sábado, 29 de junho de 2024

O problema da totalidade em Lukács: seu caminho metodológico II




Antonio Marcondes, Pós-doutor em Educação, GPOSSHE-UECE


A trajetória intelectual de Lukács foi, durante mais de sessenta anos, um gigantesco esforço para conferir ao marxismo o seu adequado fundamento ontológico, materialista. E nesse percurso não foram poucas as influências que marcaram suas principais obras. Desde o seu neokantiano A alma e as formas (1911), o trânsito para o hegeliano A teoria do romance (1914-1915), ao existencialismo de Kierkegaard e à assimilação da filosofia e sociologia alemãs com Dilthey, Simmel, Weber, Lukács, seguramente, pode ser considerado o pensador marxista do século XX que mais mergulhou profundamente no melhor da tradição teórico-filosófica clássica e que manteve com ela uma rica relação de apropriação e superação crítica. Assim, a partir do seu primeiro encontro com as obras de Marx*, o filósofo húngaro empreendeu uma caminhada cheia de percalços, paradoxos, autocríticas, renegações, mas, acima de tudo, de enorme lucidez filosófica e científica, pois, a relação com o pensamento de Marx “é a verdadeira pedra de toque para todo intelectual que leva a sério a elucidação da sua própria concepção de mundo, o desenvolvimento social, em particular a situação atual, o seu próprio lugar nela e o seu próprio posicionamento em relação a ela” (LUKÁCS,1983, p. 1)**.

Lukács passa por muitos aprendizados e reviravoltas em sua vida política e intelectual, acentuadamente, a partir da eclosão da primeira Guerra Mundial (1914-1918), da conflagração da Revolução Bolchevique em 1917, bem como, seu ingresso no Partido Comunista Húngaro em 1918 e a proclamação da República Húngara dos Conselhos em março de 1921, assim, todos estes fatos históricos implicarão em mudanças decisivas em sua trajetória. Embora neste último contexto momento, ele parta para o exílio na Áustria em virtude da derrota da República para as forças fascistas. É exatamente aí onde iniciaria sua fase de assimilação do marxismo. Em tal circunstância, Lukács superaria a sua “ética voluntarista”, mas se projetaria num “esquerdismo” messiânico e numa concepção epistemológica baseada num “idealismo filosófico”. Nesse sentido, segundo José Paulo Netto (1981, p. 33):

O tempo de Lukács é determinado, por um lado, pela chamada crise geral do capitalismo. A primeira guerra imperialista, a falência de 1929, a emergência do nazifascismo, o capitalismo tardio e manipulador cristalizado após 1945 [...]. De outro lado, figura o aborto da revolução no Ocidente, com o confinamento do socialismo no Leste, e originalmente num país cujas peculiaridades sócio-econômicas propiciaram o clima em que se instituiu um sistema político autocrático e repressivo, encarnado no modelo stalinista.

É na convergência destes acontecimentos traumáticos e seus desdobramentos político-ideológicos que Lukács reelabora teoricamente seu pensamento crítico, pois, é na alternativa socialista que o filósofo magiar encontrará uma saída para estas crises. Entretanto, esta alternativa socialista que Lukács preconizava era mais “desejada” do que “real”. Com efeito, esta conjuntura histórica de “vaga revolucionária”,

[...] exige de Lukács o conhecimento da vida econômica: assim, ele mergulha nas teorias de Rosa Luxemburgo, o que contribui para que reaja duramente ao burocratismo de Béla Kun; esta reação, todavia, não tem nenhum suporte social: só resta a Lukács o apelo a um messianismo utópico – a hipertrofia das suas exigências éticas condu-lo a posições que mais tarde ele classificará como “esquerdistas”. A conclusão da crise se faz, portanto, com a esperança de que a miséria capitalista se resolva na imediata construção da nova sociedade (NETTO, 1981, p. 35, itálico no original). 

