, para desculpar a capitulação desavergonhada ao hitlerismo, os stalinistas manifestaram que importaria pouco se os fascistas chegassem ao poder, porque o socialismo haveria vir depois e viria através do domínio do fascismo. Só desumanos brutos sem pingo de pensamento ou espírito socialistas poderiam arguir deste modo. Apesar de prosseguirem defendendo os objetivos revolucionários, vocês sustentam agora que a reação stalinista despótica que triunfou na Europa Oriental é um dos caminhos polos quais o socialismo eventualmente virá. Esta visão marca uma fenda irremediável com as convicções mais profundas sempre assumidas polo nosso movimento, convicções que continuo a compartilhar. 

É impossível harmonizar com vocês na questão do regime de Tito na Iugoslávia. Toda a simpatia e apoio de revolucionários, e até mesmo de todos os democratas, deveria voltar-se para o povo iugoslavo na sua resistência determinada diante dos esforços de Moscou para reduzir o povo e o país à escravatura. Deveríamos tirar proveito de cada concessão que o regime iugoslavo vê-se agora obrigado a fazer ao povo. Mas toda a sua imprensa está consagrada agora a uma idealização indesculpável da burocracia titoísta, para a qual não existe nenhuma base nas tradições e princípios de nosso movimento. 

Essa burocracia é só uma réplica, sob uma nova forma, da velha burocracia stalinista. Ela foi treinada nas ideias, políticas e na moral da GPU. O seu regime, em nenhum aspecto fundamental, não difere do regime de Stalin. É absurdo acreditar ou ensinar que a direcção revolucionária do povo iugoslavo irromperá desta burocracia ou de qualquer outra forma que não seja no curso da contenda contra a burocracia.

Trotsky, em resposta a uma pergunta desleal dirigida a ele por Stalin em 1927 no Bureau Político, expôs a sua visão da seguinte maneira: Pela pátria socialista, sim! Pelo regime stalinista, não! Isso foi em 1927! Agora, vinte e três anos depois, Stalin não deixou nada da pátria socialista. Foi substituída pola escravização e degradação do povo pola autocracia estalinista. Este é o Estado que vocês propõem defender na guerra, que já estão mantendo vocês na Coréia. O mais intolerável de tudo é a posição que têm perfilhado sobre a guerra. A terceira guerra mundial que ameaça a humanidade confronta o movimento revolucionário com os problemas mais difíceis, as situações mais complexas, as decisões mais sérias, onde a nossa posição só pode ser tomada após discussões feitas da maneira mais séria e livre possível. Mas diante de todos os acontecimentos dos últimos anos, continuam hipotecando todo o movimento na defesa do Estado stalinista. Agora vocês estão apoiando até os exércitos do stalinismo na guerra que está sendo aturada polo povo coreano. Eu não posso e não quero segui-los nisto. 

Sei muito bem com quanta frequência repetem que estão a censurar o stalinismo e que o estão combatendo. Mas o fato é que a sua crítica e a sua luita perderam o seu valor e não podem trazer resultado nenhum, porque estão determinados à posição de defesa do Estado stalinista e subordinados ela. Quem quer que defenda esse regime de bárbara opressão renuncia, independente das razões, aos princípios do socialismo e do internacionalismo.

Na mensagem que me foi enviada pola recente convenção do SWP(2*), escreveu-se que as ideias de Trotsky continuam sendo o seu roteiro. Devo dizer-lhes que li estas palavras com amargura. Como podem reparar pelo que acima escrevi, não vejo as ideias dele na sua política. Sou confiante nessas ideias. Permaneço persuadida de que a única saída para a presente situação é a revolução socialista, a auto-emancipação do proletariado mundial. 

México, DF 9 de maio de 1951 

Notas:

(1*) Na fonte citada aparecem apenas trechos deste documento. Agradeço ao camarada Jaime Sinde Masa a procura e cessão de uma fotocópia do texto íntegro em espanhol. 

(2*) Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores).

Fonte:https://www.marxists.org/portugues/sedova/1951/05/09.html

sábado, 28 de setembro de 2024

Pedagogia das ciências: o caso da hesitação pedagógica na ciência

setembro 28, 2024

Foto:thinkmovemake.com 


Carlos Bonfim, Professor Adjunto de Pedagogia da UECE.

 

A educação em ciência põe em movimento e justifica a Pedagogia das ciências. Partindo desse campo abordamos aqui o papel da hesitação pedagógica na atividade científica.

 

Costumamos distinguir a ciência enquanto atividade que produz conhecimentos exatos sobre as coisas, e que por isso o pesquisador jamais deve hesitar em suas afirmações: precisa demonstrar que tem certeza, pois fundamentado em evidências.

 

Mas a possibilidade da ‘certeza inquestionável’ em ciências só existe se o pesquisador tiver ‘todos os dados do problema’ disponíveis e analisados em todos os detalhes e dimensões.Caso não se tenha todos os dados, isso indica que não há certeza indubitável, apenas previsão de probabilidades, expressa em uma teoria científica (dizemos ‘teoria cientifica’ porque há ‘teorias’ da conspiração, ‘teorias’ do senso comum’, ‘teorias’ sem ser fundamentadas em evidências etc.). Assim, as “teorias científicas referem-se a possibilidades, e não a fatos”, dizia Werner Heisenberg (1996, p. 98). 


Teoria não é um fato, é descrição de uma impressão (em forma de argumento ou de equação) ‘acerca de um possível fato’. Numa palavra: teorias científicas designam propostas que talvez funcionem (apresente boa aproximação com o real) ou não. 

