Penso que esse texto de Lukács é interessante no sentido de diferenciar o materialismo histórico, fundado por Marx e Engels, do idealismo filosófico e do marxismo vulgar. Principalmente, sobre a relação entre o ser e a consciência, o que reverbera para a conexão sujeito-objeto. O idealismo filosófico produz uma hierarquia baseada na consciência ou ideia que produz e ordena as formas de objetividade. Já o marxismo vulgar reduz a consciência a um simples reflexo passivo da realidade, transformando o sujeito num simples espelho da realidade, sendo a relação ontológica-gnosiológica do conhecimento conformada numa relação “objeto-sujeito”.
Professor Frederico Costa da FACEDI-UECE
Trata-se de um mal-entendido muito difundido acreditar que a imagem de mundo do materialismo – prioridade do ser em relação à consciência, do ser social em relação à consciência social – possui também um caráter hierárquico. Para o materialismo, a prioridade do ser é, antes de tudo, a constatação de um fato: existe ser sem consciência, mas não existe consciência sem ser. Contudo, disso não resulta nenhum tipo de subordinação hierárquica da consciência ao ser. Pelo contrário, essa prioridade e seu reconhecimento concreto – tanto teórico como prático – pela consciência é que criam a possibilidade de a consciência dominar o ser em termos reais. O simples fato do trabalho ilustra essa faticidade de modo contundente. E, quando o materialismo histórico constata a prioridade do ser social em relação à consciência social, trata-se igualmente apenas do reconhecimento de uma faticidade. A prática social também está direcionada para o domínio social, e o fato de ter cumprido seus fins apenas de modo muito relativo no decorrer da história até o presente momento não cria uma relação hierárquica entre ambos, mas apenas determina as condições concretas nas quais uma prática exitosa se torna objetivamente possível, traçando desse modo, simultaneamente, seus limites concretos, o espaço de manobra para a consciência, o espaço proporcionado pelo respectivo ser social. Assim, nessa relação, torna-se visível uma dialética histórica, mas de modo algum uma estrutura hierárquica. Quando um pequeno barco a vela se mostra impotente diante de uma tempestade que um poderoso navio a motor superaria sem dificuldades, isso mostra apenas a superioridade ou a limitação real da respectiva consciência diante do ser, mas não uma relação hierárquica entre o homem e as forças da natureza; e isso tanto menos quanto o desenvolvimento histórico – e com ele o conhecimento crescente que a consciência tem da verdadeira natureza do ser – produz um crescimento constante das possibilidades de domínio do ser pela consciência.
LUKÁCS, György. Estética: a peculiaridade do estético, volume 1. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 161-162.