quinta-feira, 17 de outubro de 2024


A Moral Dele e a Nossa


Professor Eudes Baiman, Professor da UECE


O dito fenômeno Marçal  chama ainda mais atenção porque desafia inclusive o tradicional moralismo brasileiro. 


Durante décadas, apelar à retidão moral (ou à falta dela no adversário) foi um recurso certeiro para desqualificar os concorrentes. O moralismo colocava o confronto fora do alcance da política e era instrumento da desqualificação prévia, antes mesmo dos embates de ideias e propostas. Você já derrubava o adversário liminarmente porque cultivamos ao longo de séculos esta mentalidade julgadora (e condenadora) do caráter moral das pessoas. 


Marçal, depois de Bolsonaro, parece imune à desqualificação moral.


Ainda mais curioso é que determinações neste âmbito parecem não icomodar o núcleo essencial do público do qual ele parte, o público evangélico, tão distinto quanto à chamada "pauta moral". 


No caso, antes de Bolsonaro e, hoje, de Marçal, a boa e velha acusação de ladrão (no caso deste último, comprovada e com condenação na Justiça) parece não incomodar ao puritano evangélico ou ao cidadão de classe média aspirante à rico, sempre tão dispostos a apontar o crime do semelhante.


Muito menos efeito faz o desmascaramento, ainda que cabal e contundente, da mentira, do estelionato e da falsificação. 


Marçal, ainda mais que Bolsonaro, parece assumir abertamente o uso de meios ilegais como instrumento para derrotar o Inimigo, com "I" maiusculo (à moda dos evangélicos quando se referem ao Diabo), inclusive usando positivamente o fato de ser o único a fazê-lo e a reclamar o ato como legitimo, ao invés de tentar refutar as evidências de que comete ilícito. 


Mentir, enganar, roubar sem constrangimento e reivindicando isso como atestado de audácia e destemor no combate ao Inimigo, ao contrário, parece uma qualidade frente ao seu público: o cara que irá até o fim, sem constrangimentos legais ou de consciência para nos livrar do perigo do comunismo, da esquerda ou, como dizem alguns segmentos católicos, do modernismo.


Entender esta falta de escrúpulos sagrada, e até santificada, arma de um guerreiro fiel e destemido, exige estudar mais, contudo, a atitude de Marçal que seu eleitor médio espera e valoriza, está ligada à recusa do atual estado de coisas, da ordem vigente, o "sistema", da qual Lula e o PT parecem ser os principais defensores (o chamado Estado democrático de direito), do qual os mais pobres e as classes médias apavoradas e desalentadas em sua esperança de ascensão não tiram nenhum proveito, e, antes, surge como um obstáculo a suas demandas que parecem acessíveis apenas se retiradas as barreiras (direitos civis e trabalhistas, garantias do trabalho, etc.) à selvagem livre iniciativa e ao empreendedorismo individual. Não é casual que o porta-voz desta causa desregulamentadora seja um coach. 


Não surpreende ainda que o aspecto de interseção entre esta nova extrema-direita e a velha direita resida justo nesta repulsa comum aos limites legais à exploração do capital.


Mas o fato é que a ordem atual, as instituições vigentes tampouco asseguram o bem estar, a manutenção das conquistas e os direitos do povo trabalhador, especialmente de suas frações mais jovens, de modo que o discurso de Lula e da esquerda em geral de defesa das instituições como sinônimo de defesa da democracia soa a estes setores como uma defesa da merda de vida que ai está, deixando ampla avenida para Marçal passar com seu cortejo de horrores. 


A renúncia à transformação do que aí está por parte da direção do PT, em nome da democracia, dá passo ao discurso transformista reacionário da extrema-direita, com o qual os inventores da Ponte para o Futuro da Faria Lima se compõem com grande facilidade. 


A adesão das direções majoritárias da esquerda à defesa do sistema é a chave para entender o êxito do discurso antissistema da extrema-direita. 


As parcelas mais desesperadas do povo parecem seduzidas por aqueles que não têm medo de apelar ao crime, à mentira e ao estelionato para derrubar o sistema.

 

Lembrei de uma passagem de Trotsky, em um dos seus escritos sobre a ascensão do fascismo e do nazismo, em que ele diz que nos momentos de crise extrema (a hoje chamada polarização), a pequena-burguesia arruinada, as classes médias desesperadas e os desclassizados famintos seguem os que lhes parecem mais audazes e decididos. A moderação do PT e da esquerda se volta contra eles mesmos, enquanto a ausência de limites da extrema-direita se mostra como sua arma mais eficaz.