 

Se uma teoria funciona bem segundo uma perspectiva, podemos confiar, mas nunca nos convencermos de que seja a verdade absoluta. E se no fundo estamos convencidos, mesmo assim a hesitação pedagógica é a prudência recomendada, pois a realidade é sempre surpreendente e mais dinâmica que qualquer teoria.Portanto, o critério de afirmação de uma teoria não é a “verdade” (correspondência fiel com o provável objeto real), e, sim, a probabilidade, o caráter de proposta possível ou provável. A esse respeito, no artigo de Einstein de 1905, que demonstra que a luz é feita de partículas (fato a lhe render o prêmio Nobel em Física), há a frase “parece-me”, a qual representa bem a hesitação pedagógica:


“De fato, parece-me (Es scheint mir) que as observações da radiação de corpo negro, fotoluminescência, produção de raios catódicos por luz ultravioleta e outros fenômenos associados à emissão ou transformação da luz, podem ser mais facilmente entendidos se admitirmos que a luz é distribuída de forma descontínua no espaço...pois consiste em número finito de quanta [grãos, partículas] de energia.” (Einstein, 2005, p. 202).

 

Não sem sentido, cientistas de peso na história das ciências (Newton, Planck, Einstein, Dirac, Darwin, Vigotski...), em suas teorias em vez de proferirem “asseguro com certeza”, usavam expressões de hesitação pedagógica do tipo ‘parece-me que’, ‘penso que’, ‘suponho que’, ‘consideramos’, ‘em estreito acordo com as observações’, ‘é consistente a hipótese’, ‘em primeira aproximação’ etc. Ante a instabilidade do mundo real e o contínuo avanço das pesquisas, o bom pesquisador parece ser aquele que “tem consciência dos passos importantes que está realizando e sempre hesita...” (Rovelli, 2017, p. 113). 

Quando os resultados de uma pesquisa científica passam nos testes, o experimentador dá o laudo: “É, a teoria parece que funciona mesmo”. 


Referências: 


HEISENBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.


EINSTEIN, Albert. Sobre um ponto de vista heurístico a respeito da produção e transformação da luz. In: EINSTEIN, Albert. O ano miraculoso de Einstein: cinco artigos que mudaram a face da física. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. p. 201-222. 


ROVELLI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

setembro 20, 2024


Eudes Baiman, professor da UECE


Eu acho comovente a tentativa de acadêmicos de jogar a obra de Marx no lixo, mas sem ter a coragem digna de afirmar seu rompimento com Marx, o que é um direito legitimo e, dependendo da qualidade do intelectual, mais útil às lutas sociais do que o ódio envergonhado ao Velho.


Um exemplo deste ódio envergonhado é o professor da Faculdade de Economia da Universidade Central da Venezuela, Edgardo Lander.


Por dever de ofício, gastei algumas horas de meu bem atualmente mais precioso (o tempo) com quase 40 páginas deste autor, o artigo "Marxismo, Colonialismo e Eurocentrismo", publicado em português numa coletânea da Expressão Popular, "A Teoria Marxista Hoje". Como este texto foi parar num compêndio de artigos sobre teoria marxista é um mistério. 


Apesar de, ao fim e ao cabo, dar a entender de que busca salvar a teoria marxista para as lutas sociais contemporâneas, algo como achar no racismo, colonialismo e eurocentrismo de Marx um núcleo saudável, o texto todo é um ataque em regra a Marx e a sua obra.


Sem problemas. A obra de Marx, pela sua própria natureza, reconhece do início ao fim sua condição de fruto de uma época histórica, e, assim, não é de forma alguma inatacável e isento de crítica e refutações. Muito pelo contrário.


Contudo, no afã de caracterizar Marx como incapaz de fazer a crítica realmente radical do capitalismo (sua obra resultando de fato numa narrativa alternativa "sentada" nos mesmos fundamentos da Europa ou do "ocidente" burguês), o autor realiza um amplo trabalho de falsificações, referências impertinentes à obra do autor alemão, confusão voluntária ou involuntária entre as posições de Marx e as deformações stalinistas, e a atribuição a ele de ideias deduzidas "livremente" por Lander de uma suposta leitura do autor. Digo suposta porque Lander é incapaz, ao longo de quase 40 páginas, de fazer sequer  uma citação direta de qualquer obra de Marx, obrigando o leitor a acreditar na própria interpretação do professor venezuelano.


Para ilustrar suas críticas a Marx, no máximo, usa passagens de uma única obra de Lenin, "Marxismo e Empiriocriticismo". Uma abordagem aliás muito de passagem e sem aprofundamento.


Ao fim, o que fica no espírito do leitor de Lander é que Marx, e ademais o que o autor venezuelano identifica com o "marxismo", são apenas a extrema-esquerda das narrações europeizantes, colonialistas e racistas hegemônicas nas abordagens do conhecimento, especialmente sobre a América Latina. Mais do que isso, o texto reproduz certas críticas terceiro-mundistas ou, como se diz agora, sulglobalistas, bastante estereotipadas a Marx e ao marxismo, especialmente, horror dos horrores, à ideia da revolução de natureza social proletária. 


Não sei se Ingenieros, Mariátegui, Ponce, Pedrosa e outros intelectuais marxistas latino-americanos se deram ao trabalho de se revirar em suas tumbas.


Não sou de "desrecomendar" obras pois acredito que todos devem ler os textos por si mesmos, mas tenho dúvidas se, neste caso, o tempo não pudesse ser usado melhor.