É neste contexto histórico e teórico que Lukács irá publicar sua obra mais polêmica no âmbito dos estudos da dialética marxista: História e consciência de classe (1923). Com a publicação deste livro, Lukács irá marcar definitivamente seu nome na constelação do marxismo, para o “bem” ou para o “mal”. Sumariamente, o filósofo marxista caracteriza da seguinte forma este momento: 

As experiências da revolução húngara mostraram-me claramente a fragilidade de todas as teorias sindicalistas (a função do partido na revolução), mas persistiu em mim, ao longo dos anos, um subjetivismo ultraesquerdista (por exemplo, minha posição nos debates em 1920, sobre a ação parlamentar e a minha atitude em relação ao movimento de março de 1921). Tudo isso me impedia de compreender, de modo correto e verdadeiro, o aspecto materialista da dialética no seu significado filosófico mais abrangente. O meu livro História e Consciência de Classe (1923) mostra muito claramente essa transição. Apesar da tentativa, já consciente, de superar e “eliminar” Hegel através de Marx, problemas decisivos da dialética foram resolvidos nesta obra de maneira idealista [...] (LUKÁCS, 1983, p. 2-3, itálico e aspas no original).

Como podemos entender nas palavras de Lukács, a busca por uma correta fundamentação materialista da dialética marxista fora ofuscada em virtude de sua posição subjetivista, ultraesquerdista. Isso contribuiu decisivamente para caracterizar o livro de 1923 como idealista. Nesse sentido, a luta teórica e metodológica do filósofo húngaro para “dominar” a dialética foi árdua e cheia de “acidentes” que se prolongou por muito tempo, mas que teve exatamente em História e consciência de classe seu ponto de partida irrevogável. Lukács reconhece que este livro está imbuído de um “espírito hegeliano”, sobretudo, no que tange o fundamento filosófico conferido ao problema do sujeito-objeto idêntico, que se efetua no processo histórico. Em Hegel esse processo é de tipo “lógico-filosófico”, ou seja, o espírito absoluto ao atingir sua etapa superior no âmbito da filosofia com a “retomada da exteriorização” e com “o retorno da consciência de si mesma”, realiza-se enquanto sujeito-objeto idêntico. Em História e consciência de classe, esse processo ocorre de maneira inversa, isto é, se realiza enquanto um processo histórico-social “que culmina no fato de que o proletariado realiza essa etapa na sua consciência de classe, tornando-se o sujeito-objeto idêntico da história” (LUKÁCS, 2003, p. 24). A crítica de Lukács no prefácio de 1967 em relação a esta questão, é que de fato, não havia como a construção “lógico-filosófica” da Fenomenologia de Hegel ter encontrado uma “autêntica efetivação ontológica” na consciência e no ser do proletariado. Isso parecia oferecer uma justificação de cunho filosófico à possibilidade do proletariado revolucionário transformar historicamente a sociedade burguesa fundando uma sociedade sem classes. Como podemos perceber, em História e consciência de classe pensamento e ser se identificam na consciência do proletariado. Daí o momento predominante da categoria da totalidade no livro de 1923 ser o ponto de vista, o sujeito cognoscente (o proletariado como pensador coletivo).


*Lukács nos esclarece sobre seus primeiros contatos com as obras de Marx no seguinte sentido: “Foi ao terminar os meus estudos secundários que se deu o meu primeiro encontro com Marx (com o Manifesto Comunista). A impressão foi extraordinária e, quando estudante universitário, li então algumas obras de Marx e Engels (como, por exemplo, O 18 Brumário, A Origem da Família) e, em particular, estudei a fundo o primeiro volume de O Capital. Esse estudo me convenceu rapidamente da exatidão de alguns pontos centrais do marxismo. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com a teoria da mais-valia, com a concepção da história como história da luta de classes e com a articulação da sociedade em classes” (LUKÁCS, 1983, p. 1).

**“Mein Weg zu Marx” foi publicado na revista moscovita Internationale Literatur, n° 2, em 1933, tendo sido reproduzido em G. Lukács zum Siebzigsten Gebeertstag (Berlim, Aufban, 1955). Com tradução para o italiano por Ugo Gemmelli, foi publicado em Nuovi Argomenti, n° 33, 1958. Tradução para o português, a partir do texto integral traduzido por Ugo Gemmelli in Marxismo e politica culturale (Torino, Einaudi Editore, 1977), de Luiza L. S. Sakamoto, Marilene G. Pottes e M. Dolores Prades. Revisão técnica de Thereza Calvet de Magalhães. Notas da Edição Brasileira (publicada originalmente na Revista Nova Escrita/Ensaio especial – Marx Hoje, ano V, n° 11/12, 1983).